VIDA DE MOTOBOY
“Eu trabalho como motoboy desde 2012, de 2012 a 2015 eu sofri dois acidentes que quase custaram minha vida, e decidi que eu não trabalharia mais como motoboy, que eu não arriscaria mais a minha vida para encher o bolso de ninguém. E ai eu fui ser outras coisas fui ser camelô, estoquista de mercado, até que eu encontrei um trabalho como técnico de telecom, era um trabalho bacana, registrado, salário bacana, só que quando minha filha nasceu em 2017 eu fui mandado embora e ai eu me desesperei fique tentando encontrar outras coisas, me recusei a voltar para a rua como motoboy, mas ai em 2019 não teve como, tive que ir atrás de uma moto pra mim, parcelar ela e voltar pra rua. Quando eu fui atrás do mercado de motoboy já tava cercado pelo mercado de aplicativos e eu tive que me cadastrar em um aplicativo de delivery desses ai, o primeiro foi a Uber Eats, e ir pra rua trabalhar.
passei por várias coisas absurdas com aplicativo
Ai começou minha tormenta com aplicativos, passei por várias coisas absurdas com aplicativo, me cadastrei em outros aplicativos, a Rappi e a Ifood, e foram acontecendo vários absurdos, bloqueios injustos no quais eu ia lá na sede deles ficar chorando para eles me tirarem do bloqueio, explicando que eu tinha família, prestação de moto para pagar e um monte de coisa para resolver e não podia deixar de arcar com essas responsabilidades e que não tinha sido erro meu.
NA PORTA DA GLOBO
Ai em 21 de março desse ano, no meu aniversário de 31 anos, em meio a pandemia, o pneu da minha moto furou, e eu não conseguia dar sequência nos pedidos da Uber informei isso a uber e pedi para eles mandarem outro entregador até mim, porque eu não conseguiria arrumar o pneu, porque eram 11 horas da noite na Vila Olímpia não tinha borracharia, eles falaram “pode cancelar ai que não tem problema”, eu falei “sério? Vocês bloqueiam entregador que cancela pedido”, eles falaram que não teria bloqueio, mas no outro dia eu tava bloqueado, e eu fiquei revoltado, já tava numa série de revoltas, ai falei “agora vou chorar num lugar diferente” ai fui lá na porta da Globo chorar, inocente né?, achando que ia chorar na porta da Globo e ser ouvido, ai cheguei lá e o pessoal perguntou se eu tinha comida para entregar, eu falei que tinha uma denúncia para fazer, eles ficaram meio “assim”, eles insistiram se tinha comida, eu falei que não tinha comida, que tinha denúncia pra fazer, aí ninguém veio me atender, ninguém me deu atenção, eu fiquei meio chateado.
Ai cheguei lá e o pessoal perguntou se eu tinha comida para entregar
Na época eu tinha uns 300 seguidores no instagram, ai eu coloquei lá: “aconteceu uma coisa comigo, preciso fazer uma denúncia, preciso do contato de um jornalista”. Aí uma amiga que ela e a família são da luta há muito tempo, são da luta sindical, entraram em contato com outro amigo deles, o Roberto Parizotti, é um fotógrafo da luta ai, ele passou o contato do The Intercept e dos Jornalistas Livres para essa minha amiga e ela me passou, a Pamelloza Carvalho, uma artista incrível, quem quiser procurar ela. Ai entrei em contato com o Intercept e o Jornalistas Livres, mandei um vídeo e o vídeo acabou viralizando, que é aquele video de março, que eu falo sobre como é difícil você trabalhar com fome tendo que carregar comida nas costas.
“VAI PRA CUBA!”
Aí eu criei um abaixo-assinado que pede álcool em gel e alimentação para os entregadores, e esse abaixo-assinado progrediu rápido foi para mais de 100 mil assinaturas em coisa de semanas, e ai decidi que não ia ficar só nisso que eu ia pra rua, e fui atrás de outros motoboys, sou motoboy né, pra apresentar essa ideia né?
Ouvir de um cara igual você, sofredor igual você, classe trabalhadora igual você dá uma dessa, isso machuca.
E ai conversava com eles e o que eu escutei foi “se não tá bom pra você desliga o aplicativo e vai pra Cuba, se não tá bom pra você”, ai eu falei “sério mesmo? Pra Cuba? Tô fazendo uma luta por causa de comida pra vocês e vocês me mandam pra Cuba?”, ai eles falavam “Cê tá tirando nóis de “passa fome”, indo na mídia falar que nóis é passa fome, nóis não quer comida não, nóis quer ganhar melhor pra comprar a própria comida”, eu não ouvi isso de um e nem de dois, eu ouvi isso de um monte, e aí é aquela coisa né, um bolsonarista, playboyzão, de Moema chega em você e fala isso, é de boa eu peço até a passagem, vou lá em Cuba bato foto e mostro pra ele a viagem bacana que eu fiz. Agora, ouvir de um cara igual você, sofredor igual você, classe trabalhadora igual você dá uma dessa, isso machuca.
Ai eu fui ficando muito pra baixo, ai chegou uma hora que eu falei “preciso parar de abordar as pessoas assim, isso tá me deixando para baixo, vai chegar uma hora que eu vou sucumbir, essas pessoas vão fazer eu sucumbir dentro disso”. Ai eu falei “quer saber? Vou mudar o foco, vou em quem sofre mais, e quem sofre mais entra mais a minha ideia, vou atrás das bicicletas, vou deixar essa ideia de motoboy de canto, não é porque sou motoboy, as coisas mudou e eu preciso mudar, eu sou um entregador e eu vou atrás dos entregador e trocar ideia com o pessoal da bicicleta, e ai o pessoal da bicicleta não me mandou pra Cuba, então pensei “se ninguém me mandou pra Cuba eu tô em casa, é aqui que eu tenho que ficar”. E foi ai que a ideia, o “esqueleto” dos entregadores antifascistas surgiu.
PLANTÃO DA QUARENTENA
ESPECIAL | TRABALHADORES ESSENCIAIS
NESTA QUINTA-FEIRA, 02/07, 17h
Com Paulo Galo (Entregadores Antifascistas)
Camila Lisboa (Sind. Metroviários SP)
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ENTREGADORES ANTIFASCISTAS
A ideia já tava na cabeça mas não tinha um nome, ai ia ter uma manifestação na sexta-feira antes do domingo (06) do Largo da Batata, e ai eu fui lá falar com os companheiros, eram 20 companheiros, entregador de bicicleta a maioria, eles tentaram fechar a Paulista lá, eu vi que o coro ia comer e eu tomei um pouco a frente da coisa pra tentar mediar a situação, e ai eu falei com os companheiros “ó mano, antes de fazer isso aqui, a gente precisa aprender a fazer isso aqui, domingo vai ter um ato e eu queria mostrar pra vocês como funciona um ato grande, pra gente aprender e um dia a gente poder fazer o nosso também, que vocês acham de domingo me acompanhar no ato?” ai os caras falaram “demorô, como é que é esse negócio?” ai eu falei “entregadores antifascistas”, o nome nasceu assim, ali.
Um dia antes (do ato no Largo do Batata) começou entrar em contato comigo um monte de jornalistas, o pessoal do Intercept, do Jornalistas Livres, o pessoal da Globo inclusive, perguntando se eles podiam me acompanhar, entrevistar eu lá no ato, eu falei: bacana, vamo lá. E eu comecei a me desesperar porque eu eu pensei “agora vai ter um monte de jornalista lá comigo e os caras num vai vir”, porque eu não sabia se eu tinha acessado o coração dos companheiros, e ai eu pensei “se não vir ninguém eu vou passar vergonha”. No dia eu tava lá, chegaram o pessoal do Intercept, chegou todo mundo, e começaram a me perguntar “e ai Galo, cadê os caras?” eu falava “tão chegando, tão vindo ai” morrendo de medo dos caras não vir, quando eu menos pensei um chegou e bateu no meu ombro “e ai Galo, beleza mano?” ai foi chegando, um, mais um, dois, três, quando quando vi nós era dez ai mano aconteceu, ai já era.
Aconteceu uma coisa ali no ato que marcou meu coração e minha mente para o resto da vida, eu vou ser eternamente grato as pessoas que fizeram isso lá no ato.
O ato foi muito louco, e aconteceu uma coisa ali no ato que marcou meu coração e minha mente para o resto da vida, eu vou ser eternamente grato as pessoas que fizeram isso lá no ato, a gente tava parado ali conversando com o pessoal do Intercept e ai a gente falou “vamos se deslocar e ir mais lá pra frente”, e ai quando a gente começou a se deslocar abriu tipo um “mar vermelho” no meio do ato pra gente passar e o pessoal foi batendo palma para os entregadores, e ai depois que teve essa cerimônia toda, o pessoal batendo palma, o pessoal falando “porra mano, vocês são foda!”, ai os caras vieram pra cima de mim, os entregadores, “Caramba Galo, esse negócio do ato é bom mesmo, o negócio é sério, é isso ai mesmo, Entregadores Antifascistas”, ou seja, aquelas palmas daquele pessoal, deu uma auto estima para eles, e para mim também, que mano, isso é impagável. Aquilo estruturou muita coisa, aquelas pessoas que bateram aquelas palmas, elas não tem noção do quanto elas alimentaram uma coisa muito boa no coração da gente, todos aqueles entregadores que estiveram ali no ato continuaram se conectando comigo e passaram a integrar os Entregadores Antifascistas e o movimento tá cada vez maior.
COMIDA E DEMOCRACIA
As pessoas ficam confusas as vezes com o antifascistas, tem muito motoboy que me pergunta “mas que que tem a ver antifascista com motoboy?” eu falo “tem tudo a ver mano, nós tá numa luta de fome, uma luta pela alimentação, se a gente não puder mais gritar “Fome!” porque não tem mais democracia no país, que luta a gente vai travar? A gente vai ter que abandonar a nossa luta para ir defender uma luta pela democracia, porque quando tem democracia não tem outras lutas, só tem luta na democracia, e a gente precisa reestruturar, e a gente vai perder esse tempo de novo?
nós tá numa luta de fome, uma luta pela alimentação, se a gente não puder mais gritar “Fome!” porque não tem mais democracia no país, que luta a gente vai travar?
Então os Entregadores Antifascistas é basicamente um movimento de entregadores, um movimento de empoderamento dos trabalhadores, um movimento que quer empoderar o trabalhador na alma, mente e corpo, pra gente poder ir pra luta de forma sadia, e crescer de forma sadia também. A nossa principal luta é a comida mesmo, só que a comida está altamente ligada com a vitória, a comida se conecta com a vitória, e a vitória quando, você vence uma luta, isso traz uma auto estima incrível, e um empoderamento incrível, e o lance de empoderar o trabalhador está ligado nisso.
A comida é nossa necessidade mais básica mesmo, não dá pra gente trabalhar com fome carregando comida nas costas, isso é tortura. A gente passa o dia inteiro com fome na rua, sentindo o cheiro de todas as comidas. São Paulo é uma cidade gastronômica, a gente sente o cheiro de todas essas comidas maravilhosas ai que o pessoal come, mas nós nunca provamos nenhuma, nós não come nem macarrão com salsicha porque se nós levar macarrão com salsicha na marmita azeda, fica virando no meio do sol e na hora de comer azeda.
LUTA NÃO É MIOJO
Eu costumo dizer assim: “a luta não é miojo, ela não acontece em cinco minutos”, eu não comecei sofrer ontem e não vou parar de sofrer amanhã, tem uma estratégia, a gente quer trabalhar de forma inteligente, e sinceramente esses aplicativos ai, eu acho que eles são mais inteligente do que eles é, eles não são tão inteligente assim, na minha humilde opinião, eu acho que se a gente for organizado, nós classe dos entregadores, eu me considero um trabalhador antes de ser um entregador certo?, então nós classe trabalhadora, se a gente decidir fazer com inteligência, com estratégia, e paciência, acreditar que a luta não é miojo, que não vai ficar pronto amanhã, eu acho que a gente tem tudo para conseguir o que a gente quer.
A verdade que eu acredito é essa daqui ó: “existe força de trabalho sem patrão, mas não existe patrão sem força de trabalho”
Porque tem uma verdade, e eu acredito que a verdade é uma coisa impressionante, a verdade nos favorece, e a verdade que eu acredito é essa daqui ó: “existe força de trabalho sem patrão, mas não existe patrão sem força de trabalho” então o poder tá na mão da gente, mas é que eles ficam mentindo pra gente, pra gente achar que não tem esse poder na mão, mas nós tem, e eu quero mostrar pros companheiros que o poder é nosso e não deles, eles mentem, e eu quero ficar buscando desconstruir essas mentiras e poder falar “e aí? Viu que era mentira?”
EMPREENDEDORISMO
Olha, tem duas formas de olhar a coisa [a pandemia], tem o lado onde as pessoas estão mais sensibilizadas e ai elas estão mais abertas a entender o sofrimento do próximo, isso tá acontecendo, e tem a parte de você olhar como tá a vida do trabalhador na pandemia, tá pior, a gente tá ganhando menos e trabalhando mais. Por que? Porque as demandas aumentaram, com certeza, mas aumentaram para os restaurantes, para os entregadores não, porque os aplicativos triplicaram o numero de entregadores na rua, se eles triplicaram o número de entregadores na rua, então isso diz que a demanda pra gente não aumentou, ela caiu.
Não existe isso de ‘eu faço meu horário’, o que faz meu horário são minhas dívidas.
Ai tem aquela falsa ideia de que a gente é patrão de si mesmo, que a gente faz os nossos horários, só que não é assim, quanto menos a gente ganha mais a gente trabalha, porque a gente tem dívidas, eu tenho uma dívida que anda comigo, eu ando montado em cima de uma dívida, pra poder trabalhar, eu tenho R$ 600,00 de gasolina por mês, mais R$ 650,00 de parcela da moto, mais R$ 130,00 de um seguro que não aguento pagar tem alguns meses, e tá sem seguro minha moto faz meses, mais o plano de internet do meu celular, um monte de coisa que eu tenho que pagar, então não tem esse de que ‘eu faço meu horário’, não existe isso de eu faço meu horário, o que faz meu horário são minhas dívidas. E tá todo mundo endividado, senão ninguém tava trabalhando com isso, então não tem essa história de que você é patrão de si mesmo.
E os caras querem ficar mentindo que nós é empreendedor, e não é, nós é trabalhador, força de trabalho, e essa é a coisa que eu quero desconstruir na cabeça dos companheiros para a gente pode construir uma coisa nova, que não é nova né? É construir uma coisa saudável, que a gente já tem, o que não é pra gente construir essa coisa saudável em cima de um alicerce podre, então a gente tem que desconstruir esse alicerce podre, pra poder construir esse alicerce saudável pra poder construir essa coisa de novo. Então primeiro a gente tá desconstruindo as mentiras para depois a gente poder iniciar a luta, então é devagarinho mesmo, passo a passo até a gente chegar lá.
ENTREGADORES ANTICAPITALISTAS
Dizem que a pandemia vai mudar as pessoas e tal, eu costumo dizer que as pessoas estão no ritmo do céu, o céu tá muito bonito, você olha para o céu de manhã, tá bonito, você olha para o céu no final da tarde e tá bonito, e ai o que eu acho que as pessoas tem que fazer é olhar para o céu e dizer “olha o céu que o capitalismo mata todo dia esse é o céu que o capitalismo mata todo dia, será que esse capitalismo deu certo mesmo?” e ai eu acho que se as pessoas não tomar cuidado, quando o céu começar a ficar cinza as pessoas vai se acinzentar também, no mesmo ritmo do céu, o céu vai começar a ficar cinza de novo, e as pessoas vão começar a ficar cinza de novo, as coisas vão começar a se acelerar de novo, o capitalismo vai voltar na sua potência, até mais né? Pra poderem buscar o prejuízo que tomaram. E as pessoas vão nesse ritmo.
Será que não mudo o nome de Entregadores Antifascistas para Entregadores Anticapitalistas?
Eu acho que o maior problema mesmo, pra ser sincero mesmo, às vezes eu penso será que não mudo o nome de Entregadores Antifascistas para Entregadores Anticapitalistas? Eu acho que combina mais Entregadores Anticapitalistas. As pessoas acham que quando eu falo mal do capitalismo eu automaticamente tô colocando o comunismo como solução; eu falo pras pessoas que eu não sou comunista, mas eu não sou comunista porque nunca li os livros do Marx, entendeu? Então se eu nunca li os livros do Marx eu não tenho como dizer pra você que eu sou comunista porque eu não sou uma coisa que eu não entendo, eu respeito muito a ideia do comunismo de empoderar o trabalhador, eu sei que essa ideia tá lá no comunismo, de empoderar o trabalhador, e eu sou uma pessoa que eu tô no movimento de empoderar o trabalhador, então não tem como não conectar uma coisa com a outra, mas dizer que eu to colocando como solução não.
Eu só to falando mal do capitalismo mesmo, que eu acho que não deu certo pra mim que sou peão, que sou classe trabalhadora, mas acho que também não deu certo para as outras pessoas ai que acha que é rica, não deu certo pra ninguém o capitalismo…
*Mediação da live: Carol Burgos. Transcrição: Vinicius Prado, de Curitiba, PR. Edição: Gustavo Sixel.
Veja a live no canal do Youtube do Esquerda Online
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