“Comam-no se assim desejarem”
Prefeito de Hautefaye, para a turba em frente a sua porta.
Ao final da Guerra Franco Prussiana, na comuna francesa de Hautefaye, um respeitável morador da região, Alain de Monéys, foi morto por seus conhecidos. Espancado, torturado, imolado em uma fogueira e depois comido. O caso é contado no livro “Matem e devorem”, de Jean Teulé.
Terça-feira à noite, 23/02, o bairro da Santa Cecília, em São Paulo, veio abaixo sob os gritos de “FORA!” – comuns na região que congrega muitos opositores ao governo Bolsonaro. Mas quem estava caindo não era o capitão reformado, e sim a artista Karol Conká, que recebia o resultado da mais unânime votação da história do BBB. Com 99,17% de repúdio, sob a fúria das ruas e da internet, a rapper conseguiu fazer algo até então impensável no Brasil contemporâneo: unificar o país. Trabalhadores e burgueses, trotskistas e stalinistas, corinthianos e palmeirenses, radfems e machistas convictos, etc. Todos os matizes sociais, em uma grande frente ampla, se juntaram, inconscientemente, para acertar as contas com Karol.
Pode-se argumentar tudo sobre o universo de participantes ativos das votações do programa. Há distorções, é difícil de mensurar, precisamos saber ao certo quem compõe esse grupo amostral. Porém, não importa. O caso que envolveu o país todo, provavelmente mais de um milhão de pessoas dispersas, expõe mais ou menos bem nossa população. A cifra de mais de 99,17% expressa uma unanimidade que pouquíssimas pessoas conseguiriam atrair para si, provavelmente nem Hitler, nem Nazaré Tedesco, conseguiriam tamanha rejeição.
Não quero fazer aqui uma crítica aos Reality Shows que colocam as pessoas em situações incomuns, nem ao que os seres humanos são capazes quando se veem sob condições particulares como as da famosa casa. Certamente Karol Conká deve ter feito coisas horríveis. Mas creio que isso pouco importa para explicar essa incrível concordância. Comportamentos odiosos não são novidade em programas de TV do tipo. Essa novidade fala mais sobre um quadro de adoecimento da sociedade do que sobre Karol, o BBB ou as opiniões de cada um que se opôs à permanência dela na casa – os motivos devem ser variados, desde o mais puro racismo à luta de feministas revolucionárias contra uma representante liberal do movimento. Tamanha totalidade parece mais o espasmo de um corpo febril.
Ao receberem a notícia da rendição definitiva da França diante da Prússia, em uma taverna de Hautefaye, um engraçadinho gritou, “viva Prússia!”, e saiu correndo. Quando algumas cabeças mais quentes foram se haver com o malandro, Alain de Monéys os impediu, e a ira se voltou contra ele. Tornou-se “amigo de prussianos”, e logo depois alguém o acusou de dizer “viva a Prússia!”. Tentou afastar o mal entendido e afirmou “não gritei, ‘viva a Prússia!’”, e nesse momento, quando a frase se confirmou em sua boca, os gritos cresceram, “ele disse novamente, ‘viva a Prússia!’, é um prussiano”. O ex-concidadão se tornou, em poucos minutos, prussiano… e o restante já é sabido.
O evento não diz muito sobre algumas dezenas de pessoas que confundiram seu amigo com um prussiano, tão pouco sobre a vontade de comer carne que pode existir no mais recôndito inconsciente, desejo atávico que habitaria todos nós. Mas pode dizer algo sobre uma França derrotada, em convulsão, e que pouco depois viveria as glórias e tristezas da Comuna de Paris.
A desforra sobre Karol Conká é nosso suplício de Hautefaye. Calhasse, ela teria sido comida. Infelizmente, pouco parece que haverá também, em breve, nossa Comuna.
*(que escreveu sem ter assistido ao BBB 21)
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