Há exatos três anos, no dia 18 de outubro de 2019, eclodiu no Chile uma das maiores ondas de protesto social dos últimos anos na América Latina. Tudo começou com o anúncio de um aumento de preços do metrô de Santiago no dia 6 de outubro. Em reação ao aumento, os estudates secundaristas da capital chilena começaram o movimento de “evasion”, ou seja, pular a catraca do metrô como forma de evitar o pagamento.
As ações de boicote e protesto se intensificaram até que, em 18 de outubro de 2019, vários terminais metroviários foram paralisados pela ação dos manifestantes, o que levou o ministro do Interior e Segurança Pública, Andrés Chadwick a apelar à Lei de Segurança do Estado, uma espécie de estado de emergência com vistas a conter os protestos e as ações dos estudantes.
Na noite de 18 de outubro, as manifestações se massificaram e tomaram a capital do país, até que no dia 23 de outubro o Estado de Emergência já havia sido decretado em 15 das 16 capitais regionais.
Como tem ocorrido em outras manifestações políticas e sociais, os protestos, que haviam começado pela questão concreta do aumento das tarifas, logo assumiram as características de um processo social mais amplo. Vieram à tona e se tornaram bandeira dos manifestantes questões como a desigualdade social, o problema indígena, os resquícios pinochetistas do regime, os preços dos alimentos e o rechaço à classe política.
A resposta do presidente Sebastian Piñera foi brutal. Segundo dados do próprio governo, 32 pessoas morreram nos protestos e 3.400 foram hospitalizadas devido a confrontos. Já segundo a Anistia Internacional, os dados são ainda mais alarmantes: 12.547 pessoas teriam sido feridas, 1.980 das quais com armas de fogo, além de 347 hospitalizados com lesões oculares pela ação dos “carabineiros”.
As manifestações culminaram com a convocação da “marcha más grande de Chile” (a maior marcha do Chile), no dia 25 de outubro que reuniu dezenas de milhares de pessoas no centro da capital. Diante da grandeza do movimento, o governo logo foi obrigado a recuar, anunciando a “Nova Agenda Social”, que incluía medidas relativas a aposentadorias, saúde, salários, energia, impostos e administração pública.
Mas a grande vitória veio no dia 10 de novembro, com o anúncio por parte do governo de que iniciaria a redação de uma nova proposta de Constituição. O objetivo seria acabar de vez com o legado Pinochetista e extinguir a Constituição ditatorial aprovada em 1980.
Desenlace e lições do processo chileno
Toda a América Latina olhou com enorme esperança para o processo chileno. Hoje, passados três anos dos eventos, devemos avaliar suas consequências e tirar algumas conclusões.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer o fato de que as enormes e heroicas manifestações do povo chileno não foram o suficiente para derrubar Piñera, que acabou levando seu mandato até o fim. Esse foi um grande limite do processo. Por outro lado, três grandes vitórias ocorreram: a definição de que o Chile teria uma nova Constituição; a eleição de uma Assembleia Constituinte com um forte peso da esquerda e dos movimentos sociais e a vitória de Gabriel Boric nas eleições presidenciais de dezembro de 2021. Mas mesmo aqui, é preciso fazer uma ressalva: apesar da definição de que o Chile terá uma nova Constituição e do peso da esquerda na nova Assembleia, a proposta de texto constitucional submetida ao plebiscito em setembro de 2022 foi rejeitada por 61,8% dos eleitores, contra 38,1% de aprovação. É claro que as fakenews e a campanha de terror da direita chilena tiveram um papel importante na rejeição do texto, extremamente progressivo em seu conjunto. Mas uma diferença tão grande na votação não nos permite atribuir a derrota a uma mera campanha bem articulada. É preciso admitir também que a votação no plebiscito reflete, de alguma maneira, a correlação de forças na sociedade e que, nesse sentido, a esquerda chilena e latinoamericana parece ter menosprezado, pelo menos em parte, a força de seu inimigo. O conservadorismo e o fascismo chilenos sofreram uma dura derrota com as manifestações de 2019 e a vitória de Boric, mas não morreram e conseguiram vencer o round do plebiscito, provocando uma onda relativamente forte de desmoralização não apenas no Chile, mas em todo o ativismo latinoamericano.
Esse fato deve nos alertar sobre a situação no Brasil. Bolsonaro já apresentou num passado recente níveis baixíssimos de aprovação e intenção de votos, e muitos o deram como morto. Típico pensamento mágico e autoegano. Não é esse o cenário hoje. As últimas pesquisas não param de dar sinais de crescimento do fascista, ora entre os mais pobres, ora entre as mulheres, ora entre os que recebem o Auxílio Brasil. Bolsonaro está beliscando perigosamente os calcanhares de Lula e ainda pode dar o bote, se é que os instituos de pesquisa refletem a realidade. A vitória de Bolsonaro representaria, seguramente, a consolidação de uma situação profundamente reacionária com traços ou tendências contrarrevolucionários. Uma geração de lutadores seria aniquilada psicologicamente, com consequências de longo prazo para toda a América Latina e o mundo. O movimento passaria por um longo e doloroso processo de reconstrução, enquanto o fascismo disporia de todos os mecanismos do poder e aceleraria fortemente sua ofensiva. Tal é o tamanho do desafio que enfrentamos neste segundo turno. Se o Chile deixa uma lição é: nunca nada está ganho.
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