As aparências enganam (Sabedoria popular portuguesa).
Surgiu nos últimos dias a notícia de que existiria uma articulação discreta e reservada sendo feita, ao que parece há vários meses, para procurar uma aliança do PT com Alckmin. Estaria sendo considerada a possibilidade de que ele pudesse até ser candidato à vice-presidência com Lula, se decidisse pela filiação ao PSB, de França.
Ninguém sabe o que há de verdadeiro nessa informação. Afinal, outros nomes foram ventilados. Mas o fato é que não houve ainda qualquer desmentido de qualquer das duas partes envolvidas. Também têm circulado boatos sobre alianças para candidaturas ao governo e Senado por São Paulo.
No próximo dia 20, no contexto do novembro negro, voltaremos às ruas com a bandeira fora Bolsonaro. Entretanto, temos que pensar, também, nas eleições de 2020. Pode ser que, até outubro de 2022, algo explosivo ocorra. Mas o mais provável, se as atuais condições de “temperatura e pressão” não se alterarem muito, é que Bolsonaro pode preservar influência sobre uma corrente eleitoral suficiente para garantir uma posição no segundo turno. O que nos coloca diante da questão de qual deve ser a tática eleitoral para o primeiro e, também, segundo turno.
A disjuntiva Frente de Esquerda ou Frente Ampla não é somente sobre cálculos eleitorais. Duas questões são chaves neste debate de tática. Qual é o programa e quem são os candidatos. São duas táticas eleitorais muito diferentes.
Frente de Esquerda é uma aliança entre os partidos que mantêm relações orgânicas com os trabalhadores e os movimentos sociais. São, essencialmente, o PT, PSOL e PCdoB, mas, também, sendo possível, o PSTU, o PCB e a Unidade Popular. Pode ser constituída no primeiro ou no segundo turno. Quando se forma somente no segundo turno, cada partido de esquerda tem seus próprios candidatos no primeiro, mas eles se comprometem em apoio mútuo naquele que for para o segundo turno. O PSOL defende a Frente de Esquerda e aprovou no seu Congresso Nacional a linha de explorar a possibilidade da Frente de Esquerda desde o primeiro turno, mas deixou para decidir nos primeiros meses de 2022.
Os que defendem a tática da Frente Ampla procuram incorporar, pelo menos, o PSB e, possivelmente, o PV, a Rede e há os que sonham com o PSD. O que significa que, se concretizada, o programa da Frente Ampla seria de centro, não de esquerda. Numa Frente, o denominador comum é, invariavelmente, a posição mais moderada.
Os que defendem a tática da Frente Ampla procuram incorporar, pelo menos, o PSB e, possivelmente, o PV, a Rede e há os que sonham com o PSD. O que significa que, se concretizada, o programa da Frente Ampla seria de centro, não de esquerda. Numa Frente, o denominador comum é, invariavelmente, a posição mais moderada. Se a articulação com Alckmin viesse a acontecer seria uma variação da “tática Kirchner” na Argentina. Cristina Kirchner aceitou ser candidata a vice na chapa com Alberto Fernández, uma liderança de uma ala moderadíssima do peronismo. Lula seria candidato à presidência, mas com um “freio de arrumação” preventivo, ao concorrer com um vice do PSDB, ainda que “rompido” com o PSDB. Uma variação ainda mais perigosa da tática da Frente Ampla.
Mais perigosa porque significaria que, além do programa, se renunciaria, à partida, a uma candidatura com perfil de esquerda. Já aprendemos com o desastre do segundo governo Dilma Rousseff, a partir de 2014, quais as consequências de vencer eleições e, depois, tentar governar com o programa dos nossos inimigos de classe. Para que serve uma esquerda que no governo faz a política da direita?
O argumento mais forte é que “contra Bolsonaro, vale tudo”. A premissa é que, se a esquerda renunciar a um programa de reformas estruturais, para defender o “regime democrático”, teria mais chances de derrotar Bolsonaro. Acontece que a aritmética não é a melhor bússola na luta política. Disputa eleitoral é luta de classes.
O cálculo de que se pode ganhar, por um lado, sem perder do outro é irrealista. O atual amplo favoritismo de Lula favorece uma “ilusão de ótica”. A ideia de a “imagem de Lula” é uma âncora suficiente para manter o voto dos setores organizados pelos movimentos sociais, não importa o que seja a campanha e quem sejam os aliados, depois do que aconteceu com o golpe institucional de 2016 contra Dilma Rousseff, é uma irresponsabilidade. Não podemos correr o risco de um novo “Michel Temer” no palácio do Jaburu.
A polêmica sobre a tática eleitoral em 2020 deve ser, portanto, indivisível da tática para derrotar Bolsonaro, nas ruas ou, na pior hipótese, em 2022. Já iniciaram as articulações na esquerda. Não há nada de errado nisso. Uma oposição irreconciliável entre a resistência na ação direta e nas eleições é um erro. As mobilizações de rua devem ser nossa prioridade, porque são elas que abrem o caminho, como em Santiago do Chile.
Mas uma esquerda incapaz de transformar as eleições em uma polarização contra os neofascistas, tampouco, será útil. E ser útil aos trabalhadores e à juventude, que queremos servir e representar, deve ser a nossa razão para existir na luta contra Bolsonaro. Ou seja, não é possível empolgar os trabalhadores e os movimentos sociais sem um programa contra os ajustes neoliberais. Não haverá “arrastão” do voto do povo pobre das cidades sem propostas claras sobre salário mínimo, renda básica, pleno emprego, fortalecimento da educação pública, SUS etc.
O PSOL tem se posicionado na oposição frontal ao governo Bolsonaro, defendendo a tática da Frente Única de Esquerda, mas, também, em torno de reivindicações democráticas concretas, à tática da unidade de ação com os partidos e líderes da oposição que não têm relações orgânicas com o movimento dos trabalhadores. Mas são duas táticas diferentes, de “geometria variável”.
Foi a tática da Frente Única que, no fundamental, favoreceu o tsunami da Educação, em maio de 2019, um dia nacional de greve contra a reforma da previdência, em junho no mesmo ano, as manifestações antifascistas de 2020 e, sobretudo, as jornadas nacionais desde maio de 2021. Por outro lado, foi a tática da unidade na ação que impediu a transferência de Lula para a prisão de Tremembé, onde correria risco de vida e posteriormente, a luta pela sua libertação.
Como essas duas táticas devem se traduzir nas eleições? Devemos considerar, em primeiro lugar, três problemas. O primeiro é metodológico. É impossível prever, sem margens de erro muito elevadas, qual será a situação daqui a um ano, ou seja, a dimensão do apoio a Bolsonaro, com a fratura de uma ala burguesa que articula uma candidatura de “terceira via”.
Podemos desenhar cenários de probabilidades. Porém, isso é insuficiente. Porque, a rigor, não sabemos: (a) como vai evoluir o desgaste do governo, se a economia não sair, para o fundamental, do quadro recessivo dos últimos cinco anos; (b) como vão evoluir as investigações policiais que avaliam a relação do bolsonarismo com as milícias e o escritório do crime no Rio de Janeiro; (c) como vai evoluir a crise política do bolsonarismo, que ainda não definiu o partido de aluguel que irá usar; (d) e, mais importante, como vai evoluir a consciência das amplas massas populares.
O segundo é que não está excluído que, em alguns dos principais estados, uma candidatura de extrema direita poderá chegar ao segundo turno. Bolsonaro é ainda favorito nas regiões sul e centro-oeste. É assim em Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Do que decorre o terceiro e mais complexo problema. Qual será a melhor tática para derrotar as candidaturas aliadas de Bolsonaro? A ideia de que candidaturas de centro serão mais competitivas do que candidaturas de esquerda parece lógica, mas não é. Esse sempre foi o argumento de Ciro Gomes e dos defensores da tática Kirchner na Argentina. A verdade é, frequentemente, contraintuitiva.
Diante de um problema complexo, a resposta mais simples parece fascinante, mas é, quase sempre, errada. Parece lógica, porque a mente humana prefere a repetição, a simetria. O raciocínio é simples, mas anacrônico. O argumento é que, em 2018, Haddad foi para o segundo turno contra Bolsonaro, e perdeu. E nos garantem: “se o PT, mas, também, o PSOL e o PCdoB tivessem apoiado Ciro Gomes, teria sido evitada a rejeição à esquerda, e derrotado Bolsonaro; “não podemos correr o risco de perder outra vez”; deveríamos, portanto, evitar “a polarização da esquerda contra a extrema direita”.
Esta hipótese parte de duas premissas erradas. A primeira é a suposição de que uma candidatura de perfil de centro-esquerda com Alckmin poderia vencer até no primeiro turno. Essa tática não é genial, é uma aventura.
A ideia oculta é que a esquerda seria capaz de manter os votos de sua área de influência, mas a única forma de vencer Bolsonaro seria em aliança com uma dissidência da oposição liberal que transformaria Lula em candidato híbrido, meio esquerda, meio “terceira via”. Em resumo, a ideia de que somente uma Frente Ampla que unifique toda a oposição a Bolsonaro, desde o primeiro turno, poderia vencer. Esta premissa é eleitoralmente falsa e, politicamente, perigosa. Por quê?
Devemos considerar duas questões. Primeiro, não é verdade que essa transferência de votos iria acontecer. Alckmin não tem tanta força assim. Uma parcela imensa da base eleitoral do PSDB seria devorada pelo bolsonarismo. Muitos se recusarão a votar em Lula, mesmo se ele reinventar um novo formato ”paz e amor”. As eleições de 2022 não serão um “remake” de 2002.
Segundo, devemos lembrar que a tática para 2022 é indivisível do que será um terceiro governo Lula e o futuro da esquerda. Estamos dispostos a ser um vagãozinho auxiliar no trem dirigido por uma dissidência da burguesia brasileira, que quer manter, a qualquer preço, o ajuste fiscal neoliberal, mas se desembaraçar dos alucinados neofascistas?
Ou queremos derrotar o perigo bonapartista, e acreditamos na capacidade de mobilização da classe trabalhadora contra Bolsonaro? Para isso, precisamos de um programa de esquerda e de candidaturas de esquerda. Se o PT não o fizer, o PSOL fará.
*Publicado originalmente em Revista Fórum
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