Hoje, dia 25 de julho, é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, ou, também, dia Nacional de Tereza de Benguela. Consagrada Rainha do Quilombo do Quariterê, Tereza de Benguela foi uma importante liderança negra que coordenou o maior quilombo do Mato Grosso, que hoje é a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade. Acolhendo centenas de indígenas, negros e negras, esteve à frente na resistência às ações de bandeirantes de 1730 a 1795.
Neste dia, mais do que visibilizar e homenagear a resistência histórica das mulheres negras, é momento de fortalecer sua organização e potencialidade de transformação. A partir da necessidade de combater o machismo e o racismo, em 25 de julho de 1992, aconteceu o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingos, na República Dominicana. O encontro reuniu mulheres negras de mais de 70 países, sendo um marco importante de resistência e luta internacional, referência para as Marchas das Mulheres Negras que reúnem milhares nas ruas em diversos países da América Latina e Caribe.
Sobrevivendo no inferno
O ano de 2020, mais do que nunca, traz desafios profundos para o conjunto da classe trabalhadora, especialmente para as mulheres negras. O primeiro é o de sobreviver, especialmente no Brasil. Em meio à pandemia de coronavírus, enfrentam o negacionismo e sabotagem ao isolamento social por parte do governo federal. Além disso, existe uma política de estrangulamento do acesso à renda básica e o subfinanciamento do SUS. Percebemos os efeitos desiguais da covid-19 no país: além de reproduzir,a pandemia intensificou ainda mais as desigualdades estruturais de gênero, raça e classe.
Primeiro, porque o vírus atinge de forma mais letal negres. Em abril, os dados do Ministério da Saúde mostravam que pretos e pardos são 1 em cada 4 hospitalizados e 1 a cada 3 mortos pela doença. Segundo, porque a possibilidade de cumprir o isolamento social trabalhando em casa não é para todes. A maior parte do setor informal e do trabalho precarizado é composto por negros e negras, o que forçou muitos e muitas a seguir trabalhando para sobreviver em condições diversas de exposição ao vírus. De acordo com a
PNAD/IBGE de maio de 2020, a possibilidade de trabalhar em casa é, para os brancos, duas vezes maior do que a de negros e negras.
Quando analisamos em especial o trabalho doméstico, de acordo com os dados do DIEESE, o setor é composto majoritariamente por mulheres negras com média alta de idade, recebendo as piores remunerações. Uma das primeiras vítimas do covid-19 no Brasil foi uma empregada doméstica que, apesar dos seus 63 anos, foi obrigada a cuidar dos patrões que voltavam da Itália contaminados. Apesar de uma parcela ter sido dispensada por causa da necessidade de distanciamento social, um grande contingente de trabalhadoras domésticas não foram liberadas e continuaram exercendo suas atividades, se expondo à contaminação. Em sua maioria, essas mulheres são chefes de domicílio responsáveis pela manutenção de suas famílias. Que também são profundamente afetadas com o fechamento de creches e escolas.
Além disso, existem vários obstáculos de prevenção, devido à desigualdade sistemática de renda, saúde e condições médico-sanitárias. Dificuldades estruturais de acesso à sistema de esgoto, de pavimentação, de água tratada, além de residências superlotadas. Como se não bastasse a crise sanitária, econômica e social, jovens negros estão sendo assassinados dentro de suas próprias casas pelas mãos da polícia de forma brutal. Entre os meses de março e junho, a Polícia Militar de São Paulo matou 1 pessoa a cada seis horas, no Rio de Janeiro, 5 pessoas por dia. Toda semana uma Agatha Félix, um João Pedro, um João Vitor. Esse último domingo (19) foi a vida de Josué Nogueira. E mulheres negras não suportam mais enterrar seus filhos. A população negra, assim, é o principal grupo de risco. Não apenas pela letalidade do vírus e seus efeitos desiguais, mas também pela letalidade da polícia, que escancara a face genocida do neofascismo bolsonarista.
As lições da esquerda
Quando discutimos a necessidade de transformação de todas as estruturas da sociedade capitalista, racista e patriarcal, as mulheres negras são a materialização da classe trabalhadora. Se não compreendermos quem é a classe trabalhadora, não compreendemos, enquanto movimento que busca a transformação radical da sociedade, como se conectar com ela e as suas necessidades reais. As contribuições das teóricas e ativistas negras, como bell hooks e Lélia Gonzalez, mostram o caminho. Em “Mulheres negras: moldando a teoria
feminista” (2015), bell hooks argumenta que as mulheres negras suportam o fardo da opressão machista, racista e classista e, ao mesmo tempo são
“[…] o grupo que não foi socializado para assumir o papel de explorador/opressor, no sentido de que não nos permitem ter qualquer “outro” não institucionalizado que possamos explorar ou oprimir. (As crianças não representam um outro institucionalizado, embora possam ser oprimidas pelos pais.) As mulheres brancas e os homens negros têm as duas condições. Podem agir como opressores ou ser oprimidos. […] O sexismo masculino negro prejudicou a luta para erradicar o racismo, assim como o racismo feminino branco prejudica a luta feminista.” (hooks, 2015, p. 207-208)
Nesse sentido, a própria experiência de vida das mulheres negras, de não possuírem um papel social que permite discriminar, explorar, e oprimir, desafia a estrutura social e a ideologia dominante. Daí a tamanha importância de ocupar espaços públicos, espaços de poder, de disputa política. Marielle Franco é um exemplo gigante, do quanto a classe dominante vê nas mulheres negras que lutam um potencial de subversão, e portanto de perigo. E no dia que é lançado este artigo fazem 864 dias do seu assassinato, do qual não foi descoberto o mandante e , cada dia mais, mostra-se que ele possui relações com o presidente do país e sua família.
A esquerda brasileira tem uma debilidade histórica no que diz respeito à pauta de opressões no geral. Essa dificuldade mostra um desconhecimento de que a classe trabalhadora é heterogênea e suas diferenças são parte indissociável do que ela é em sua totalidade. Lélia Gonzalez, em “Por um feminismo Afro-latino-Americano” (2011) dá o tom:
“Se estamos comprometidas com um projeto de transformação social, não podemos ser coniventes com posturas ideológicas de exclusão, que só privilegiam um aspecto da realidade por nós vivida. Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual.” (Gonzalez, 2011,p. 366)
Assim, é dever da esquerda, não só dar a devida visibilidade acerca das diferentes experiências vividas pelas mulheres negras, mas também combater o mito da democracia racial presente nas suas próprias fileiras. Combater o racismo, machismo, LGBTfobia, capacitismo, xenofobia, não divide a luta. Uma concepção de classe trabalhadora desracializada, desprovida de gênero e sexualidade não reflete a realidade. Para além de levar à frente e à cabo as pautas das mulheres negras: é urgente que elas estejam à frente, nas mesas de negociação, nos palanques, nos megafones, na direção dos sindicatos, movimentos e partidos. É urgente enegrecer a esquerda socialista.
Referências
BORGES, P. Tereza de Benguela, a liderança negra brasileira. Alma Preta, jul/2017. Disponível em: <https://www.almapreta.com/editorias/realidade/tereza-de-benguela-a- lideranca-negra-brasileira>. Acesso: 24/07/2020
DIEESE. Quem cuida das cuidadoras: trabalho doméstico remunerado em tempos de coronavírus. Estudos e Pesquisas, julho/2020. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2020/estPesq96covidTrabalhoDomestico.pdf>. Acesso: 24/07/2020
GONZALEZ, Lélia. “Por um feminismo Afro-latino-Americano”. Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino no 1, 2011.
hooks, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, no16. Brasília, 2015.
PRATES, I. LIMA, M. SOUSA, C. J. Trabalho na pandemia: velhas clivagens de raça e gênero. Nexo Jornal, junho/2020. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Trabalho-na-pandemia-velhas- clivagens-de-ra%C3%A7a-e-g%C3%AAnero>. Acesso: 24/07/2020
RAIOL, A. Pandemia e necropolítica do racismo institucional: a raça, o gênero, a classe. Esquerda Online, abr/2020. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2020/04/16/pandemia-e-necropolitica-do-racismo- institucional-a-raca-o-genero-a-classe/>. Acesso: 24/07/2020
*Ingrid Saraiva é militante do Afronte Campinas e coordenadora do Centro Acadêmico de Ciências Humanas. Estuda gênero, raça, classe e marxismo na Unicamp.
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