Perguntas: Phil Butland, Emily Baumgartner e Gregory Baumgartner
Olá, Ilan, obrigado por falar conosco. Você poderia começar se apresentando brevemente?
Meu nome é Ilan Pappe. Sou professor da Universidade de Exeter, na Grã-Bretanha, onde sou diretor do Centro Europeu de Estudos sobre a Palestina. Também sou historiador e ativista social e político.
A principal razão pela qual estamos conversando hoje é que este é o ano do 75º aniversário da formação do Estado de Israel. Um de seus livros denominou o evento de A Limpeza Étnica da Palestina. Você poderia explicar o que você quis dizer com isso?
A limpeza étnica da Palestina é, na verdade, o projeto do movimento sionista de colonização de povoamento para assumir a pátria palestina. No momento histórico certo, segundo sua perspectiva, foi capaz de tomar grande parte das terras e expulsar muitos dos habitantes delas.
Antes de 1948, o movimento sionista não tinha o poder de implementar uma expulsão tão maciça de pessoas. Mas, uma vez que o mandato britânico terminou e eles construíram uma capacidade militar adequada, utilizaram as circunstâncias particulares [da saída dos britânicos] para implementar uma enorme operação de expulsão em massa, ou limpeza étnica.
As pessoas foram expulsas em grande número pelo fato de serem quem eram – palestinos – não por causa do que tivessem feito. No final dessa operação, metade da população palestina tornou-se refugiada. Metade de suas aldeias foram demolidas e a maioria de suas cidades foram destruídas. Na minha compreensão sobre a definição de limpeza étnica, seja em termos acadêmicos, jurídicos ou morais, o planejamento, a execução e a ideologia justificam descrever a ação israelense em 1948 como limpeza étnica.
De muitas formas, como descrevo no livro, isso nunca terminou, porque a limpeza étnica de 1948 estava incompleta. E, de muitas maneiras, continua até hoje, ainda que não na mesma magnitude da década de 1940. Mas ainda é o substrato de muitas das ações israelenses contra os palestinos até os dias de hoje, onde quer que eles estejam.
Para mim, uma das tragédias sobre a Nakba é que as pessoas que estavam fazendo a limpeza étnica e criando refugiados, eram elas próprias refugiadas. As pessoas que fugiam da Alemanha nazista, obviamente, não queriam ficar na Alemanha, mas também tiveram negado em geral o acesso ao Reino Unido ou aos EUA. Os judeus europeus tinham alguma alternativa senão a de fugir para a Palestina?
As pessoas que conceberam e supervisionaram a limpeza étnica chegaram à Palestina, muito antes – antes do Holocausto. E quando chegaram à Palestina na década de 1920, ainda tinham opções para ir para outro lugar.
É totalmente verdadeiro que, a partir da ascensão do nazismo e do fascismo, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos fecharam suas portas, e muitos dos judeus que vieram da Europa Central e de áreas que os nazistas ocuparam, tinham muito poucas opções. A Palestina era um dos únicos lugares para onde podiam ir, mas não eram a principal força que decidia e/ou perpetrava a limpeza étnica. A maioria dos crimes cometidos em 1948 foram perpetrados por sionistas, muitos dos quais, como Yitzhak Rabin, Yigal Alon ou Moshe Dayan, nasceram na Palestina.
Mas, definitivamente, uma das razões pelas quais os judeus vieram em grande número para a Palestina na década de 1930 foi porque o Ocidente fechou suas fronteiras para os judeus que fugiam da Europa. Mas não creio que a maioria das pessoas que perpetraram essa limpeza étnica, foram elas próprias vítimas da opressão nazista ou fascista.
Quem eram as pessoas que vinham para a Palestina? A esquerda estava entusiasmada com os kibutzim comunitários. Depois que a União Soviética foi o primeiro país a reconhecer Israel, muitos sentiram que havia algo socialista sobre o jovem Israel. Quão precisa era essa crença?
Os primeiros sionistas eram pessoas vindas da Europa Oriental. E alguns deles foram certamente inspirados não apenas pelas ideias do nacionalismo e do colonialismo, mas também pelas ideias do socialismo e do comunismo.
Temos conhecemos, por exemplo, sobre o grupo mais importante que veio para a Palestina na década de 1920. Esse grupo nuclear se tornou a liderança da comunidade sionista até a década de 1970, e faziam parte de um movimento socialista mais internacional. Alguns deles até participaram da tentativa de derrubar o regime czarista na Rússia em 1905.
Portanto, sim, foi uma fusão de três ou quatro elementos. Um deles era o socialismo. O segundo foi um nacionalismo que definiu o judaísmo não como uma religião, mas como uma identidade nacional. Em terceiro lugar, o modernismo. Era muito importante para eles construir a ideia do judeu moderno. Não menos importante foi o colonialismo – a ideia de que você tem o direito de ocupar qualquer parte do mundo fora da Europa, independentemente de quem lá vivesse.
Mas a maioria dos colonos sionistas preferiram não viver em kibutzim socialistas e, consequentemente, mudaram-se para as cidades. Em 1948, apenas uma porcentagem muito pequena dos colonos judaicos vivia nessas comunas. Mas eram sociedades muito poderosas em termos da definição de políticas e estratégias sionistas.
Acho que a coisa mais importante era que eles realmente acreditavam – embora erroneamente – que ideologias universais como o comunismo e o socialismo não contradiziam o colonialismo de povoamento. Mas, é claro, essas duas visões sobre a vida não são compatíveis. Não se pode ser um colonizador socialista. Albert Memmi costumava chamá-lo de o colonizador esquerdista. E, na verdade, você é muito pior em sua atitude criminosa porque está tentando usar ideias esclarecidas para justificar as ações realizadas na vida real.
Como você acha que eles foram capazes de fazer o impossível? Como poderiam justificar para si próprios essa mistura de socialismo e colonialismo?
Eles ainda fazem isso, é o que chamamos de esquerda sionista – que não tem mais nenhuma força na política israelense, mas costumava ter. Esse grupo concilia não apenas o socialismo com o colonialismo, mas também com o liberalismo. A maneira como se faz isso é reivindicando a excepcionalidade, dizendo que, em qualquer outro caso, colonizar pessoas, deslocá-las e realizar sua limpeza étnica é um crime. Mas, nesse caso, haveria uma justificativa.
Seja qual for a justificativa, é preciso entender que não havia outra maneira de fazê-lo. No início, tenho a certeza de que eles acharam difícil fazê-lo. Mas com a inércia, o sistema educacional e a doutrinação, eles próprios começaram a acreditar nisso.
Não menos importante foi a reação internacional. Os israelenses poderiam ter se sentido de forma distinta se o movimento socialista internacional na Europa lhes tivesse dito: “um momento, isso não funciona. Na era da descolonização, você não pode fazer o que está fazendo”. Ou se os americanos liberais lhes tivessem dito: “Sinto muito, mas o que vocês estão fazendo é contra nossos valores morais”.
No entanto, eles tiveram a sorte de que o Ocidente decidiu aceitar essa ideia de que se pode ter esse excepcionalismo quando se trata de Israel e dos judeus.
Estamos falando de uma época em que a Índia e partes de África estavam sendo libertadas. A esquerda se manteve firme do lado do movimento anticolonial. E, no entanto, como você diz, muitas das mesmas pessoas fecharam os olhos ou até mesmo apresentaram Israel como um paradigma socialista. Como isso aconteceu?
Em 1975, as Nações Unidas finalmente tiveram a entrada de muitos povos descolonizados. O que era distinto das Nações Unidas de 1947, que não tinham representantes do mundo colonizado e legitimaram a ideia de um Estado judaico na Palestina.
Em 1975, os povos descolonizados eram a maioria nas Nações Unidas. E uma das primeiras coisas que eles fizeram foi aprovar uma resolução que dizia: sionismo é racismo. Você não pode ser um sionista liberal ou socialista. Se você é um sionista, então você não é diferente de alguém que apoia o apartheid na África do Sul. Essa foi a mensagem da resolução das Nações Unidas em 1975.
A grande questão não era o que os estados africanos e árabes fariam ou melhor, como enfocariam o tema, mas o que fariam os membros ocidentais das Nações Unidas em relação a tal imposição? E, sejam quais tenham sido as razões, a Grã-Bretanha, a França e a Alemanha Ocidental e, mais tarde, a União Europeia, aceitaram a posição israelense. Essa posição significava que não se poderia tratar Israel como uma potência colonialista e, portanto, não se poderia tratar o movimento de libertação palestino como um movimento anticolonialista.
Essas potências aceitaram o enquadramento israelense do movimento palestino como uma organização terrorista e de Israel como uma democracia que se defende a si própria. Isso mudou todo o discurso sobre Israel e a Palestina. E estendeu o período em que a esquerda em Israel pôde pensar que havia encontrado essa maneira incrível de resolver um problema insolúvel.
O que é realmente interessante é o que aconteceu dentro de Israel. De 1977 em diante, o eleitorado judaico israelense disse: “não, isso não funciona. [O estado] realmente não pode ser democrático e judaico”. E vimos o resultado disso nas eleições de novembro de 2022 [em que houve ganhos significativos da extrema-direita – nota da edição original].
Os eleitores israelenses disseram: “não, o Estado pode ser ou democrático ou judaico. Toda essa ideia que vem de Tel Aviv, ou dos kibutzim, de que ele pode ser democrático e judaico é um absurdo.” Infelizmente para todos os envolvidos, a conclusão [dos eleitores] foi “já que pensamos que existem apenas duas opções – ou somos judaicos ou democráticos-, preferimos ser judaicos”.
Ou seja, judaicos da maneira que eles entendem o judaísmo, não da maneira que eu o entendo. O Estado judaico deles é um estado teocrático, não democrático, racista, de apartheid, que precisa de todo o poder que possui, porque ainda tem problemas com o povo originário da Palestina e com os povos na vizinhança que o apoiam.
Isso é algo que os líderes do movimento sionista de esquerda nunca previram. Eles não podiam acreditar que seu próprio eleitorado diria: “convenhamos, isso não funciona, parem, parem de mentir para si próprios e para os demais. Não há nada de errado em não ser democrático. Não há nada de errado em ocupar a terra de outro povo e reivindicá-la como de sua propriedade. E não há nada de errado em usar meios violentos para manter seu controle.”
Você acha que as recentes eleições e o novo governo representam uma mudança qualitativa no que está acontecendo em Israel?
É a culminação de uma mudança qualitativa que tinha começado em 2000. Havia uma força política que era totalmente hegemônica em Israel até o final da década de 1970 e que podia dizer aos partidos sociais-democratas na Europa: “somos mais um país social-democrata, não distintos de vocês”. E eles eram a força hegemônica em Israel até a década de 1970.
Mas então o eleitorado disse: “Não, nós não aceitamos vocês”. Além disso, os judeus árabes disseram que “vocês são judeus europeus que nos tratam de uma forma muito racista e por isso não queremos fazer parte de sua versão de um país europeu”. Parece que eles estão conformes com um estado mais religioso, tradicional e racista. Isso começou no final da década de 1970 e levou tempo para amadurecer. Perder ou nunca ter ganho esse eleitorado judaico árabe (ainda 50% da população) foi o maior fracasso da esquerda israelense.
A partir de 2000, não se podia mais falar de um poder socialdemocrata em Israel. Há partidos que se definem como socialdemocratas, mas que não possuem nenhum eleitorado fiel considerável. E não têm influência na política israelense.
Desde 2000, todos os governos foram de centro-direita ou de direita. Se você observar a Knesset [parlamento israelense] hoje, há quatro membros em 120 que se definem como socialdemocratas. Há outros membros que se definem como palestinos ou antissionistas, mas a grande maioria se define como sionistas, nacionalistas e religiosos. Esta é a face de Israel em 2022.
Isso não é um acidente da história. É um resultado inevitável de toda a ideia do projeto colonial de povoamento.
Uma reação a essa falta de representação no parlamento são as manifestações contra o governo em Israel, que têm poucos precedentes em termos do tamanho da mobilização contra o governo. Ao mesmo tempo, essas manifestações claramente não têm nada a dizer sobre os palestinos. Você acha que elas devem ser apoiadas? E elas conduzirão [o país] a algum ponto?
Meus amigos palestinos que são cidadãos de Israel debateram se deveriam participar das manifestações. Quando consultado, minha posição foi muito clara. Eu disse: “em primeiro lugar, esses manifestantes não querem vocês participem. Eles preferem não ver nenhum cidadão palestino-israelense nelas. Em segundo lugar, as manifestações são baseadas na ideia de que não há conexão entre a ocupação e a destruição do que resta da democracia israelense”.
Claro, essa suposição dos manifestantes é totalmente equivocada. Ambas as questões estão conectadas e vinculadas. As mudanças no sistema judiciário destinam-se a permitir a expansão das colônias e a tomada de ações mais severas contra os palestinos. É um pacote único. Levará um pouco mais de tempo para os israelenses em Tel Aviv e a elite da alta tecnologia, que estão preocupados com a forma como Israel está se encaminhando, enxergar isso. Espero que eles consigam perceber que existe uma conexão, mas não tenho certeza de que eles o farão. Este é um debate interno judaico que terá um impacto sobre os palestinos, mas os palestinos não têm como impactar nele.
Há um equívoco entre alguns dos críticos de Israel, [no sentido de que] a maior parte do dinheiro de Israel provenha dos serviços de segurança. Isso não é verdade. Os ingressos mais importantes de Israel provêm da alta tecnologia. Claro, parte dessa alta tecnologia está ligada à segurança. Mas a elite da alta tecnologia em Israel paga uma porcentagem considerável dos impostos e mantém, patrioticamente, dezenas de bilhões de dólares em bancos israelenses, como uma declaração de confiança na economia israelense. A partir de novembro de 2022, eles começaram a retirar o dinheiro de Israel e a procurar empregos fora de Israel.
Isso prejudicará a economia israelense muito seriamente, porque ela é uma economia capitalista liberal que se baseia em tal fluxo de dinheiro e de capital humano. Será muito interessante ver o impacto sobre as pessoas que geralmente votam na direita quando suas condições socioeconômicas forem afetadas.
O Banco Central de Israel já aumentou as taxas de juros oito vezes. Isso significa que a maioria dos israelenses que têm créditos para a aquisição da casa própria estão pagando agora três vezes mais do que pagavam há alguns anos. Para muitos deles, três vezes mais é a metade de seu salário e eles não têm possibilidade de comprar essas casas.
Portanto, terão muita dificuldade para pagar suas enormes prestações. E neste governo não há ninguém com capacidade para lidar com uma crise econômica, que ainda não começou, mas vai ocorrer em algum momento.
Como o governo está justificando que as pessoas tenham que pagar prestações mais caras da casa própria?
É muito difícil responder a essa pergunta logicamente. Hoje, o Knesset aprovou uma lei que permite que Netanyahu gaste enormes somas de dinheiro na reforma de sua casa e de seu avião particular, no mesmo dia em que as pessoas foram informadas de que sua prestação está sendo triplicada. E essas pessoas são geralmente eleitoras de Netanyahu.
As pessoas que não votam em Netanyahu estão muito bem de vida. Essa mudança na economia não os incomoda. Mas há uma certa psicologia aqui que não é tão fácil de explicar, e não é exclusiva de Israel. Por que o eleitorado que mais sofre com as políticas econômicas e sociais do governo, continua a apoiá-lo?
Até agora, uma das razões pelas quais isso ocorre em Israel é pela capacidade do governo de dizer a seus apoiadores que este é o sacrifício necessário para manter a tribo e a nação unidas. Esse sentimento de unidade seria necessário porque estamos enfrentando inimigos de dentro e de fora do país. É por isso que precisam exagerar o perigo iraniano mais além de suas proporções, a fim de consolidar o apoio e desviar a atenção dos problemas socioeconômicos da sociedade.
Até agora, isso tem funcionado. Sempre que exageram nessas medidas econômicas opressivas dizemos para nós mesmos, ok, agora isso vai explodir. Pensamos que explodiria em 2011, com o movimento de protesto social de meio milhão de pessoas se manifestando em Tel Aviv contra as políticas educacional e de habitação do governo.
Foi impressionante ver como esse movimento se extinguiu. Um ano depois, em 2012, Israel foi à guerra em Gaza, a fim de garantir que os manifestantes comparecessem à convocação do exército, fossem para a guerra e esquecessem o protesto social. O governo não tem solução econômica para a crise atual. Ele tentará encontrar uma maneira de desviar a atenção dela – seja por uma guerra ou uma crise – é difícil prever, mas é muito preocupante.
Quando conversamos com a geração mais jovem, [constatamos que] ela foi educada em um sistema educacional notável em termos de endoutrinamento. É muito difícil mudar sua perspectiva. E Israel “desarabizou” muitos dos judeus árabes (os Mizrahim), dando-lhes a sensação de que não ser árabes é a senha para fazer parte do novo Israel e, algo que ajudará a distingui-los dos “árabes” de Israel, que são descritos como pessoas ou seres humanos inferiores, tendo sido, portanto, transformados em cidadãos de segunda categoria. Há muito trabalho a ser feito nesse aspecto, para todos os que buscam uma mudança a partir do interior de Israel.
Algumas coisas são lógicas. Entendemos por que alguns dos judeus norte-africanos se mudaram para as colônias, saindo dos bairros pobres de Jerusalém. Isso era compreensível. Eles moravam em favelas e lhes ofereceram uma casa espaçosa na Cisjordânia. Foram para lá com o apoio do governo. Os assentamentos para os judeus árabes em Jerusalém foram construídos perto de Jerusalém, não dentro da Cisjordânia.
Mas hoje em dia, não tenho certeza até que ponto o governo israelense pode continuar com isso. Ele não tem solução econômica para a desigualdade entre os que têm posses e os despossuídos. Esta é uma situação que ele próprio criou. E, francamente, o governo nem sequer têm mais {à disposição] os magos da economia liberal.
O que você está dizendo, pelo menos indiretamente, significa que os trabalhadores israelenses do setor de alta tecnologia e os palestinos têm o capital israelense como um inimigo comum. Isso significa que há uma possibilidade de eles se unirem contra o mesmo inimigo?
Não no futuro próximo, porque, infelizmente, essas pessoas que trabalham com alta tecnologia também são doutrinadas pela visão racista sionista de que os palestinos são não-europeus, e não parceiros iguais. Mas isso pode mudar. Não quero parecer excessivamente otimista, porém as pessoas que trabalham no sistema médico israelense sabem que 50% dos médicos em Israel são palestinos e que muitos dos chefes de departamentos nos hospitais também o são. Talvez isso ajude a reumanizar os palestinos aos olhos da elite asquenazita (1) de Israel. Mas temos que esperar para ver, pois isso ainda não aconteceu.
A verdadeira esperança de mudança está em outro lado. Existe a necessidade, que neste momento parece utópica, de uma aliança entre os judeus que vieram de países árabes e muçulmanos e os palestinos em toda a Palestina histórica. Sei que isso não vai acontecer muito em breve, e não tenho certeza se vai acontecer algum dia. Mas eu dedicaria a maior parte dos esforços nisso.
Como podem os palestinos evitar seguir o mesmo caminho que a África do Sul? Como defensor da Iniciativa por um Estado Democrático Único (2), de que forma um estado desse tipo sob o sistema capitalista conseguiria evitar manter as antigas relações de poder sob uma forma distinta?
A Iniciativa está tentando encontrar pontes entre a esquerda e algumas das forças políticas que surgiram na Palestina após a década de 1970, incluindo as forças políticas islâmicas. Vemos que há muito espaço comum, não só para libertar o país da colonização, mas para construir um novo país, que se baseie em políticas sociais e econômicas igualitárias.
O que não queremos é o compromisso que Mandela fez na África do Sul. Para ver o final do apartheid, Mandela aceitou permitir que os interesses capitalistas permanecessem poderosos de uma forma que não resolveu as questões mais fundamentais da sociedade e da economia sul-africanas. É melhor do que ter mantido o apartheid, mas criou novos problemas.
A forma de evitar essa realidade pós-apartheid é garantir que, enquanto discutimos os meios para a descolonização, também se desenvolva uma perspectiva social e econômica pós-colonial. Aplicando-se os meios utilizados para a descolonização pode-se construir uma sociedade mais justa. Nomeadamente, não somente nos termos da relação entre judeus e palestinos, que é o objetivo principal, mas também entre as classes, entre as áreas rurais da periferia e o centro, e assim por diante.
Cabe realmente à esquerda palestina redefinir sua identidade e objetivos e olhar aberta e criticamente para os erros que cometeu na década de 1970. É daí que pode provir essa energia. Na esquerda, acreditamos em intelectuais, intelectuais orgânicos, e em encarar de forma profunda os problemas e encontrar soluções. Mas também precisamos estar em contato com os movimentos e receber o apoio das próprias pessoas.
Quem você acha que tem a capacidade para executar as mudanças? Concordo com você que a esquerda palestina precisa de uma perspectiva melhor. Mas os palestinos são em sua maioria excluídos da economia israelense e simplesmente ir a manifestações significa correr o risco de ser baleado por soldados israelenses. O que será necessário para mudar o equilíbrio de poder?
Muita gente sabe o que precisa ser feito. Mas somos todos muito ruins em saber como fazê-lo. Temos de levar em conta [o fato de] que a sociedade palestina é a mais jovem do mundo. Cinquenta por cento dos palestinos têm menos de 18 anos. E essa geração mais jovem tem algumas ideias claras de quem é e para onde quer se dirigir.
Ao contrário da política feita de cima para baixo, seja dentro de Israel ou nos territórios palestinos ocupados, onde as pessoas estão divididas ideológica e politicamente, a geração mais jovem está muito mais unificada em sua análise da realidade e em sua visão de futuro. Essas energias precisam encontrar seu caminho dentro das estruturas de representação e de direção que possar impulsionar a todos nós na direção correta.
Vivenciamos isso tanto no Ocidente em 2008 como durante a chamada Primavera Árabe em 2011-2. Havia muitas dúvidas em colocar as energias em problemas de organização. Considerava-se que a organização criava burocracias, e as burocracias amorteciam essas energias e se tornavam corruptas. Isto é o que se via no mundo árabe e no Ocidente.
Portanto, é preciso que haja uma fusão das energias revolucionárias existentes. Creio que a esquerda sempre percebeu que é preciso organização e representação. Pode haver influências anarquistas, mas elas nem sempre funcionam como uma força transformadora na prática. Temos acordo em que não é fácil saber exatamente como transformar a situação.
Uma das iniciativas mais interessantes, que espero que irá incluir os palestinos em Israel, é a de reorganizar a OLP, ou encontrar um substituto para ela. Todos necessitamos que exista uma liderança palestina mais aceita e mais democrática que nos impulsione na direção correta. É mais fácil falar do que fazer, é claro.
Como poderia um novo Estado ser forjado, idealmente, com relações econômicas divorciadas do último século de guerra sionista? Como funcionaria economicamente, se não há guerra para gerar lucros constantemente?
Isso está ligado a todo o processo de descolonização. Em primeiro lugar, deve-se desmantelar as instituições coloniais racistas. Essas instituições estão baseadas no capitalismo. O principal problema não é tanto a alta tecnologia militarizada, mas a questão da descolonização.
A energia que necessária estaria em uma fonte tão diferente da segurança que não acho que você tenha que se preocupar muito com isso. Porque ou as pessoas concordam com isso ou não. E se o fizerem, a comunidade de alta tecnologia também teria que contribuir com sua parte para a construção de um Estado pós-colonial e priorizar, por exemplo, projetos de absorção dos refugiados palestinos (uma vez que a implementação do direito de retorno seria crucial para uma solução justa) e fazer parte do esforço para redistribuir terras e propriedades e elaborar um mecanismo crível de compensação [aos refugiados].
O ponto de entrada é realmente o do desmantelamento das instituições colonialistas. Essas instituições estão agora tão intimamente conectadas ao sistema capitalista que seu próprio desmantelamento ou enfraquecimento também pode começar com mudanças na natureza econômica do estado.
Os movimentos de protesto de 2011 em Israel mostraram tanto um potencial quanto limitações. O movimento era enorme, mas desmoronou assim que alguém mencionou a Palestina. Aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo que a Primavera Árabe, mas parece que não havia nenhuma conexão com o que estava acontecendo no Norte da África. Isso era inevitável?
Permitam-me dizer o seguinte: para mudar a realidade na prática, as nossas maiores esperanças não são de mudança a partir do interior da sociedade israelense. Se quisermos uma mudança na Palestina, ela não viria de dentro da sociedade judaica, mas da capacidade de os palestinos terem mais unidade e do mundo muçulmano e árabe de apoiá-los.
O apoio das sociedades ou dos governos ocidentais à causa da libertação da Palestina pode significar uma mudança. Mas quem aguardar por mudanças a partir do interior de Israel como um componente importante na transformação da situação irá, infelizmente, se desapontar.
Dito isso, as coisas são mais dialéticas. Se considerarmos todas essas questões sobre as que falei – uma mudança no mundo muçulmano e na maneira como os governos ocidentais estão atuando – elas podem ter uma influência na capacidade de os israelenses serem mais assertivos e talvez contribuir para a mudança.
Eu ficaria muito surpreso se o movimento atual fizesse isso. É um movimento impressionante. Cem mil pessoas cercando o Knesset israelense na segunda-feira (dia 27 de fevereiro) é uma demonstração de força. Mas essas mesmas pessoas tratarão de se assegurar que a questão da Palestina não esteja conectada à sua agenda e que os palestinos israelenses não façam parte desse movimento de protesto. E esse será o motivo de seu fracasso.
Talvez um dia eles percebam que, se quiserem mudar o sistema político israelense a partir de dentro, isso terá que ser feito através da cooperação árabe-judaica. Não se pode fazer isso sem os palestinos em Israel. Mas Israel se tornou uma sociedade tão racista que, para a grande maioria dos judeus, este é um cenário impensável.
Com quem os socialistas na Alemanha e em outros lugares deveriam estabelecer vínculos? Você não vê muito motivo para ter esperanças em Israel, e o Fatah e o Hamas estão em decadência por causa da corrupção. Quem são os nossos parceiros na região?
Há uma vibrante sociedade civil que precisa do apoio de pessoas do exterior e está muito bem-organizada na Cisjordânia. Mesmo sob o Hamas, em Gaza, há liberdade suficiente para agir. E a mesma coisa é verdadeira em relação à sociedade palestina dentro de Israel.
E há uma evolução positiva. Os judeus não estão criando mais suas próprias entidades não governamentais. Eles entendem os limites [colocados pelo] poder. Então, se você for um judeu antissionista, você deverá agora se unir a uma ONG palestina em vez de criar a sua própria. Alguns dos movimentos nacionais palestinos dentro de Israel costumavam dizer: “que os judeus desenvolvam sua própria massa crítica e nós desenvolveremos a nossa”. Agora há um entendimento de que é preciso caminhar juntos.
Você pode vê-lo no Balad, o partido nacional [árabe] mais importante dentro de Israel. Embora nunca tenha proibido os cidadãos judeus israelenses de ingressarem, agora, o partido está recrutando ativamente judeus israelenses, tanto para o partido quanto por meio de uma rede de organizações da sociedade civil conectada ao partido.
Há também um chamado de 150 ONGs palestinas dentro de Israel e dos territórios ocupados para a campanha de boicote, desinvestimento e sanções (BDS). É uma convocatória muito importante e algo com o que as forças socialistas e progressistas na Europa estão dispostas a contribuir. Sei como isso é difícil na Alemanha, devido à legislação e à declaração no Bundestag (3). Porém, isso não deve nos demover.
Há também uma nova iniciativa interessante. A OLP iniciou comitês internacionais contra o apartheid israelense em todo o mundo. Isso pode dar uma nova energia ao BDS ou ampliá-lo ainda mais. Penso que essas iniciativas são muito importantes. Vocês devem continuar a se manter ativos e mantê-las.
Uma última pergunta. Você falará em Berlim novamente em maio, na conferência do Marxismuss. O assunto são os 75 anos da Nakba, mas também é uma oportunidade para abordar alguns dos problemas que temos na Alemanha. O nosso problema não é apenas a resolução do Bundestag (4), mas a autocensura e a falta de autoconfiança da esquerda alemã em relação à Palestina. Quão importante você acha que é falar sobre a questão da Palestina para uma audiência alemã?
Muito, muito importante. A Alemanha desempenha um papel muito importante em toda essa questão. A culpa justificada da Alemanha [em relação ao Holocausto] é manipulada para imunizar Israel. A Alemanha é uma força política extremamente decisiva na Europa. Mas não se atreve a adotar quaisquer ações ousadas enquanto sistema político, o que beneficiaria os palestinos e aliviaria seu sofrimento sob a opressão israelense.
É muito importante encontrar uma maneira de convencer o público alemão de que eles não devem se deixar intimidar. Venho de uma família judia alemã. Sei muito bem o que aconteceu na Alemanha. Não devemos nos deixar intimidar por esse capítulo específico da história. Pelo contrário, ele significa que os alemães devem ser ainda mais sensíveis ao sofrimento dos palestinos.
A Alemanha não deve negar o passado, mas sim dizer que esse passado requer uma posição moral sobre a Palestina, não apenas sobre Israel. Os palestinos são um elo na cadeia de vitimização que começou em 1933. As pessoas na Alemanha que produzem conhecimento sobre a Palestina – acadêmicos, jornalistas especialistas e, definitivamente, políticos – não podem agir como se fizessem parte da propaganda israelense.
Eu sei que eles são acadêmicos, jornalistas e políticos inteligentes. Realmente me sinto desconsolado ao vê-los dizer coisas que eles sabem que não são corretas. A única razão pela qual estão dizendo isso é por causa da conveniência política, acadêmica ou jornalística. Eles não querem ser condenados como antissemitas. Isso é mais importante na Alemanha do que em qualquer outro país.
Temos uma grande tarefa de convencê-los de que, apoiar os palestinos é ser antirracista e anticolonialista e, portanto, não pode ser um ato antissemita baseado na crença equivocada de que o antissemitismo é racismo. É mais fácil falar do que fazer. Mas creio que os acadêmicos devem desempenhar um papel muito importante na Alemanha – em sendo precisos, profissionais corretos, e não utilizar de forma incorreta seu papel como acadêmicos.
A Alemanha sempre respeitou seus acadêmicos, jornalistas, escritores, intelectuais – mas quando se trata da Palestina, esses profissionais se comportam como pessoas sem espinha dorsal, evitando a busca da verdade. E isso é algo que creio que eles deveriam considerar. Espero que possamos ajudá-los nesse processo.
Estamos quase sem tempo. Há algo que você gostaria de dizer antes de terminarmos?
Não devemos desistir da Alemanha. Estou começando a desistir das chances de mudar a sociedade israelense, mas não estou desistindo da geração alemã mais jovem. Devemos continuar a olhar para a Alemanha como um lugar em que há processos que ainda não amadureceram. E a Alemanha está sempre se autoconstruindo.
NOTAS
1 Judeus oriundos da Europa
2 https://www.odsi.co/en/https://www.odsi.co/en/https://www.odsi.co/en/https://www.odsi.co/en/https://www.odsi.co/en/https://www.odsi.co/en/
3 A Câmara de Deputados alemã.
4 Pappe se refere à resolução de considerar o BDS como antissemita. https://www.mppm-palestina.org/content/contrariando-liberdade-de-criticar-israel-parlamento-alemao-designa-movimento-bds-de-boicote
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