Todos os anos, desde 1948, os palestinos na Palestina histórica e na diáspora recordam no dia 15 de maio a Nakba (palavra em árabe para catástrofe) contínua, relembrando o êxodo forçado de 750.000 palestinos autóctones de suas terras e a limpeza étnica das cidades e aldeias nas mãos das forças sionistas.
Em um período em que os palestinos estão se confrontando com campanhas ferozes e sem remorsos para deslegitimar sua narrativa e sufocar sua crítica da opressão de Israel contra eles, com a falsa premissa que equipara antissionismo e antissemitismo, este artigo tenta revisitar a Nakba como um ponto de partida para desconstruir o sionismo e redefini-lo como um projeto colonial com viés de gênero.
O texto coloca as mulheres no centro de um exame da Nakba para ressaltar as estratégias sionistas para instrumentalizar a violência sexual como um recurso primário para eliminar os palestinos autóctones e manter o regime israelense de colonialismo de povoamento.
O sionismo como um projeto de colonialismo de povoamento
Desde meados dos anos 1990, o paradigma de colonialismo de povoamento ganhou proeminência nos estudos sobre a Palestina. Os debates que emergiram dos debates sobre a validade e aplicabilidade do paradigma de colonialismo de povoamento ao contexto da Palestina (conduzidos por alguns estudiosos como Said, Ilan Pappe, Lorenzo Veracini, Kimmerling, etc.) marcam um giro intelectual e epistemológico significativo. Segundo essa argumentação, o sionismo é percebido como um movimento colonial que se estrutura pela lógica da eliminação das populações originárias a fim de construir uma colônia de povoamento de maioria judaica a partir da despossessão forçada da terra.
Historicamente, o sionismo emergiu, ao final do século XIX, impulsionado pela colonização europeia. O movimento sionista não somente estabeleceu uma aliança com o imperialismo britânico para executar seu plano de criar um novo estado judaico na Palestina, mas se apresentou também como um aliado involucrado na colonização. De fato, o sionismo claramente declarou-se como “um movimento judaico para a colonização de povoamento no Oriente”.
Assim como na maioria dos empreendimentos de colonialismo de povoamento, a subsequente despossessão da população palestina autóctone foi, e é, um resultado sistemático da lógica da eliminação que implica a remoção da população autóctone “inferior” (palestinos). Consequentemente, os sionistas travaram várias guerras (começando com a de1948) contra os palestinos autóctones que foram submetidos a uma campanha contínua de limpeza étnica.
Atacar as mulheres, as produtoras da geração subsequente, está no centro da estratégia de eliminação dos sionistas, em que a violência de gênero contra as mulheres palestinas foi utilizada como um instrumento para subjugar e descartar o povo palestino como um todo.
Violência sexual e de gênero a serviço do colonialismo de povoamento
A colonização, como argumentam as feministas decoloniais, é um ato contra as mulheres executado por forças imperiais predominantemente masculinas. Os colonizadores empregam a violência sexual como uma ferramenta para penetrar, subjugar e silenciar a despossessão da [população] indígena.
A violência sexual contra mulheres indígenas pode ser claramente rastreada por meio da história da colonização dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, etc. O estupro, a mutilação, o assassinato em massa, a esterilização e a brutalidade sexual estão entre outros atos que foram utilizados para destruir as populações autóctones e sufocar sua capacidade de resistir e, portanto, estabelecer as bases para a conquista colonialista. Por exemplo, Andrew Jackson, o sétimo presidente dos Estados Unidos de 1829 a 1837, supervisionou a mutilação de cerca de 800 índios Creek; ele e seus homens massacraram os cadáveres indígenas, cortando seus narizes para contar e preservar um registro dos mortos.
Os colonizadores miraram as mulheres nativas porque eram as produtoras da geração subsequente e, consequentemente, representavam uma “ameaça demográfica” ao domínio exclusivo do colonizador sobre o território expropriado. [1]
De forma similar, o sionismo como um projeto de colonialismo de povoamento é inerentemente eliminatório e busca exterminar os corpos dos palestinos autóctones e expropriar suas terras para erigir uma nova entidade colonial em seu lugar. Isso não pode ser separado da “lógica de violência sexual” contra as mulheres palestinas autóctones e a violência não é, de forma nenhuma, um epifenômeno ou consequência acidental de uma opressão sionista. Ela está, pelo contrário, embutida na ideologia do sionismo e uma produção sistemática das mentalidades colonialistas e orientalistas de seus ancestrais.
As mulheres palestinas têm sido submetidas a uma violência sionista desproporcional que tem como alvo seus corpos, sexualidade e identidades. Elas suportaram o maior peso devido à contínua colonização de povoamento, não somente por sua identidade de gênero como mulheres, mas também por sua identidade nacional como pertencentes a uma população “demograficamente indesejável”.
De fato, os corpos das mulheres se tornaram um campo de batalha em que as forças sionistas executaram uma limpeza étnica dos palestinos autóctones.
Estuprando a Palestina em 1948 e a invasão do corpo das mulheres
Durante a guerra de 1948 (e depois), as forças sionistas utilizaram deliberadamente ataques bem calculados contra as mulheres palestinas para intimidar e forçar a população indígena a fugir.
Os sionistas exploraram as percepções orientalizadas da sexualidade palestina, tais como as relacionadas à “honra das mulheres”, para expelir os palestinos de suas terras e quebrar sua capacidade de resistir à opressão colonial.
Consequentemente, muitas famílias palestinas fugiram de suas casas principalmente devido aos temores de que as mulheres fossem estupradas pelas forças sionistas. A disseminação de histórias terríveis em todo o país acerca do estupro de mulheres nas aldeias atacadas pelas forças sionistas desempenhou um papel significativo para apavorar massivamente e forçou a os homens a priorizar a honra das mulheres da família acima da defesa de suas terras, o que facilitou os planos de limpeza étnica.
Um exemplo brutal da tática sionista de estupro aparece no notório massacre na aldeia de Deir Yassin em abril de1948 quando cerca de 300 moradores foram mortos. Segundo o Plano Dalet (ou plano D, como era o nome dado ao plano principal de operações na guerra de 1948), a aldeia estava marcada para ser etnicamente limpa. As milicias sionistas atacaram a aldeia em nove de abril; mataram uma dezena de seus habitantes, enquanto os demais moradores foram então reunidos em um local e foram assassinados. O massacre foi associado a atrocidades explicitas de gênero, já que foi relatado que muitas mulheres palestinas foram sexualmente assediadas, estupradas e, então, assassinadas. [2]
Uma onda de terror massivo envolveu as outras aldeias após o massacre de Deir Yassin; os poucos sobreviventes contaram histórias atrozes sobre o massacre que revelaram que os sionistas tinham como alvo deliberado os corpos das mulheres. Consequentemente, sob o pesado fardo do medo de um destino similar e da luta interna para proteger sua honra, muitos palestinos de aldeias vizinhas ficaram aterrorizados e fugiram.
Ainda que não existam estatísticas precisas de casos de estupros cometidos durante a Nakba, há amplas evidências relatadas pela Cruz Vermelha Internacional, pelas confissões dos estupradores e nos arquivos desclassificados do estado de Israel. [3] As mulheres e meninas palestinas foram estupradas nas aldeias e nas cidades que as forças sionistas tinham atacado, tais como Acre, Ramle, Deir Yassin e Tantura, entre outras. Por exemplo, David Ben-Gurion, primeiro chefe de governo, discutiu abertamente o estupro e a opressão de mulheres palestinas durante 1948 em seu diário. Ben Gurion foi informado sobre cada caso e os mencionou em seu diário — apesar de que alguns casos foram censurados pelos editores, por exemplo, o notório estupro coletivo no posto militar de Nirim, que foi revelado em outubro de 2003, quando o jornal israelense, Haaretz, publicou seus terríveis detalhes com base nos testemunhos dos próprios estupradores.
As atrocidades e violações dos corpos e da sexualidade das mulheres não pararam por aqui. E ter como alvos as mulheres palestinas não se limitou às atrocidades cometidas durante a guerra de 1948.
A violência sexual e de gênero está sempre presente nas políticas e práticas patrocinadas pelo estado. As mulheres ainda são assassinadas em checkpoints, sexual e verbalmente assediadas, interrogadas, aterrorizadas, seu tecido social destruído, suas casas invadidas à noite, ou, pior, demolidas, têm seus direitos de reunificação com seus parceiros e famílias negados, etc.; todos esses atos visavam finalmente a limpeza étnica dos palestinos.
Conclusão
Redefinir o sionismo como uma empresa colonial contra as mulheres é fundamental para compreender as circunstâncias que produziram, e continuam a reproduzir, a atual opressão de gênero contra as mulheres palestinas que têm intersecção inescapável com as práticas coloniais de despossessão coletiva, deslocamento e limpeza étnica contra a população autóctone palestina.
É por meio da invasão dos corpos das mulheres autóctones que o projeto de colonização de povoamento prospera e mantém sua sociedade exógena. Portanto, desfazer essas estruturas enviesadas de gênero é colocar no centro a libertação das mulheres como um fator chave no processo de descolonização.
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