Desde a posse do novo e mais extremista governo na história de Israel, que inclui um ministro de segurança nacional “Kahanista”1 que foi condenado anteriormente por apoiar uma organização terrorista, dezenas de milhares de israelenses têm saído às ruas todas as semanas em protesto, no que é chamado de “luta pela democracia israelense”.
Esta descrição presume, é claro, que a democracia israelense de fato exista e que esteja ameaçada agora por figuras fascistas empenhadas em destruí-la.
Um exame meticuloso das mensagens vindas dos porta-vozes e dos participantes nestas manifestações, no entanto, revela que o seu verdadeiro objetivo é o de fazer recuar o relógio da história o suficiente para que o regime do apartheid em Israel possa voltar a ser propagandeado como uma democracia funcional, permitindo que a comunidade internacional continue a fechar os olhos aos crimes que comete.
Sob a cobertura dessa “luta pela democracia”, o ex-chefe do Estado-Maior israelense Moshe Ya’alon, com tanto sangue palestino em suas mãos, pode buscar sua reabilitação como um orador-chave nas manifestações, mencionando valores de igualdade e democracia.
Outro cavaleiro da democracia ao microfone foi o ex-chefe da polícia Roni Alsheikh, principal promotor do falsa e cruel acusação contra o falecido Yakoub Abu-al-Qiyan. Qiyan foi morto pela polícia israelense durante a demolição da aldeia beduína de Umm al-Hiran e, posteriormente, acusado por Alsheikh de pertencer ao grupo Estado Islâmico (EI) – uma mentira atroz que Alsheikh continuou repetindo mesmo depois de ter sido totalmente desmascarada. Ninguém nas recentes manifestações disse nada para recordá-lo sobre isso.
Em um aparente aceno ao feminismo, a primeira mulher a terminar o Curso de Oficiais Navais de Israel também foi convidada a discursar em uma das manifestações, porque seria uma afronta a Deus que tal protesto democrático excluísse oradoras mulheres. Evidentemente, a partir dessa perspectiva, o fato de que combatentes mulheres também participaram da mais recente ação militar israelense letal em Jericó é uma marca de respeito pelas gloriosas realizações do feminismo israelense.
“Suprimir e silenciar”
O militarismo de Israel também está se tornando um componente-chave desses protestos mais além dos limites do palanque dos oradores. Ex-altos funcionários dos serviços de segurança estão se unindo às fileiras dos defensores da democracia no Twitter.
Notável entre eles é o ex-primeiro-ministro e chefe de gabinete, Ehud Barak, que neste cargo foi responsável pelo assassinato de 13 cidadãos palestinos durante protestos no início da Segunda Intifada em outubro de 2000. Ele também é responsável, talvez mais do que qualquer outro político israelense, por prejudicar a relação entre os cidadãos árabes e o Estado.
Outro é o ex-deputado do Meretz2 Yair Golan, que prometeu “suprimir e silenciar” as vozes em seu partido que procuravam tornar o Meretz um partido unificado judaico-árabe.
Ambos, tendo dedicado a maior parte de suas vidas adultas à repressão, destruição e intensificação da ocupação, estão agora convocando uma rebelião civil contra o novo governo – em nome da democracia.
E quem está faltando nesta casa comum, como de costume? Concidadãos que são palestinos, é claro
O militarismo a serviço da “luta pela democracia” atingiu proporções grotescas, com os camaradas de armas, um tipo de iniciativa pontual, que emitiu uma “convocação de emergência pela democracia”, convidando o público a se unir à “irmandade de soldados da reserva na odisseia para salvar a democracia”.
Aqueles que preferem tomar de assalto a democracia israelense usando tanques agora podem contemplar o grupo Soldados dos Batalhões de Blindados pela Democracia, que organizou um comboio de protesto a partir da colina de Latrun3 até o Monte Herzl, em Jerusalém.
Ao lado de criminosos de guerra, soldados da reserva, soldados de corpos blindados e expoentes de 50 outros tons do militarismo israelense, os colonos também se juntaram à luta pela democracia.
Declarando que “nós do bloco Etzion4 também estamos lutando contra a reforma que está dividindo a nação”, eles convidaram a todos – “laicos e religiosos, direita e esquerda, Ashkenazim e Mizrahim5, mulheres e homens, jovens e velhos” – a fazer parte do seu protesto com o objetivo de “preservar nossa casa comum”. E quem está faltando nesta casa comum, como de costume? Concidadãos que são palestinos, é claro.
Perpetuação da ocupação
A dissidência dos colonos poderia provocar risos como uma manifestação especialmente ridícula no atual turbilhão político, mas, na verdade, pode muito bem ser considerada como um dos protestos mais sinceros contra o que está acontecendo em Israel.
Os colonos, mais do que ninguém, têm interesse em manter a aparência de democracia que os protege contra sanções por seus crimes na Cisjordânia – porque rachaduras na imagem democrática de Israel também poderiam prejudicar o escudo protetor que o resto do mundo lhe fornece para a perpetuação da ocupação.
Os colonos não têm interesse no caos que está sendo criado pelo governo Smotrich-Ben-Gvir6, que já está provocando críticas internacionais generalizadas.
Eles prefeririam muito mais o governo Lapid-Gantz7, que atende a todas as suas necessidades e faz todo o trabalho para eles sem perturbar outros setores da sociedade.
Poderia se argumentar, como muitas boas pessoas o fazem, que as ações deste governo são tão perigosas que exigem protestos em massa, não seletivos, porque a pauta mais urgente é paralisar as “reformas” que ele está liderando.
Mas se há uma coisa que aprendemos com os protestos de Balfour8 é que unir-se contra o que não queremos não é suficiente, a menos que também formulemos e articulemos uma visão alternativa.
Embora os protestos de Balfour tenham conseguido derrubar o antigo governo de Benjamin Netanyahu em 2021, o governo que se seguiu foi o mais mortífero contra os palestinos em cerca de duas décadas: um governo que acabou se dissolvendo por conta própria, para não colocar em risco o regime do apartheid na Cisjordânia.
É verdade que adeptos do autodenominado bloco anti-ocupação estão mantendo uma presença permanente nos protestos atuais e continuam, com admirável tenacidade, a apresentar um lembrete visível sobre os fatos da ocupação.
Mas, aparentemente, os protestos estão consolidando um caráter bem claro em torno de um tema central: uma visão nostálgica sobre um Estado “judeu e democrático” – que idolatra o exército e um sistema judicial que justificou todos os crimes do exército sob um regime supremacista ao qual o atual movimento de protesto está longe de renunciar.
Não nos surpreendamos, pois, que, mesmo entre o bloco anti-ocupação nas várias manifestações, quase não se encontrem palestinos.
Não se trata apenas do mar de bandeiras israelenses distribuídas nesses protestos com uma obsessão assustadora; trata-se de algo muito mais profundo.
Enquanto o movimento Darkenu (“Nosso Caminho”) – que se define como “o maior movimento apartidário da sociedade civil em Israel” opera para fortalecer “os valores democráticos de Israel” – está implorando a Yariv Levin, o vice-primeiro-ministro e ministro da Justiça, que interrompa suas reformas judiciais planejadas para não “entregar nossos soldados ao Tribunal Internacional de Crimes de Guerra de Haia”, seria preciso muita audácia para esperar que os cidadãos árabes participassem desses protestos.
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