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BRASIL

O anti-ensino em tempo de pandemia: relatos de uma experiência

Emmanuela Harakassara*, de Fortaleza, CE
Marcello Casal/Agência Brasil

Este texto trata de uma experiência reivindicatória de um grupo de alunos da educação a distância da Universidade Aberta do Brasil, vinculada à Universidade Estadual do Ceará (UECE) que, diante do cenário caótico em curso, começou a expor diversas questões que os impossibilitava responder, satisfatoriamente, às disciplinas ofertadas pelo curso. Os educandos a que me refiro já possuem familiaridade com as plataformas virtuais, porém, como demasiadamente humanos que são, eles não estavam (e nem poderiam estar) familiarizados e nem adaptados a algo tão dramático e doloroso, que é a vivência com uma pandemia,  que, ao longo desses meses, como todos sabem, tem ceifado tantas vidas.

Os estudantes em questão moram em Itapipoca, uma cidade localizada a cerca de 130km de Fortaleza, capital e epicentro do novo coranavírus no estado do Ceará. Para que o leitor se situe, o município interiorano não possui mais do que 116 mil habitantes[1] e já lastima 54 mortes, com uma média de 1,74 óbitos por dia.

Nesse contexto de perda e luto, os estudantes apontam inúmeras dificuldades de harmonizar estudo remoto e crise sanitária, dentre as quais eles ressaltam:

  1. Ter que compartilhar com os filhos o aparelho de celular ou notebook, porque os pequenos também têm de fazer as atividades do colégio;
  2. O aumento do trabalho doméstico, e aqui recordemos o quanto essa sociedade é machista e que as mulheres acabam fazendo todo o trabalho da casa;
  3. O medo de ter os familiares e amigos afetados pela Covid-19 (aliás, alguns já perderam ou estão com alguém próximo infectado);
  4. A ausência de encontros presenciais que aconteciam nos polos de apoio;
  5. A impossibilidade de irem ao polo acessar computadores e internet (ferramentas que alguns não dispõem em casa);

Bem, poderia fazer uma lista bem mais ampla, mas vou poupar os leitores da exaustão. À luz desse enfoque, inicialmente pergunto: esses estudantes devem ser prejudicados se não cumprirem com os seus “deveres” acadêmicos? São responsáveis, afinal, pelo que estão passando? Devem, enfim, seguir à risca o calendário acadêmico?

Pois eu lhes digo que se você está numa redoma com internet, comida, TV a cabo, livros e contas pagas, com efeito, muitos dos seus alunos não estão. Seu aluno é aquele da fila quilométrica nas agências da Caixa atrás de um auxilio emergencial para pagar as contas. Seu aluno é aquele que perdeu um parente ou amigo para esse vírus e, nesse momento, está com medo de morrer também. Seu aluno é aquele que não tem um espaço privado em casa para fazer as inúmeras atividades que você está cobrando. Seu aluno, muitas vezes, é aquele que tem de fazer todas as atividades domésticas. O seu aluno é um ser humano!

Considerando esses apertos e impasses, os alunos se organizaram e se posicionaram, até porque  compreendiam (e compreendem) que é por  meio de uma discussão democrática que as soluções são apontadas e construídas, e não por imposições. Compreendiam (e compreendem), também, que o coletivo tem força, e foi isso que leram em muitas disciplinas e foi isso que ouviram em tantas outras. Mas, infelizmente foram recebidos de forma irredutível por quem deveria ter a sensibilidade de ouvi-los e, junto deles, encontrar uma saída que, pelo menos, admitisse os embaraços próprios de uma crise humanitária. Infelizmente, silenciados  e intimidados, os discentes da EaD serão obrigados, por exemplo, a cursar uma disciplina de estágio e tantas outras.

Relatada essa experiência, deixo algumas perguntas para os que chegaram ao final deste texto: é possível fazer estágio sem ir a uma escola? É viável se praticar a arte do ensino quando a vida lhe impõe limites quase intransponíveis? É praticável adotar uma saída puramente técnica quando faltam as condições básicas para a sua realização?

De certo modo, são essas as perguntas que, em última análise, os estudantes deixaram como um convite à reflexão.

*   Professora de História e Mestra em História e Culturas (Universidade Estadual do Ceará).

[1] Dados coletados do site do IBGE, disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/itapipoca/panorama e da Plataforma IntegraSus, disponível em: https://indicadores.integrasus.saude.ce.gov.br/indicadores/indicadores-coronavirus/obitos-covid