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BRASIL

A internet e a organização do capitalismo global: a cisão da pandemia

Fabricio Caseiro, Raphael Mota e Veronica Freitas, do Rio de Janeiro, RJ

A pandemia do coronavírus apresenta questões de impacto estrutural na organização do capitalismo. As mudanças em curso para lidar com a doença vêm sendo utilizadas por diferentes setores da burguesia para conquistar novas posições de poder e acumular riquezas. Nesse contexto, em meio a uma crise econômica com concentração de renda e mercados, a internet ocupa papel fundamental. Isso às custas da falência de inúmeros pequenos e médios negócios pelo mundo, o aumento exponencial da fome e a perda das condições de vida da maioria da população, além dos diretamente afetados pela doença. 

Assim, vem ocorrendo uma intensificação do uso da tecnologia nas relações sociais com a Covid-19. O fato das fortunas dos bilionários estadunidenses terem aumentado em 15% nos dois primeiros meses de pandemia é bastante ilustrativo do processo, sob lideranças dos empresários da Amazon e Facebook. Esse fenômeno não significa que tais empresas especificamente cresceram, mas sim que os burgueses da tecnologia despontam como lideranças do empresariado global, com seus múltiplos investimentos. Vale a ressalva de que as políticas de isolamento ocasionaram o aumento de receita dos serviços de entrega, da Amazon e Alibaba, mas houve perda de capitalização comparativa das demais gigantes da tecnologia, devido à crise no mercado de publicidade ocasionada pela queda na circulação de mercadorias. 

Com a perspectiva da tecnologia do 5G e a disputa de mercados entre China e Estados Unidos, a tendência é que a tecnologia penetre ainda mais fundo em nossa realidade. Diante disso, a proposta deste texto é contribuir com o necessário debate sobre a contradição entre o uso da tecnologia, como aumento da exploração, da vigilância e como instrumento ideológico de setores conservadores, em contraposição aos benefícios que ela pode nos proporcionar. Consideramos fundamental, portanto, desenvolvermos essa agenda de discussão, e pautarmos a questão do acesso à internet como direito.  

O crescimento da vigilância

Uma das ameaças presentes no processo em curso é o incremento da vigilância das lutas populares, por governos ou empresas. Esse é um dos grandes desafios atuais que está imposto para quem resiste à exploração e à opressão. Analistas dos governos da China e da Coréia do Sul afirmam que essa foi uma das principais bases para a ação contra o coronavírus nesses países. (1) Assim, por meio de aplicativos, as pessoas infectadas foram monitoradas – bem como os espaços públicos – informando aos cidadãos dos riscos de contaminação a cada momento.

Na China, o aumento da vigilância já vinha ocorrendo como uma expressão autoritária do governo de Xi Jinping, como é o caso do aumento da vigilância no meio educacional. Assim, medidas rumo à distopia de uma “pontuação” da população junto a governos, que influenciaria na possibilidade de acesso a direitos, foram intensificadas com a pandemia. 

Por sua vez, as potências ocidentais da Europa e EUA supostamente se revestem de mais “liberdade”, com maior apelo a restrições da vigilância pelo poder público. No entanto, o que ocorre é uma ação ininterrupta de espionagem por meio de empresas – nesses países e nos seus subordinados, caso do Google e do Facebook – além da própria ação de vigilância dos governos. Nesse sentido, Andrew Cuomo (2), governador de Nova Iorque, no dia 6 de maio de 2020, anunciou que o ex-presidente do Google assumiria o comando da equipe para moldar a reabertura do estado pós-pandemia. O ex-CEO do Google, Eric Schmidt, anunciou na ocasião que sua liderança se basearia na integração da tecnologia de forma permanente em todos os aspectos da vida cívica. 

Em sua propaganda de que o país deve priorizar pesquisa e disseminação da internet, Schmidt enfatizou que a ação seria de interesse econômico e, sobretudo, deveria ser investido pela pasta de Defesa dos EUA.  A esse respeito, fica a reflexão de como fortalecer em patamar superior a parceria com o Estado é uma das formas possíveis das empresas vigilantes compensarem a queda de receitas, além da ampliação de mercados em geral. Afinal, junto com a queda nas vendas das suas mercadorias (majoritariamente publicitárias) ocorreu um aumento nos custos de manutenção e expansão dos parques produtivos (com alargamento do consumo das plataformas de uso “gratuito”). A perspectiva de ampliação de mercados também pode ser identificada na ofensiva do Google nas modalidades de educação on-line durante a pandemia. 

É importante salientar que no Brasil foram aprovadas legislações que intensificaram a possibilidade de vigilância e criminalização da ação política: a Lei de Organizações Criminosas e a Lei Antiterror. A primeira, nº 12.850/2013, permite uma ampla gama de ações de vigilância sobre as organizações enquadradas como criminosas, incluindo a prescrição de infiltração de agentes e interceptação de comunicações. Por sua vez a Lei Antiterror, nº 13.260/2016, prevê penas muito severas aos atos considerados terroristas, entre os quais se elencam diversas formas de ação confrontacional. Assim, apesar de constar um parágrafo que salvaguarda movimentos sociais, a Lei Antiterror possibilita uma maior ingerência punitiva sobre a luta política a partir da oposição entre “pacíficos” e “terroristas”, como se observa a nível mundial. 

Desse modo, desde os atentados do 11 de setembro de 2001, o antiterrorismo passou a ser um dos eixos da geopolítica dos EUA, com pressão internacional pela aprovação de legislações e cooperação entre nações. Foi o caso da aprovação da lei brasileira no contexto da realização das Olimpíadas. No mesmo ano, em 2016, Facebook, Microsoft, Twitter e Youtube divulgaram (4) que estariam se aliando no “combate ao terrorismo”. As empresas anunciaram uma plataforma comum de conteúdos considerados suspeitos, com identificação facial dos “terroristas”, a ser compartilhada com governos. Isso significa um nível de controle social em um novo patamar. 

Na mesma toada, o uso intensivo da internet traz uma sofisticação da ação ideológica. Afinal, o uso de big data possibilita que informações distintas cheguem a públicos diferentes de acordo com os perfis traçados nos espaços online. Isso tem se ampliado profundamente, sendo utilizado na campanha eleitoral de Trump, com o uso do Facebook, e por Bolsonaro, em uma apropriação local desse método pelos robôs nos grupos de WhatsApp. Esses instrumentos foram amplamente utilizados, em conjunto com a militância conservadora mais engajada. Desde então, Bolsonaro vem se destacando a nível global como um chefe de Estado que prioriza a internet e seus instrumentos como espaço privilegiado de comunicação. 

Problematizando a educação remota/a distância: o avanço da “uberização”

Outro elemento muito importante aberto pela pandemia da Covid-19 consiste na janela de oportunidade para a implementação em massas da Educação Remota e suas variações. Apresentada como uma saída para a educação em meio ao distanciamento social forçado, o fenômeno tem representado, na verdade, a abertura de um nicho econômico para as grandes corporações do mundo digital, como Google e Microsoft, e para as gigantes da educação, como  Yduqs (que adquiriu a Estácio aqui no Brasil) e Cogna (antiga Kroton).

Essas gigantes estão aproveitando o grande problema educacional gerado pela pandemia para atingir três grandes objetivos: primeiro, testar em massas seus produtos (plataformas de educação a distância ou remota), fortalecendo um modelo de negócio que oferece acesso gratuito a aplicações e plataformas para coletar dados de usuários que serão vendidos em mercados de big data (caso do Google Classroom e a SEEDUC-RJ); segundo, ocupar um mercado que ainda não foi totalmente desbravado e tem grandes possibilidades de retorno econômico; terceiro, fideliza os alunos e famílias às suas marcas desde o início da formação dos discentes.

Este último ponto demonstra o quão danoso é quando a Educação é tratada como mercadoria. Para o capitalismo do século XXI, que cada vez mais se digitaliza e utiliza a tecnologia para controlar e induzir o consumo, conseguir desde os primeiros anos da formação se fazer presente enquanto ferramenta escolar é garantir uma fidelidade destes indivíduos às marcas. Além disso, há um crescente uso de banco de dados e algoritmos nas redes sociais e outras mídias para estimular e moldar o consumo de mercadorias.

Sobre o uso das plataformas de EAD e Ensino Remoto, se destacam alguns elementos a serem debatidos – e vale a ressalva de que a irmã de Paulo Guedes, Ministro da Economia de Bolsonaro, é a atual presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância. (4) O primeiro tema é sobre o uso da tecnologia na educação. Há diversas discussões sobre os limites das ferramentas tecnológicas no processo de ensino aprendizagem. Contudo, existem elementos que nos façam defender o uso de tais ferramentas, visto que a Escola precisa lidar melhor com as inovações tecnológicas. Essa é uma tarefa muito importante, a de modernizar a escola, principalmente a pública. Porém, é importante ressaltar que é necessário termos preocupações com o uso destas ferramentas. Essas tecnologias precisam ter um “porquê pedagógico”, ou seja, precisa passar pelo planejamento e ter um objetivo dentro do processo de ensino aprendizagem.

Em segundo lugar, é preciso fugir das gigantes e da caridade, nenhuma dessas empresas dá nada de graça. As plataformas e ferramentas que possuem software fechado têm por trás um oligopólio que, além de visar o lucro, apresenta interesses de controle e indução perigosos. Apesar de estarmos muito mais acostumado com seus layouts do que um software livre, é necessário nos permitir conhecer essas ferramentas abertas e refinar nossas reivindicações.

Outra questão importante é sobre a precarização do profissional da educação frente ao EAD e suas modalidades. Todos/as os/as educadores/as que estão trabalhando em home-office já sentem um pouco desta precarização. Estão vivendo uma intensa sobrecarga na preparação e na aplicação das aulas, sem dúvida as aulas online são muito mais trabalhosas para quem não tem formação técnica. Isso se agrava com a sobreposição das jornadas de trabalho, doméstica e produtiva, afetando principalmente as mulheres.

Mas a grande questão sobre a precarização é a possibilidade da expansão massiva da “uberização”. Com a utilização das plataformas de aulas on-line, a diminuição dos custos da empresa com os trabalhadores da educação pode ser facilmente atingida. Esse barateamento da força de trabalho vem associada a uma precarização das condições em que está inserida e do serviço oferecido.

A primeira forma de redução de custos é que um único professor, a partir de uma tele-aula ou aula online, pode substituir um número imenso de outros professores, com possibilidade de ser replicado para muito mais turmas, sem um limite predefinido. A segunda é a eliminação de direitos trabalhistas e outros benefícios. Com as plataformas online os educadores podem vir a ser mais uma categoria engolida pelo mercado de aplicativos que precariza milhões pelo mundo, de entregadores a profissionais de saúde. Além dos problemas para o próprio professor, os alunos são muito prejudicados, pois não há um processo completo de ensino e aprendizado sem um vínculo de afeto entre discentes e docentes.

A EAD e suas modalidades apresentam um papel pedagógico dentro das diversas modalidades de ensino, como em regiões de difícil acesso, como complementação e até para determinados cursos. Contudo, estamos vivenciando a tentativa de implementação de um novo paradigma na educação mundial, colocando-a de vez como uma mercadoria, submetendo-a à lógica do lucro e não da aprendizagem e socialização do indivíduo. E nesta conjuntura de pandemia esse processo está sendo operado com o uso em larga escala destas ferramentas. 

A expansão de trabalhos por aplicativos – que juntas já são quem mais “emprega” no Brasil – se revela como um processo global de escamoteamento das garantias trabalhistas historicamente conquistadas. Esse fenômeno se associa ao retrocesso legislativo dessas vitórias, como é o caso da Reforma Trabalhista e da Previdência no Brasil. A ascensão do “infoproletariado” subverte uma lógica – que poderia ser positiva – do avanço da internet. Não há, afinal, instrumento esvaziado de seu contexto, com a apropriação capitalista das inovações tecnológicas como aumento da exploração. 

Outras disputas importantes

É importante também pontuar que a intensificação do uso da internet gera mudanças profundas nas relações sociais de conjunto. Além das ameaças da vigilância e precarização do trabalho, existe uma tendência a uma pressão reacionária do esvaziamento dos espaços públicos e das interações sociais. Cabe a nós também fazer essa disputa. A interação online não deve significar o isolamento de espaços presenciais. A quarentena da pandemia é, afinal, uma condição pontual para lidar com uma crise sanitária. Nossa luta é para que o espaço público seja ocupado pelo público que a ele pertence, e que as relações humanas sejam ricas em interações. Afinal, a internet deve ser usada para diversificar as nossas experiências, e não as estreitar. 

No mesmo sentido, o uso excessivo de produtos tecnológicos é permeado por uma fetichização. É importante compreendermos o que nessas inovações são, de fato, avanços e não o consumo voraz banalizado de matérias primas e produção de lixo de alto impacto ambiental. 

O que queremos? 

A pandemia do coronavírus, além dos profundos lamentos causados por incontáveis mortes por todo o mundo, revela impactos profundos na organização do capitalismo, entre os quais a intensificação do uso da internet. Diante disso, cabe a nós, que lutamos pela transformação radical da realidade em favor da classe trabalhadora, encarar essa realidade. Não se trata de reivindicar retrocessos tecnológicos, mas disputar seus rumos a nosso favor. 

Assim, o debate da internet deve passar necessariamente pela defesa de mecanismos de controle da vigilância, como o uso de criptografias, a instauração de marcos regulatórios e o combate à perseguição dos movimentos sociais. Devemos também estar atentos e pressionar por mecanismos de combate à difusão das fakenews, que se tornaram um importante instrumento político da direita conservadora global.  

Ademais, se a tecnologia tomou essa dimensão é importante começarmos a discutir o seu acesso em outro patamar. A internet como direito começa a ser uma pauta necessária. Nesse sentido, não queremos o incremento da espionagem e manipulação de grandes corporações, como é o caso do Google ou Facebook. A internet como direito passa pela ampliação do uso de softwares livres como um serviço público, que pode se desenvolver por meio de uma infraestrutura estatal de acesso à rede mundial.

Discutir os impactos do avanço tecnológico na realidade brasileira pode parecer um debate fora de lugar. Afinal, estamos em um país onde parte considerável da população se encontra em situação de analfabetismo e onde a fome assola a realidade de inúmeras famílias. No entanto, é preciso coordenar essas frentes de luta, compreendendo as contradições de nosso capitalismo marginal. 

Por fim, cabe assinalar como o desenvolvimento da internet tem revelado grandes potencialidades para a sociedade que queremos construir. A partir dos seus instrumentos, resistências por todo o mundo são viralizadas, lideranças indígenas podem se conectar com um público global, opressões são denunciadas e incontáveis lutas potencializadas. Para a arte e a produção científica, esse avanço significa desdobramentos de novos mecanismos a serem explorados. Para o desafio do internacionalismo, sobretudo, a internet pode se apresentar como um mecanismo basilar da articulação de revolucionários. Essas perspectivas não contradizem uma visão crítica sobre os rumos que estão sendo trilhados. O capitalismo do século XXI se baseia no avanço da internet em todos os níveis da vida social, cabe a nós fazer a disputa de como esse instrumento pode servir à nossa emancipação.  

NOTAS

1 – Registros importantes vêm sendo divulgados pelo filósofo Byung-Chul Han, entre outros: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html

2 – Naomi Klein realizou uma reportagem na qual aborda detalhadamente este processo: https://theintercept.com/2020/05/13/coronavirus-governador-nova-york-bilionarios-vigilancia/

3 – http://newsroom.fb.com/news/2016/12/partnering-to-help-curb-spread-of-online-terrorist-content/

4 – https://contrapoder.net/colunas/pandemia-janela-de-oportunidade-para-o-capital-educador/