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OPRESSÕES

Por que não devemos pautar nossa luta feminista e antirracista em programas como o BBB?

Karla Costa*
Reprodução/TVGlobo

A pergunta acima é, sem dúvida, retórica. Contextualizo: sempre que um programa da grande mídia, como o Big Brother Brasil, tematiza pautas dos movimentos sociais há um racha de perspectivas entre os ativistas. Se de um lado estão aqueles que defendem a importância de que temas como feminismo e antirracismo cheguem às casas de milhões de brasileiros, outros defendem que essa visibilidade é perigosa e que não se deve pautar nossas lutas através do roteiro dado por empresas como a Rede Globo, já que tais interesses são essencialmente antagônicos.

Acredito que é preciso refletir sobre isso porque a indústria cultural capitalista já percebeu o quanto é lucrativo pautar temas relacionados aos novos movimentos sociais. Isso significa que, cada vez mais, teremos atrizes e atores engajados nas lutas LGBTI, nas lutas antirracistas, no feminismo, veremos mais e mais produtos de beleza para cabelos crespos, maquiagem para as diversas peles negras e, nas lojas de brinquedos, encontraremos mais e mais bonecas e bonecos pretos que refletem nosso corpo. Mesmo que algumas pautas não avancem com tanta rapidez como a antigordofobia, já que a insatisfação com o corpo vende mais do que a autoaceitação, inclusive essas encontram seu nicho no mercado.

O problema é o seguinte: o desenvolvimento das forças produtivas, mesmo sob a limitante alienação capitalista, deu condições de desenvolvimento para sociedade, tornando-a, bem como aos indivíduos que a compõe, mais complexa. Acontece que, ao passo que nos tornamos mais complexos e nos damos conta das nossas particularidades, o capitalismo não pode permitir que essa complexidade e individualidade se libertem, ou seja, mesmo que as condições de liberdade estejam postas, não podemos nos emancipar no capitalismo. Vejam: toda essa complexidade de que falo se expressa nas diversas dimensões da nossa vida e, se nossa vida acontece no seio das relações capitalistas, estamos sujeitos à constante tensão entre liberdade humana e controle do capital. Isso também é uma expressão da luta de classes.

Vejamos se fica mais claro. Negras e negros, no Brasil, vêm lutando por liberdade desde que nossos antepassados das diversas etnias africanas aqui pisaram pela primeira vez, mas ainda hoje sofremos com as consequências da escravidão moderna, e, por isso, não podemos considerar que o povo negro é livre. Se o capitalismo pudesse emancipar o povo negro, não seríamos a maior parcela de desempregados nem da população carcerária, não estaríamos nas posições de subordinação e mal remunerados. Como o capitalismo não pode consentir com essa liberdade, cria mecanismos de compensação dos quais consegue, inclusive, extrair lucro.

Quando acreditamos que o reconhecimento do mercado capitalista é alguma forma de resposta positiva às nossas lutas, de que ter mercadorias que refletem nosso cabelo, nosso corpo, nossa sexualidade é uma conquista, estamos subvertendo sim os objetivos a que devemos nos atrelar. Por que, então, esses objetos causam mudanças positivas nas pessoas a que são direcionadas? Por que uma criança negra que compra um(a) boneco(a) com seu tom de pele dá um passo no reconhecimento de sua negritude? Porque este é o limite permitido pelo capital, a representatividade.

A luta de classes é travada em todos os âmbitos da sociedade: na cultura, na ideologia, na educação, na arte, na economia, no chão das fábricas etc., portanto, é possível gerir as contradições até certo limite. Qual é o limite? O que o capital não pode permitir sob pena de ser extinto? O reconhecimento por parte da classe trabalhadora sobre o seu papel na produção da riqueza. Então, é permitido reconhecer nossa negritude, nossa sexualidade etc., contanto que não ultrapassemos esse limite para uma consciência de classe.

Vamos pensar no BBB. No programa deste ano, ficou claro, até para quem não o acompanha, que a edição foi construída para dar visibilidade às pautas feministas. Empoderamento, sororidade, girl power e antimachismo construíram a imagem das mulheres do século XXI, aquelas que se unem contra os machos opressores. Nesse interim, sobrou alguma coisa para pautas antirracistas, figuradas nos participantes Babu e Thelma. Se até aqui, amiga leitora e amigo leitor, ficou claro que o capitalismo assimila as nossas lutas, criando mercadorias rentáveis, posso afirmar que o BBB é uma dessas mercadorias feita para um consumidor que não pode mais se contentar com as tramas mamão com açúcar, com os casais descolados, com os padrões de beleza: brancos, magros, loiros. O povo quer se reconhecer na tela, quer se sentir representado. Então, o BBB dá isso de bandeja. “Senta em frente à TV que eu te dou o que você quer, telespectador, porque, inebriado com o discurso que eu te apresento, você não se mexe e ‘quem não se mexe não sente as correntes que o prendem’”.

Como militantes, então, precisamos aprender a ultrapassar os limites que o capitalismo nos impõe, isso é a essência de uma revolução. Se um programa como o BBB pauta feminismo e antirracismo e nós ficamos presas a ele, reproduzindo suas figuras como grandes representantes de nossa luta, somos totalmente enredados em sua teia e nos pegamos sem conseguir dar respostas a contradições simples: se sou feminista e negra, devo defender o Babu porque ele é negro ou devo combatê-lo porque ele é machista? Se sou feminista e de esquerda, devo defender ou acusar a médica que mataria Dilma se a atendesse no hospital? Se o nosso ponto de partida e de chegada for o BBB em si, não há resposta possível para essas perguntas, elas são becos sem saída.

Ao contrário, se analiso as contradições da realidade, visando superá-las, negando, afirmando e elevando, posso sim partir do BBB, pois ele é um produto cultural concreto e não posso negar sua existência, mas tenho o dever de procurar levar a consciência das massas para além dos limites liberais do programa. Se o BBB expõe um tipo de machismo e racismo que está fincado na individualidade, mas não permite alcançar a estrutura da sociedade capitalista e de como o racismo e a opressão das mulheres sustentam a exploração desse sistema, eu tenho que ser capaz de fazê-lo. Se o BBB apresenta a opressão da mulher limitada à forma como somos tratadas pelos homens e oculta, por exemplo, as relações de classe, é nosso papel fazê-lo.

Não há problema nenhum em partir de um programa de TV limitado como o BBB para analisar a realidade. O problema está em aceitar seus limites. Como crítico da realidade, todo revolucionário precisa estar munido de ferramentas para análises profundas. Não podemos ser aqueles que ficam na superfície. Se nós, revolucionários, não cumprimos nosso papel pedagógico com as massas, quem vai fazê-lo é o capital e o capital faz isso muito bem. Tão bem que, algumas vezes, engana até os mais bem intencionados militantes.

* Militante da Resistência Feminista