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EDITORIAL

A condição negra em tempos de Bolsonaro e pandemia: queremos respirar

Editorial de 29 de junho

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Desde que assumiu o comando do governo, Jair Bolsonaro tem buscado implementar um projeto neofascista baseado em um discurso de morte, na adoção de medidas autoritárias que visam a retirada das limitadas liberdades democráticas existentes e o fechamento ditatorial do regime político. Além disso, o governo atua para retirar direitos sociais, destruir e privatizar os serviços públicos e o meio-ambiente e proteger privilégios e lucros dos grandes capitalistas.

Em condições econômicas e sanitárias normais, esse projeto já resultaria no aprofundamento do genocídio da juventude negra, na degradação das condições de vida e na geração de perdas, dores e sofrimentos para a grande maioria dos trabalhadores. Eis, no entanto, que surge a crise sanitária decorrente da pandemia que, para além do impacto sobre a saúde das pessoas, lança a economia brasileira, que já estava estagnada, naquela que será a maior queda anual de sua história.

Nesse contexto, e empoderadas pelo discurso de morte do Presidente e de alguns governadores, as polícias estão ampliando os números dos assassinatos da juventude negra e pobre das periferias e favelas. Em 2019, contabilizou-se 5.804 pessoas mortas por ação das polícias em todo o país. E, para se ter uma ideia, os registros relativos a 2020 indicam, para o estado do Rio de Janeiro, um crescimento de 43% de pessoas mortas por policiais em serviço. O que leva à alarmante marca de uma morte a cada quatro horas, dentre as quais computa-se o assassinato do garoto João Pedro, com um tiro de fuzil nas costas, quando brincava com os amigos dentro de sua casa.

De tão terrível que é a situação, no dia cinco de junho, o Ministro do STF, Edson Fachin, se viu motivado a proferir decisão liminar proibindo, por questões humanitárias, a realização de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro enquanto durar a pandemia. O estado de São Paulo, por sua vez, está diante da maior série histórica de assassinatos protagonizados pela polícia desde 2001. E, no estado do Ceará, governado por Camilo Santana, do PT, a letalidade policial chegou a dobrar após o início da pandemia.

De outro lado, só no mês de maio, a redução da atividade econômica eliminou milhões de postos de trabalho. E, desde seu início, a crise tem impactado de forma profunda a renda das famílias mais pobres, especialmente daquelas que vivem do trabalho informal. Grande parte dessas famílias tem sido amparadas pelo benefício social do auxílio emergencial, no valor de 600 reais, conquistado após intensa luta da oposição contra a proposta inicial do governo de um benefício de apenas R$ 200. Mesmo assim, o benefício pago a 63,4 milhões de pessoas não chegou a grande parte dos que dele necessitam e não é o suficiente para garantir a manutenção das famílias em situação de quarentena e desemprego.

O racismo estrutural e a pandemia 

Ao aprofundamento da violência policial sobre o povo negro e da degradação das condições econômicas experimentadas pela classe trabalhadora soma-se, como terceira dimensão da política de morte do governo Bolsonaro, o descontrole intencional sobre a expansão das contaminações e das mortes pelo novo coronavírus.

Enquanto escrevemos estas linhas, são contabilizadas 1,4 milhão de casos confirmados e quase 58 mil mortos pela Covid-19. Mas alguns especialistas calculam que o número de infectados pode ser cinco a dez vezes maior do que o número de casos confirmados.

O vírus que chegou ao país por meio de membros das elites e das classes médias, hoje afeta especialmente os moradores das periferias. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o contágio em bairros de trabalhadores periféricos e negros chega a ser cinco vezes maior do que em bairros da classe média. O contágio segue sua marcha expansiva e se dissemina em direção ao interior do país.

E, justamente no momento mais grave de expansão da pandemia, e quando em diferentes estados o sistema de saúde estão próximos do colapso, governadores e prefeitos de todo o país se lançam à reabertura de comércios, shoppings, academias, igrejas, piorando ainda mais a superlotação do transporte público e gerando condições favoráveis à disseminação do vírus e a expansão dos contágios.

Vê-se com isso que, infelizmente, apesar de enfraquecido, Bolsonaro conseguiu fazer prevalecer sua política de morte no país. Impõe-se a dura e crua realidade do capitalismo brasileiro de naturalização da lucratividade de grandes empresários e especuladores, que se contrasta com a situação dramática vivida pela grande maioria do povo trabalhador, especialmente da população negra. Nessa naturalização das mortes pela covid-19, novamente opera, e com toda sua força, a matriz racista do capitalismo e do Estado brasileiros, qual seja: vidas negras tem pouco ou nenhum valor.

Os registros oficiais evidenciam que um jovem negro é assassinado a cada vinte e três minutos no Brasil. Isso corresponde a uma massa de 22.850 jovens negros das periferias brasileiras assassinados a cada ano. Um verdadeiro genocídio, que há décadas vem sendo denunciado pelos movimentos negros. Um genocídio que resiste ao tempo e aos ciclos políticos e perpassa o mandato de diferentes governos, que não deu trégua mesmo durante os treze anos de governos petistas — quando se combinou, contraditoriamente, com a implementação de políticas de promoção da igualdade racial, a exemplo da política de cotas raciais para acesso às universidades públicas.

Enquanto houver racismo não haverá democracia

O levante negro iniciado após o assassinato racista de George Floyd pelo policial Derek Chauvin tomou conta de todo os Estados Unidos e colocou em movimento, sob a liderança do povo negro, e em especial das mulheres negras, uma imensa massa de explorados e oprimidos.

Em termos programáticos, o levante antirracista massificou a demanda pelo direito dos negros e negras a uma vida livre da violência e da brutalidade policial, a demanda pela redução dos recursos destinados às corporações policiais e redirecionamento desses recursos para os serviços de educação e saúde pública e para a garantia de moradia decente, principalmente para os afroamericanos. O levante também colocou em pauta a noção do caráter sistêmico do racismo e, portanto, a compreensão de que ele só pode ser superado a partir de mudanças estruturais no capitalismo norte-americano.

Sob influência do que acontecia nos Estados Unidos, um onda de protestos antirracistas tomou conta da Europa e chegou até a Israel e à Palestina. A palavra de ordem “vidas negras importam” se mundializou e a compreensão de que a violência policial contra negros e outros grupos humanos racializados em diferentes partes do mundo é um problema sistêmico ganhou a consciência de setores mais amplos do que apenas pequenos nichos da vanguarda de ativistas de antirracistas, socialistas, antifascistas e de movimentos sociais. Os atos de derrubada de estátuas de antigos traficantes de escravos e colonizadores, evidenciou a expansão de uma difusa consciência anticolonial e anti-imperialista em amplos setores da juventude.

No Brasil, o choque de consciência despertado pelo levante negro norte-americano não demonstrou a força que se expressou na Europa, mas ajudou a impulsionar as ações de rua que haviam sido iniciadas pelas torcidas organizadas, em São Paulo, Porto Alegre e Brasília, contra o fascismo, em defesa da democracia e pelo Fora Bolsonaro, dando a elas uma tonalidade mais preta e acrescentando, com certo destaque, as bandeiras da luta antirracista. Essa combinação de coisas possibilitaram a ampliação do debate e deram mais visibilidade à questão racial no Brasil. E surgem cada vez mais novas iniciativas dos movimentos negros.

Importa destacar que mesmo antes do levante nos Estados Unidos, uma série de coletivos que já atuavam nas periferias desde antes da pandemia, formados principalmente por moradores das comunidades, vinham realizando ações de solidariedade, arrecadando dinheiro, mantimentos, produtos de limpeza, máscaras, e até mesmo organizando o atendimento aos infectados por covid-19 nas favelas. Essas iniciativas direcionam os seus esforços para a manutenção das vidas negras, suprindo através da auto-organização do povo negro e da classe trabalhadora os meios de reprodução social negados pelo Estado.

Também foi importante o giro que organizações tradicionais dos movimento sociais do país deram para apoiar essas ações. O MST, por exemplo, distribui toneladas de alimentos produzidos nos assentamentos rurais sob sua coordenação. O MTST atuou na organização do cadastro de famílias mais necessitadas para que recebessem as ajudas e até mesmo pudessem se cadastrar para o recebimento da Renda Emergencial. E muitos sindicatos por todo o Brasil também estão organizando campanhas de solidariedade.

Avançar na luta antirracista 

O Manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”, lançado pela Coalizão Negra por Direitos, já reúne em torno de 60 mil assinaturas, e pode cumprir um importante papel na organização de ações antirracistas no país. Mais do que isso, o manifesto traz a tona um debate que nunca foi tomado com a centralidade merecida pela maioria das organizações e lideranças que lutam por direitos e democracia no país acerca da combinação entre o caráter estrutural do racismo e a forma “normal” de funcionamento da democracia brasileira. E avança programaticamente quanto à noção de que, para além da defesa de uma democracia que dialoga com o racismo estrutural, é preciso realizar um conjunto de transformações estruturais, de ordem política, econômica e social, que permitam a conformação de uma verdadeira e substantiva democracia sem racismo.

A disputa política e programática quanto à compreensão do racismo brasileiro e quanto aos meios de sua erradicação merece bastante atenção. A Rede Globo, as ONG’s financiadas por grandes empresas e influenciadores digitais sem qualquer compromisso com as lutas sociais se lançam abertamente nessa disputa. Defendem que é possível combater o racismo através de pequenas ações individuais, ou combater a desigualdade através de doações de grandes empresas — irrisórias comparados ao seu capital —, mantendo a mesma estrutura social desigual e racista que nos trouxe até aqui. O Manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”, felizmente, aponta uma outra direção, que merece ser desenvolvida e estimulada. E tanto mais será quanto mais organização coletiva e ações prática forem geradas em torno dele.

No contexto dessa disputa programática, merece destaque a histórica participação de Silvio de Almeida, no programa Roda Viva, da Rede Cultura, na última Segunda-feira (22). Silvio frisou o caráter estrutural do racismo, não deixando margem de concessão para soluções individualistas. E ao dizer que “Ser antirracista é, portanto, incompatível com a defesa de políticas de austeridade” e que “Ser antirracista é incompatível com outra coisa que não seja a defesa do SUS”, pela autoridade intelectual que conquistou, ele contribui para a popularização de um programa de luta e transformação antirracista que aponta para a impossibilidade de superação do racismo sem a superação da desigualdade social e do sistema de exploração e opressão capitalista, que gera essa desigualdade.

Essa luta política programática que hoje se faz nas periferias, na academia, nas organizações políticas e nos movimentos sociais, terá nas eleições municipais deste ano um palco de grande visibilidade. Para ajudar a mobilizar e organizar o povo negro, que forma a maioria dos trabalhadores do nosso país, e apontar um caminho político de superação do racismo, é de fundamental importância que a pauta antirracista esteja na cabeça dos programas dos partidos da esquerda, mas também é vital que se ampliem os espaços para as candidaturas negras.

Nesse sentido, uma ótima notícia vem de Belo Horizonte/ MG, onde o PSOL já se definiu pela pré-candidatura de Áurea Carolina, mulher negra, mãe e militante antirracista, atualmente deputada-federal pelo partido, ou também a notícia de que Renata Souza, deputada estadual pelo PSOL no Rio de Janeiro, anunciou a sua pré-candidatura para a prefeitura da capital carioca. Assim como no movimento Vidas Negras Importam, mais uma vez as mulheres negras se colocam na linha de frente das transformações sociais e da reorganização política em nosso país e no mundo.