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BRASIL

O culto aos orixás é resistência. Respeitem Xangô!

As religiões afro-brasileiras exigem reparações aos episódios de intolerância religiosa exibidos pela Rede Globo no BBB 21

Waltecy Alves dos Santos*
Nego Di, Projota, KarolConká e Lumena
Reprodução

Deus dos sem deuses / Deus do céu sem Deus / Deus dos ateus / Rogo a ti cem vezes / Responde quem és? Serás Deus ou Deusa? / Que sexo terás? / Mostra teu dedo, tua língua, tua face / Deus dos sem Deuses
(Chico César)

Em primeiro lugar, cabe-nos informar ao leitor, principalmente ao que não assiste a 21ª edição brasileira do programa Big Brother, “reality show” exibido pela Rede Globo, cujo formato pertence à empresa holandesa Endemol, que na segunda-feira (08 de fevereiro), uma conversa entre os participantes Nego Di, Projota, KarolConká e Lumena, causou indignação nas redes sociais. Tal fato, posteriormente, motivou abaixo-assinados virtuais e denúncias de vilipêndio religioso, crime previsto no Código Penal, ao Ministério Público e a Polícia Civil.

O quarteto ironizou um dos deuses cultuados pelas religiões de matriz africana – Xangô (orixá do participante Lucas que recentemente saiu do programa): “Eu xangôzei”, falou o gaúcho Nego Di. “Cheguei a xangôzar no quarto, véi. Ave, Maria”, complementou. Em seguida, aproveitando o ensejo KarolConká zombou. “Você falando é muito engraçado. ‘Eu chamei Xangô, véi’”, expressou a cantora, arremedando os gestos de Lumena. A despeito de manterem-se achincalhando um dos deuses da mitologia africana, Lumena que é iniciada no orixá, zombou com os demais. Ela (que é psicóloga) recordou um bate papo que teve com Lucas “Eu xangozei. Eu estou pelo certo com meu orixá, você está pelo errado. Ele está te abandonando”, disse a baiana. Após a exibição das cenas, a sacerdotiza Etemy Ogorensi Aline, do Terreiro da Roça do Vagueiro, frequentado por Lumena (que tem apenas um ano de iniciação no candomblé) se pronunciou: “eu não concordo com o que ela falou ontem, eu assisti, mas por uma questão de ética, como mãe de santo eu não posso virar as costas para um filho, eu só posso torcer para que ela saia, e que eu possa mostrar a ela tudo que ela cometeu de erro”. 

Além disso, o tratamento desdenhoso dado a Xangô, rapidamente, provocou a reação de entidades afro-religiosas, do movimento negro, de diversos parlamentares e de inúmeros outros setores da sociedade civil organizada. Desde abaixo-assinados virtuais até pedidos de investigação e apuração do ato cometido pelos referidos participantes do BBB 21, partiram de vários estados do país: foram encaminhadas denúncias ao Ministério Público, à Polícia Civil e ao Decradi (delegacia criada para investigar crimes raciais e de intolerância no Rio de Janeiro). 

Ainda sobre a 21ª edição do BBB, o referido grupo de participantes foi apelidado por milhares de telespectadores, nas redes sociais, como “gabinete do mal”, pois, teriam abandonado emocionalmente o participante Lucas Penteado, vitimado por práticas de exclusão, silenciamento e outras agressões psicológicas ao longo de sua permanência no programa.  Também, outras falas e atitudes desses participantes despertaram a reação de diversos setores sociais, a exemplo, dos adeptos das religiões que cultuam os orixás e que criticaram o tal “gabinete do mal” pelo desrespeito a um dos Deuses do panteão africano. Ademais, sambistas organizaram uma campanha para eliminar Nego Di, um dos principais representantes do quarteto, por ter feito uma piada que desrespeitou a dor alheia sobre o cantor Arlindo Cruz que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC).  Entidades estudantis como a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas) defenderam Lucas Penteado e oficialmente criticaram a fala de Nego Di após o participante afirmar que Lucas, que já participou de ocupação de escolas, estaria “defendendo vagabundo”.  Na ocasião, Lucas Penteado defendeu a luta de Marielle Franco dizendo que talvez Nego Di também achasse que vereadora do Rio de Janeiro, que foi brutalmente assassinada, também defendia “vagabundos”: “Como é que eu vou ouvir isso de um ‘pretão’ que diz que fez tudo que ele disse que fez, que já passou fome? Mano, ele não faz ideia da luta que essa preta teve que fazer pra salvar vidas. A luta dela não era pelo bandido, era pela vida”. Essa fala de Lucas provocou reações de solidariedade a ele por parte de familiares de Marielle e de militantes de inúmeras organizações de esquerda, e aumentou o coro dos que enxergavam no polêmico quarteto (Nego Di, Projota, Karol Conká e Lumena) um instrumento de retrocesso na discussão sobre o racismo e outras pautas importantes para os movimentos sociais, visto que muitos telespectadores confundem o que acontece dentro da casa do Big Brother com o que ocorre no mundo real. Recentemente circulou nas redes sociais uma fala de Karol sobre os povos indígenas, extremamente ultrajante e racista: “Eles aceitam migalhas. Aceitam espelhinho, entrega as terras em troca de espelho.”

Vários ativistas de organizações sociais e acadêmicos do campo progressista, pertencentes à classe média, inclusive muitos militantes do movimento negro (que perderam a noção do mundo real em que estão inseridos milhares de afro-brasileiros), ao gritarem aos quatro cantos do país “não assista a este programa!”, se esquecem que uma parcela enorme da população não tem muitas alternativas, pois está à mercê da péssima qualidade da programação da televisão aberta no Brasil (que vai desde programas de fofocas sobre famosos, jornalismo pinga-sangue, circos de horrores de “Ratinhos”, televendas, até programação de igrejas. Além de que, o povo brasileiro este culturalmente ligado a programação da TV aberta: suas telenovelas, por exemplo, estão impregnadas no cotidiano de uma enormidade de famílias brasileiras. 

Do mesmo modo, fingem não enxergar que milhares de brasileiros devido ao analfabetismo ou a pobreza não usam ferramentas tecnológicas e podem ser considerados excluídos digitalmente (muitos professores das redes públicas de ensino, principalmente em tempos pandêmicos, têm a exata dimensão desta tragédia). Por isso, de norte ao sul do Brasil, as lutas pelo ticket merenda, pelo não retorno as aulas presenciais sem vacina (para que os mais pobres não sejam cobaias), pelo auxílio internet (milhares de estudantes brasileiros ou não tem conectividade ou lidam com internet precária ao realizarem seus estudos pelo celular) e por tablets para garantir a inclusão digital dos nossos alunos cadastrados na Bolsa-Família, são algumas das principais bandeiras dos professores comprometidos com a defesa da qualidade no ensino público durante a pandemia de COVID 19.  E para os que se encontram tão distantes da realidade do povão é importante lembrá-los de que os livros no Brasil ainda são artigos de luxo. A maioria das escolas brasileiras não tem biblioteca! E é evidente que trabalhar para comer, subsistir e não morrer ainda é a realidade que impera no cotidiano de milhares de pessoas, parafraseando Bonfá, Villa-Lobos e Renato Russo, no “nosso Estado que não é nação”.

Desse modo, é fato que a televisão aberta (Globo, Record, SBT, BAND, Rede TV, Cultura, entre outras emissoras) ainda reina soberana na programação do país, apesar do crescimento de diferentes meios de comunicação e entretenimento nas últimas décadas. E, principalmente, as quatro primeiras emissoras citadas, fazem parte do cotidiano, pautam e influenciam uma camada enorme da população brasileira. Daí a importância da observação crítica e posicionamento em relação ao que acontece na programação dos principais veículos de comunicação de massa. E igualmente, da urgência de intensificarmos a luta pela desconstrução dos monopólios dos meios de comunicação e pelo início de um processo de democratização da mídia que abarque, sobretudo, a rádio, a televisão e a internet.

A obra poético-musical de Caetano Veloso “Milagres do Povo”, desde o título, dramatiza em versos o sofrimento dos negros africanos devido ao tráfico negreiro transatlântico e, ao mesmo tempo, demonstra força e resistência coletiva à colonização de mentes, enfrentamento à visão de mundo branca, cristã e mercantilista e a vitória da reconstrução e preservação da memória coletiva religiosa de matriz africana na diáspora: “É no xaréu que brilha a prata luz do céu/ E o povo negro entendeu que o grande vencedor/ Se ergue além da dor/ Tudo chegou sobrevivente num navio/ Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu a crueldade bem de frente/ E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente.

Já que, apesar de todas as perseguições, os cultos de origem africana, ontem e hoje, “não cessam de brotar, nem cansam de esperar/ e o coração que é soberano e que é senhor não cabe na escravidão, não cabe no seu não.” E a felicidade guerreira, de milhares de africanos e seus descendentes, em cultuar deuses que dançam ao som dos batuques e clamam a revolução, se espalhou em todos os cantos do mundo, especialmente, nas Américas e no Caribe: Cuba (Santeria, Palo Monte), Haiti (Vodu), Nova Orleans (EUA) (Vodu e Ifá), Trinidad e Tobago (Obeah), Jamaica (Kumina), Suriname (Winti), Martinica (Quimbois), Brasil (Candomblé, Xangô, Batuque, Tambor de mina, Babaçuê e Umbanda).  De acordo com Dedé Malungu Okótó“ os europeus e seus descendentes só conseguiram nos colonizar por dominarem nossa espiritualidade, e resgatá-la em seus sentidos fundamentais e profundos, além de criar sentidos emancipadores para eles é uma das armas mais poderosas que temos nas mãos hoje. Ainda, conforme este pesquisador e adepto do culto aos orixás, qualquer empreendimento financeiro, político, cultural, midiático ou religioso que nós nos propusermos realizar estará fadado ao fracasso se estivermos desconectados da nossa consciência espiritual descolonizada, desembranquecida, descontrolada, descoberta, desperta.

Seguramente, todas estas religiosidades de matrizes africanas, apesar de suas diferenças, são exemplos de tradição, ancestralidade e resistência, ao manterem vivos os cultos de Deuses e Deusas que vieram de África e preservaram o legado de nossos ancestrais, no que tange os mitos-danças-ritos, a preservação de seus monumentos, pinturas, esculturas, objetos, a transmissão de seus patrimônios linguísticos e o respeito às forças da natureza: a água, o vento, a folha, o ar, a terra, o fogo.

A fim de ilustrar, as relações entre mídia-religião-cultura no Brasil, recapitularam alguns fatos advindos de um passado recente: a pressão da igreja católica fez a escola de samba Mangueira (2017) retirar Cristo-Oxalá de seu desfile, O carro abre-alas da Beija-Flor (1989) traria uma reprodução do Cristo Redentor vestido como um mendigo. Às vésperas do carnaval, porém, a Arquidiocese do Rio de Janeiro conseguiu uma ordem judicial proibindo a apresentação da alegoria. Joãozinho Trinta atendeu a decisão judicial, cobriu a alegoria com um plástico preto e acrescentou uma faixa com a frase “mesmo proibido, olhai por nós”.

E no que diz respeito à prática criminosa de vilipêndio religioso, precisamente em 12 de outubro de 1995, o então bispo da Igreja Universal, Sergio Von Helder, foi condenado a dois anos de cadeia por proferir insultos verbais e chutar a Nossa Senhora da Aparecida (por ser réu-primário recorreu em liberdade). O caso provocou manifestações de solidariedade aos católicos dentro e fora do país, e inclusive os telejornais, rádios e revistas ligados a Rede Globo, denunciaram amplamente a agressão a Santa Católica, demonstraram-se solidários aos católicos e cobraram retratação e punição do agressor e do programa matutino “O Despertar da Fé”, transmitido pela Record TV

Entretanto, mais de duas décadas após este insulto que chocou a nação, um grupo de pessoas caçoou e pôs conotação sexual em Xangô (uma das divindades africanas mais populares, dentro e fora do Brasil), fato que causou repercussão negativa e protestos, ações nas redes sociais e processos nas esferas judiciais de entidades e políticos, de diferentes matizes ideológicas e, até o momento, a rede Globo não se pronunciou sobre o ocorrido, tampouco fez um pedido de desculpas ou se retratou publicamente. Também não garantiu espaço aos representantes de religiões de matriz africana, principais vítimas da ofensa em sua programação.

Enquanto isso, de acordo com o Comitê de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), só em 2019 foram registrados 201 casos de centros e terreiros, objetos sagrados e até mesmo seguidores vilipendiados, destruídos e agredidos por quem não respeita a fé nas religiões afro-brasileiras, o dobro do número de 2018. E, atualmente, em decorrência da pandemia da COVID 19, muitos terreiros mantiveram suas atividades religiosas suspensas ao público para evitar aglomerações. No entanto, as agressões seguem em ritmo crescente em diversas regiões do país. Conforme o professor doutor em história (UFRJ) e babalawô Ivanir dos Santos, esses ataques inclusive colocam em risco a aceitação de outros aspectos da cultura negra, como o samba, as vestimentas com motivos étnicos e até a culinária – na Bahia, o acarajé é chamado por evangélicos de “bolinho de Jesus”. Para ele, a nova onda de perseguição das religiões afro-brasileiras tem ligação política, de dominação.

Para nós, adeptos e praticantes das religiões de matrizes culturais africanas, Xangô é o troar do trovão, a dança do fogo, a firmeza da pedreira, o governador da justiça. O símbolo característico de Xangô é o duplo machado. Conforme a pesquisadora Simone Nacaguma, xerê é o nome dado ao machado de duas pontas que Xangô brande no ar, os xerês são feitos de cobre e com ele é que Xangô cria o trovão. É com ele que, segundo a lenda, Xangô fura a terra para enterrar as pedras de raio, responsáveis pela origem dos raios que representam a sua ira. Frequentemente nos deparamos nas redes sociais, com a máxima de que o jogo está virando para os apelidados de“gabinete do ódio” e “quarteto do mal”. Entretanto, diferentemente do “gabinete do ódio” que envolve a família Bolsonaro, que motivou o apelido, no BBB 21, este é composto por negros. E dai? Comungamos do mesmo entendimento do escritor e crítico literário Alex Castro: “Não se muda o mundo respeitando a opinião de quem te oprime”. 

É lógico que há diferenças ideológicas entre os militantes dos movimentos negros, assim como, há entre os indivíduos e grupos que militam em outros movimentos sociais e artístico-culturais. O autor da celebre frase “Não há capitalismo sem racismo”, Malcolm X, foi um dos principais críticos do sistema americano e enxergava a relação entre racismo e capitalismo. Na atualidade, no que tange ao mundo do Rap, o afro-americano Kanye West, por exemplo, sempre foi um dos grandes apoiadores do político de extrema direita Donald Trump. A famosa máxima: “O papel do movimento negro é educar, aglutinar, tencionar a Casa Grande. Movimento negro não faz parte da Casa Grande” é para nós o sentido da luta antirracista. Do mesmo modo, acreditamos que os abusos e a chatice de Lumena e dos rappers Karol e Projota são péssimos exemplos de militância e postura social. Aliás, desqualificação das religiões de matriz africana, declarações xenofóbicas, transfobia, gordofobia, atrelamento da imagem dos militantes do movimento estudantil a vagabundagem e discurso colonialista escandalosamente anti-indígena, vão na contramão da nossa luta contra as opressões intrínsecas ao modelo de sociedade excludente, injusta e desigual em que estamos inseridos. É evidente que nós pretos não somos extraterrestres, e como em todos os tipos de terráqueos existem os honestos, desonestos, humildes e não humildes, com e sem caráter e seguramente como nos ensinam os versos do saudoso poeta, militante do movimento negro e socialista sincero, Solano Trindade: Negros que escravizam/ E vendem negros na África/ Não são meus irmãos/ Negros senhores na América/ A serviço do capital/ Não são meus irmãos/ Negros opressores/ Em qualquer parte do mundo/ Não são meus irmãos/ Só os negros oprimidos/ Escravizados/ Em luta por liberdade/ São meus irmãos/ Para estes tenho um poema/ Grande como o Nilo.

A respeito dos deuses que cultuamos no candomblé pela nação Ketu, existe um chamado Irôko (O Tempo): O tempo dá, o tempo tira, o tempo passa e a folha virá! Após recorde de rejeição (98,76%), Nego Di foi eliminado do Big Brother, e juntamente, com os demais envolvidos, vai ter que responder judicialmente pela acusação de vilipêndio religioso. Em seguida, o deputado federal Daniel Silveira, negacionista, filiado do Partido Social Liberal (PSL), que rasgou a placa de Marielle Franco e que zombou do assassinato da ex-vereadora do PSOL, foi preso em flagrante por apologia a ditadura militar e por defender a destituição de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Em suma, acreditamos que o machado de Xangô tem duas faces devido a sua inclinação guerreira e que ele castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores. Por isso, a morte por um raio é considerada infamante e, da mesma forma, uma casa atingida por um raio é uma casa marcada pela cólera de Xangô. Kaô kabecilê (venha saudar o rei/pai), não subestimem o trovão, respeitem Xangô!

*Waltecy Alves dos Santos é professor efetivo de Língua Portuguesa e Literatura da Fundação Instituto Educacional de Barueri. É graduado, licenciado em Letras e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Foi o mais jovem dirigente sindical da história do Sindicato dos bancários de São Paulo, da Confederação nacional dos bancários e da CUT. Foi Secretário Estadual de Combate ao Racismo do PT de São Paulo. É Secretário Geral do PSOL-Barueri. É militante da Resistência do PSOL. Além disso, é desde muito jovem, militante do movimento negro, LGBTQIA+, macumbeiro e orgulhosamente filho de Ogum!

 

** O texto acima reflete as opiniões do autor e não necessariamente as do portal Esquerda Online. Somos um veículo aberto às polêmicas e debates da esquerda socialista.