“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”
William Shakespeare
Há muito mais letras entre o L e o + do que eu seria capaz de escrever nesse artigo. O arco-íris humano tem muito mais cores que seis ou sete. Infelizmente, o movimento LGBTQIA+ acabou reduzindo as inúmeras questões que envolvem a população LGBTQIA+ a um único tema, a sexualidade. É lógico que a sexualidade é importante, mas há inúmeras outras questões igualmente importantes dentro da sigla. Cada letrinha importa. Apresento aqui as letrinhas que eu conheço para dar um pontapé na discussão, mas sem pretensão de esgotá-la.
Normas de gênero
A sociedade capitalista surgida na Europa impôs, através da colonização e do imperialismo, com muita violência, escravidão e genocídio, seu modelo de sociedade ao mundo todo, inclusive sua concepção de gênero. “Menino veste azul e menina veste rosa”, disse a Damares, vestida de azul. Assim, o gênero nada mais é do que duas caixinhas bem pequenas onde querem enfiar a humanidade toda.
Os capitalistas tratam a humanidade da mesma forma que fazem com as mercadorias, obrigando cada pessoa a se encaixar em uma série de normas bem estreitas. Isso é muito difícil, pois a natureza não é produzida por uma fábrica. Então a classe dominante criou uma política de vigiar e punir quem não se encaixa. São essas pessoas que compõem a sigla LGBTQIA+.
Orientação sexual (primeira parte – letras LGB)
A forma mais conhecida de não ‘entrar na caixa’ é pela orientação sexual. A norma de gênero determina que os homens têm de se atrair romântica e sexualmente pelas mulheres e vice-versa.
Observação: orientação sexual não é escolha. Ninguém escolhe gostar de chocolate, por exemplo, a gente simplesmente gosta ou não gosta. O mesmo vale para gostos em relação à atração romântica ou sexual. Portanto, nunca use o termo ‘opção sexual’. Além de equivocado, é ofensivo.
Heterossexual é a pessoa que se encaixa nessa norma, ou seja, é quem se atrai pelo gênero oposto.
Homossexual é quem se atrai por outras pessoas do mesmo gênero. Ou seja, um homem homossexual se atrai apenas por outros homens, uma mulher homossexual se atrai apenas por outras mulheres.
Lésbica é um sinônimo de mulher homossexual.
Gay, no Brasil, é sinônimo de homem homossexual. Outros países denominam como homem gay ou mulher gay ao homem homossexual ou à mulher homossexual, respectivamente, mas geralmente usam o termo gay (sem qualificar se é homem ou mulher) com o sentido de homem homossexual.
Bissexual é quem que se atrai tanto por homens como por mulheres. Se uma pessoa é bissexual, isso não significa que ela se atrai por ambos os gêneros da mesma forma e na mesma medida. (Vamos rediscutir essa definição mais abaixo).
Identidade de gênero (letra T)
Quando o bebê ainda está dentro do útero, uma médica ou um médico coloca um ultrassom para verificar qual o formato da genitália do bebê. Por que esse interesse na genitália de alguém que ainda nem nasceu?
É pra decidir a cor do enxoval. O que o c* tem a ver com as calças, só deusa Inanna sabe!
Designação de gênero é o ato do sistema atribuir um gênero a cada pessoa antes mesmo de seu nascimento. Tal designação é atestada por uma pessoa formada em medicina e registrada em um documento chamado ‘certidão de nascimento’, que certifica que a pessoa nasceu. Porque, sei lá né, vai que alguém brota do chão.
Identidade de gênero é o gênero que uma pessoa identifica (para si ou para outras pessoas) como sendo seu próprio gênero. A norma de gênero criada pela sociedade capitalista diz que, mesmo não se encaixando perfeitamente no gênero designado, você deve sentir, reivindicar e afirmar categoricamente que pertence a esse gênero. Por outro lado, na realidade, identidade de gênero não precisa ser o mesmo gênero que foi designado.
A sociedade capitalista historicamente determinou que o gênero de uma pessoa é aquele designado ao nascimento ou antes dele. Essa designação corresponde ao formato (ao menos aparente) da genitália e que supostamente deve corresponder aos careótipos XX ou XY. Mas e nós, qual critério nós devemos usar para dizer qual é o gênero ao qual uma pessoa pertence?
Para nós, a esquerda socialista consequente, bem como os anarquistas, os movimentos sociais e de luta contra as opressões, o gênero de uma pessoa é determinado por sua própria identidade de gênero. Porque essa é a única definição que respeita a autonomia dos indivíduos na construção de sua própria existência, que permite com que elas mesmas determinem quem são. Somente assim é possível defender a liberdade individual e a dignidade humana.
Resumindo: quem olha de cima, enxerga o gênero como sendo a designação de gênero. Quem olha de baixo, enxerga o gênero como sendo a identidade de gênero.
Cisgênero (ou cis) é quem sente ou afirma (de maneira sincera) pertencer ao gênero que lhe foi designado. Se a pessoa se apresenta como sendo do mesmo gênero que lhe foi designado, ela é cisgênero. Vale destacar que a pessoa não precisa gostar de pertencer a esse gênero. Por exemplo, é muito comum (e compreensível!) que mulheres cis digam que odeiam ser mulheres, mas elas não tentam (e não querem tentar) se encaixar em outro gênero.
Transgênero (ou trans) é, no sentido estrito, quem tem identidade de gênero distinta do gênero designado. A pessoa transgênero geralmente tenta construir socialmente a imagem que melhor reflete sua própria identidade de gênero, a não ser que isso não seja possível (por qualquer razão que seja). No sentido amplo, é quem tem identidade ou expressão de gênero distinta do gênero designado (drag queen, drag king, crossdresser).
Mulher transgênero (ou mulher trans) é a mulher que é transgênero, ou seja, que foi designada ao gênero masculino e que tem identidade de gênero feminina.
Transfeminina é quem foi designada ao gênero masculino, mas cuja identidade de gênero se aproxima do feminino (total ou parcialmente). Assim, toda mulher trans é uma pessoa transfeminina, mas nem toda pessoa transfeminina é uma mulher.
Homem transgênero (ou homem trans) é o homem que é transgênero, ou seja, que foi designada ao gênero feminino e que tem identidade de gênero masculina.
Transmasculino é quem foi designado ao gênero feminino, mas cuja identidade de gênero está próxima do masculino (total ou parcialmente). Assim, todo homem trans é uma pessoa transmasculina, mas nem toda pessoa transmasculina é um homem.
Drag queen é quem performa, para fins artísticos, uma personagem feminina com maquiagem e roupas carregadas. Costuma-se pensar que as drag queens, fora do palco, são homens gays cis, mas também existem drag queens performadas por homens trans e por mulheres cis.
Drag king é quem performa, para fins artísticos, uma personagem masculina. É a versão masculina da drag queen.
Crossdresser é quem usa (às vezes ou frequentemente) roupas que são destinadas ao gênero oposto. Ou seja, um homem que usa vestes consideradas femininas, ou vice-versa. Termo geralmente usado por homens e mulheres cis heterossexuais.
Travesti é uma identidade de gênero transfeminina que existe apenas na América Latina. É um gênero feminino, é a travesti. Algumas travestis identificam-se como (e portanto são) mulheres, enquanto outras se identificam apenas como travestis.
Na segunda metade do século XX, surgiu um discurso médico que separa as pessoas trans que fazem a cirurgia de transgenizalização (a alteração da genitália) das que não fazem. Quem fazia essa cirurgia teria direito à mudança no nome dos documentos e ao reconhecimento, ao menos formal, de sua identidade de gênero. Bem, acontece que a cirurgia em si é extremamente cara, isso sem contar todo o processo de transição.
Ora, ora, transformaram o direito à identidade de gênero numa mercadoria!
Na América Latina, em particular, raríssimas são as mulheres e os homens trans que têm condições financeiras de comprar essa mercadoria. O conceito ‘travesti’ (que era usado pejorativamente pela medicina) reificou-se numa identidade feminina, uma forma de rebeldia inconsciente, quase como uma forma de dizer: “Nós não queremos essa identidade que vocês estão vendendo, pois já temos a nossa.”
Hijra é uma identidade transfeminina na Índia, semelhante à travesti latino-americana, mas com duas diferenças: (1) a religião hindu historicamente considera as hijras como pessoas sagradas (ainda assim, como as travestis, elas sofrem muita violência da polícia hoje em dia) e (2) elas são castradas em um ritual religioso.
Não-binárie é um termo guarda-chuva para todas as identidades que fogem do binário de gênero homem/mulher. Portanto, todas as pessoas que fluem entre o feminino e o masculino, que estão entre ou totalmente fora. Por exemplo: as pessoas transfemininas (como as travestis) que não são mulheres e as pessoas transmasculinas que não são homens.
Gênero flúido é o gênero não-binário de quem se identifica ora com um gênero, ora com outro.
Existência não-gênero-normativa (letra Q)
Nos Estados Unidos, o termo queer (que significa ‘esquisite’, ‘aberração’) era uma forma de xingamento frequente a lésbicas, gays e bissexuais (LGB), com enfoque nas que não se enquadravam no papel de gênero, na expressão de gênero, no comportamento esperado para cada gênero, etc. Essas pessoas passaram a identificar-se com esse termo, dando a ele um sentido positivo.
Com o tempo, a identidade queer começou a ser cada vez mais utilizada e reivindicada por pessoas que fogem dos padrões de gênero para além da sexualidade e que são perseguidas por isso, às vezes até por LGBs. As pessoas queer passaram, então, a reivindicar que essa identidade também fizesse parte da sigla.
Assim, incorporou-se a letra Q, significando tanto ‘queer’ quanto questionamento ou questionante (em inglês, questioning), um termo utilizado por pessoas que ainda não têm certeza de qual a melhor definição de sua orientação sexual ou identidade de gênero, ou ainda que não se sente contemplada com as definições existentes. Esta letra também acabou se associando à identidade genderqueer, como forma de afirmação que pessoas não-binárias também fazem parte do movimento.
Genderqueer é um termo guarda-chuva, sinônimo de não-binárie.
Características biológicas (letra I)
A sanha pela normatização das pessoas é tamanha que atinge até os corpos. Ao contrário do que é ensinado geralmente nas aulas de medicina, as características dos aparelhos reprodutivos das pessoas não podem ser divididos de maneira binária e estanque em dois grupos. Entre o aparelho reprodutivo XY padrão e o aparelho reprodutivo XX padrão, existe toda uma gama de variações e possibilidades.
Em 2009, após a corredora Caster Semenya, da África do Sul, ter vencido alguns campeonatos mundiais, houve contestação sobre se ela era mesmo uma mulher. Sabe como é, quem perde sempre reclama. Após exames médicos, verificou-se que ela tem todas as características esperadas para uma mulher cis, exceto por ter cromossomos XY e um nível de testosterona acima do considerado normal.
Normal. Norma. Regra. Lei humana. A natureza nunca incomodou-se com a diversidade. São os humanos que só gostam de preto e branco. Se o cinza lhes incomoda, o arco-íris então! Nem se fala.
Os diretores da IAAF (Associação Internacional de Federações de Atletismo) entraram em parafuso. Eles não queriam dizer que ela era um homem, porque, afinal, ela tem ovários e útero. Mas também não queria aceitar que ela é uma mulher. Semenya corre demais! Desse jeito ela vai escapar da caixa rosa!
Não há qualquer limitação para os homens com relação à produção natural de testosterona. Um competidor pode ter 10 vezes mais testosterona que os demais, ninguém levanta um pio. Mas uma mulher!
Um grande escândalo. A avó de Semeneya veio em sua defesa: “Eu sei que ela é uma mulher – eu mesma a criei. Ela me ligou depois do aquecimento e me disse que eles acham que ela é um homem. O que posso fazer quando a chamam de homem, quando ela realmente não é homem? Foi Deus quem criou assim”.
Endossexo é a pessoa cujo aparelho reprodutivo (ou outras características biológicas relacionadas como careótipo e produção hormonal) se encaixam nos padrões determinados pela medicina como normais, ou seja, como norma.
Intersexo é a pessoa cujo aparelho reprodutivo (ou outras características biológicas relacionadas como careótipo e produção hormonal) não se encaixam nos padrões determinados pela medicina como normais.
O termo hermafrodita é usado para outros animais que têm os dois tipos de aparelhos reprodutivos completos. Isso não descreve adequadamente as características biológicas de seres humanos. Portanto, não use o termo ‘hermafrodita’ para seres humanos. Além de um equívoco, é ofensivo.
Ausência de atração romântica ou sexual (letra A)
Falar de sexo é um tabu. Incrivelmente, falar de quem não faz sexo também é tabu. A norma determina que todas as pessoas devem ter atração sexual e romântica. Pessoas adultas que não têm a sexualidade bem desenvolvida são ridicularizadas, por exemplo, nos filmes (exemplo: ‘O Virgem de 40 Anos’) e nas séries (‘The Big Bang Theory’).
Assexual é, no sentido amplo, quem que sente pouca ou nenhuma atração sexual. No sentido estrito, é quem não sente nenhuma atração sexual. Muitas vezes, usa-se a abreviação ace (palavra em inglês que dá nome à carta ás do baralho).
Semissexual é quem sente pouca atração sexual.
Demissexual é quem só sente atração sexual após uma forte conexão emocional ou romântica com a outra pessoa.
Arromântique (ou arromântica, ou arromântico) é, no sentido amplo, quem sente pouca ou nenhuma atração romântica. No sentido estrito, é quem não sente nenhuma atração romântica. Uma pessoa pode ser arromântica e não ser assexual, bem como pode ocorrer o oposto.
Semirromântique (ou semirromântica, ou semirromântico) é uma pessoa que sente pouca atração romântica.
Demirromântique (ou demirromântica, ou demirromântico) é quem só sente atração romântica após uma forte conexão emocional com a outra pessoa.
Orientação sexual (parte 2)
Devido ao surgimento da discussão sobre gêneros não-binários, os conceitos ‘homossexual’, ‘heterossexual’ e principalmente ‘bissexual’ precisaram ser repensados. Afinal, qual dessas classificações descreve uma pessoa não-binária (que não é mulher nem homem) que se atrai apenas por mulheres? Qual é o gênero oposto? E uma pessoa que se atrai por mulheres e pessoas não-binárias?
Surgiram assim outras designações para as orientações sexuais.
Androfilia ou androssexualidade é a atração por homens ou por pessoas que têm expressão de gênero masculina. A pessoa que tem esse tipo de atração é denominada androfílica ou androssexual.
Ginefilia ou ginessexualidade é a atração por mulheres ou por pessoas que têm expressão de gênero feminina. A pessoa que tem esse tipo de atração é denominada ginefílica ou ginessexual.
Bissexual, numa definição mais recente apresentada no Manifesto Bissexual, é quem se atrai por dois ou mais gêneros. Devido a sua raiz etimológica, muitas pessoas consideram que o termo bissexual é menos adequado que definições mais precisas, como monodissidente, pansexual ou omnissexual. Outras pessoas preferem utilizá-lo por ser mais conhecido e gerar menos confusão do que outros termos.
Monodissidente é um termo guarda-chuva para qualquer orientação sexual que se atraia por mais de um gênero.
Pansexual é quem pode sentir atração por pessoas independente do gênero. Em outras palavras, é alguém cuja atração não enxerga gêneros.
Omnissexual é quem pode sentir atração por qualquer gênero, mas que sente atração pelos gêneros. Em outras palavras, é alguém cuja atração enxerga gêneros, mas gosta de todos eles.
Polissexual é quem se atrai por muitos gêneros, mas não todos.
Sapiossexual é a pessoa que se atrai por outras pessoas, não devido ao gênero, mas por serem inteligentes, educadas ou carismáticas.
Todos os termos com sufixo ‘sexual’ podem têm uma variante com sufixo ‘romântico’, especialmente quando se quer enfatizar uma atração romântica e não sexual (androrromântica, ginerromântica, birromântica, panromântica, etc)
Confusa é a orientação afetivo-sexual dessa travesti aqui. Será que existe um termo que mistura pansexual com omnissexual com atração romântica e sexual por pessoas sensíveis e fofas? (De toda maneira, como ponto de partida, sou pansexual).
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