No dia 11, a jornalista palestino-americana Shireen Abu Akleh, veterana correspondente da rede Al Jazeera na Palestina, foi assassinada por uma bala que, quase certamente, proveio dos onipresentes soldados de ocupação israelense, desta vez no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia. O que se repete por mais de 55 anos, desde a guerra de 1967, em que a brutalidade da ocupação se somou ao sofrimento imposto ao povo palestino a partir de 1948. Nesse ano, dois terços da população original da Palestina foram expulsos e suas terra e propriedades foram indevidamente apropriadas pelo estado israelense e entregues aos colonos judaicos. Os perpetradores eram os antecessores dos soldados (e seus mandantes) que mataram Shireen e tantos outros palestinos e palestinas desde então. Não se pode esquecer que os dois milhões de palestinos de Gaza, descendentes de refugiados das guerras de 1948 e 1967, estão há mais de dez anos bloqueados por ar, mar e terra pelo poder militar israelense, no que se constitui na maior prisão a céu aberto do planeta.
O velório e especialmente o enterro de Shireen comoveram o mais profundo da sociedade palestina, em todas as divisões impostas pelos sionistas, mas particularmente na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Um número incalculável se precipitou pelas estreitas ruas da capital da Palestina em repúdio a mais um crime israelense.
Depois dos horrores da invasão russa e da guerra na Ucrânia, os olhos do mundo se voltaram por dois dias para a Palestina. Aproveitando-se do foco em outro lugar do planeta, em 4 de maio, a Corte Suprema israelense já tinha autorizado a expulsão de centenas de famílias palestinas na localidade de Al Mufagara, perto de Hebron, na Cisjordânia. Recordemos que as grandes manifestações de maio de 2021 na Palestina foram deflagradas em resposta à ameaça de expulsão de algumas poucas famílias em subúrbio de Jerusalém Oriental, Sheikh Jarrah.
A potência e a massividade das manifestações desde o assassinato de Shireen podem ser o sinal para mais um ciclo de resistência na longa luta palestina. Até o governo Biden foi obrigado a fazer um inacreditavelmente tímido para os padrões da principal potência mundial, falando de sua “preocupação” com o assassinato de uma jornalista que tinha dupla cidadania, palestina e… americana. O caráter de aliado preferencial dos EUA no Oriente Médio e o fato que as armas assassinas do exército israelense são financiadas há muitos anos pelos bilhões de dólares da ajuda militar a Israel. Imaginemos se fosse em outro cenário qual teria sido sua reação.
Desde o Esquerda Online, manifestamos nossa integral solidariedade com a dor dos familiares e amigos de Shireen e aos incontáveis que sentiram esse assassinato como mais uma infâmia sofrida coletivamente pelo povo palestino, que reverenciou e enterrou mais uma mártir da causa pela libertação nacional e social da Palestina. Ressaltamos que a infâmia do estado israelense não se resumiu ao assassinato de mais uma palestina, mas a profanação que assistimos com o ataque brutal realizado contra o cortejo fúnebre, que fez inclusive o caixão em que Shireen seria enterrada fosse quase derrubado no chão, cenas que foram amplamente divulgadas durante a sexta-feira, 13.
Divulgamos a seguir, por sua clara acusação ao exército israelense por este e outros crimes, o artigo do respeitado e valente jornalista Gideon Levy:
O sangue de uma jornalista é mais vermelho do que o de palestinos anônimos?
Por Gideon Levy*
O horror relativo expresso sobre o assassinato de Shireen Abu Akleh é justificado e necessário. É também tardio e arrogante. Agora vocês estão chocados? O sangue de uma jornalista famosa, não importa quão brava e experiente ela era – e ela o era – não é mais vermelho que o sangue de uma estudante secundarista anônima que estava indo para casa em um táxi lotado de mulheres nesta mesma Jenin, um mês atrás, quando foi assassinada pelos tiros de soldados israelenses.
Há um único crime cometido pelos militares sobre o qual a direita e o establishment alguma vez assumirão sua responsabilidade? Pelo menos um?
Foi assim que Hanan Khadour foi morta. O porta-voz do exército tentou, também, colocar em dúvida a identidade dos assassinos: “o tema está sendo investigado”. Um mês se passou e essa “investigação” não resultou em nada, e nunca resultará, mas as dúvidas foram plantadas e se espalharam pelos campos israelenses do negacionismo e supressão, em que ninguém se importa pelo destino de uma palestina de 19 anos, e a consciência morta do país é novamente silenciada. Há um único crime cometido pelos militares sobre o qual a direita e o establishment alguma vez assumirão sua responsabilidade? Pelo menos um?
O caso de Abu Akleh parece ser outra história: uma jornalista internacionalmente reconhecida. No domingo passado, mais um jornalista palestino foi atacado, Basil al-Adra, foi atacado por soldados israelenses nas montanhas ao sul de Hebron e ninguém se importou. E há alguns dias, dois israelenses que atacaram jornalistas durante a guerra em Gaza em maio de 2021 foram condenados a 22 meses de prisão. Que punição será infligida aos soldados que assassinaram, se isso for provado, Abu Akleh? E que punição foi dada sobre quem decidiu e efetuou o desprezível bombardeio dos escritórios da Associated Press em Gaza durante os combates no ano passado? Alguém pagou por esse crime? E em relação aos 13 jornalistas que foram assassinados durante a guerra em Gaza em 2014? E os profissionais do setor médico que foram mortos durante as manifestações junto à cerca de arame farpado que rodeia Gaza, incluindo o jovem de 21 anos, Razan alNajjar, que foi morto pelos soldados apesar de estar vestindo um uniforme branco? Ninguém foi punido. Esses assuntos serão sempre encobertos por uma nuvem de justificativas e pela imunidade automática aos militares e a idolatria aos soldados.
Mesmo se a bala que matou Abu Akleh for encontrada, e mesmo que as imagens mostrem o rosto do atirador, ele será tratado pelos israelenses como um herói que está acima de toda suspeita. É tentador escrever que se palestinos inocentes devem ser mortos por soldados israelenses, é melhor que eles sejam conhecidos e portadores de passaportes americanos como Abu Akleh. Pelo menos o Departamento de Estado dos EUA manifestará um pequeno descontentamento – mas não demasiado – sobre o assassinato sem sentido de um de seus cidadãos por soldados de um de seus aliados.
No momento em que escrevemos esta nota, não estava ainda claro quem matou Abu Akleh. Isso é um êxito da propaganda israelense – semeando dúvidas que os israelenses tomam rapidamente como fato e justificativa, apesar que o mundo não acredita nelas como verdadeiros e em geral tem razão nisso. Quando o menino palestino Mohammed al-Dura foi assassinado em 20001, a propaganda israelense também tentou obscurecer a identidade dos seus assassinos; ela nunca provou suas afirmações, e ninguém as aceitou. A experiência prévia demonstra que os soldados que assassinaram a jovem mulher em um táxi eram os mesmos soldados que poderiam matar uma jornalista. É o mesmo espírito; eles são autorizados a disparar como bem quiserem. Os que não foram punidos pela morte de Hanan continuaram [sua ação] com Shireen.
O crime começou muito antes dos tiros. O crime começa com a incursão em cada cidade, campo de refugiados, aldeia e dormitório na Cisjordânia todas as noites, quando é necessário e principalmente quando não é necessário.
Mas o crime começou muito antes dos tiros. O crime começa com a incursão em cada cidade, campo de refugiados, aldeia e dormitório na Cisjordânia todas as noites, quando é necessário e principalmente quando não é necessário. Os correspondentes militares sempre dirão que isso foi realizado para “deter suspeitos”, sem especificar quem são os suspeitos e por que são suspeitos, e a resistência a essas incursões será sempre vista como “uma perturbação da ordem” – a ordem em que os militares podem fazer o que quiserem e os palestinos não podem fazer nada e certamente não podem demonstrar qualquer resistência.
Abu Akleh morreu como uma heroína, fazendo seu trabalho. Ela era uma jornalista mais valente do que todos os jornalistas israelenses juntos. Ela foi a Jenin e a muitos outros locais ocupados, que muito raramente ou nunca foram visitados e agora a reverenciam em respeito e luto. [Os israelenses] devem também parar de disseminar a propaganda dos militares e do governo com relação à identidade dos assassinos. Até prova em contrário, sem sombra de dúvida, a única conclusão deve ser: os soldados israelenses mataram Shireen Abu Akleh.
*publicado no jornal Haaretz no dia 11 de maio. Tradução: Waldo Mermelstein.
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