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BRASIL

Ensino à distância em época de pandemia, um precedente perigoso

Tamires Marinho*, de Fortaleza, CE
Pexels.com

Presentemente, nos deparamos com uma situação onde o distanciamento social imposto para evitar a disseminação do novo coronavírus impede reuniões, o que atinge diretamente as atividades escolares presenciais; como medida paliativa, escolas e universidades têm adotado o modelo de ensino à distância (EAD). Diante do Exame Nacional do Ensino médio (ENEM), alguns alunos estão em situação delicada, muitos se sentem prejudicados pela interrupção do ensino presencial. Conforme discutiremos, as aulas online não devem substituir as presenciais por não conseguirem a mesma efetividade pedagógica.

Ocorre que esta ampla utilização da plataforma EAD abre um precedente potencialmente perigoso às comunidades acadêmicas/escolares, exatamente num período em que o governo tenta de todas as formas sabotar os projetos educacionais do país, atacando docentes, cortando verbas e bolsas estudantis, estimulando o ensino domiciliar, declarando guerra a estudos críticos, proibindo aulas voltadas à educação sexual e difamando as autoridades científicas brasileiras, entre outras inúmeras barbaridades que só um projeto fascista ousa cometer.

E porque uma plataforma de ensino EAD não deveria ser uma alternativa viável num futuro próximo, para o ensino de milhões de pessoas?

 

1 – A transferência em sala de aula

A psicanálise postula, desde Freud, a importância da transferência no ambiente de sala de aula. A transferência consiste numa atuação de um sujeito para com um outro, de uma situação já vivida, em especial com os pais, a posição de autoridade do professor favorece psiquicamente uma aliança com a lembrança da posição dos familiares. Sendo assim, o professor será inevitavelmente comparado, ainda que inconscientemente, às figuras familiares de seus alunos, isso ocorre mais fortemente quanto mais jovens são os alunos. Sabemos da problemática envolvida em tal situação, onde esta “colagem de figuras” pode interferir tanto para ajudar, quanto para atrapalhar o tal processo, mas o fato é que sem ela nenhuma relação de ensino e aprendizagem pode se dar.

Sem o contato, não há relação real entre os indivíduos, o que enfraquece a relação entre o aluno e a instituição de ensino. Mesmo entre colegas, há a dimensão da identificação, que promove a sociabilidade e a própria fundação de um Eu, que só pode se pautar em referência a um outro, dito de outra maneira, quanto mais pessoas conhecemos, mais possibilidades teremos na construção de um Eu. Tais processos, só são possíveis diante da presença e contato entre alunos e professores, isso sem entrarmos na importância da troca de experiências, nas relações de confiança que se estabelecem entre amigos no ambiente escolar, ou ainda dos inúmeros casos de abuso sexual revelados por estudantes (neste caso, comentaremos a respeito no ponto acerca da ideologia).

A relação unicamente virtual entre atuantes na educação tende a se estender para a relação do sujeito para com o objeto de estudo, e numa relação virtual, entendemos que os compromissos, e as intervenções não são comparáveis a um ambiente físico reservado a esta função, logo o ensino se torna impessoal, tecnicista e portanto, incompleto. Para finalizar as considerações acerca desse ponto: a operação do saber e da construção de um conhecimento só pode se dar pela mediação de um outro indivíduo, esta mediação pessoal se estende no relacionamento entre o sujeito e seu objeto de estudo, por esta razão é comum nos apegarmos a determinadas disciplinas tantas vezes por nosso contato com algum professor específico, além é claro de aptidões próprias a cada sujeito; existe ainda a necessidade de fomentação de um desejo de ensinar (no caso dos professores) e do desejo de saber (no caso de alunos) que pode estar seriamente prejudicada pelo distanciamento promovido pelo método, visto que desejos são direcionados a dimensão de outrem, e não a um aparelho tecnológico; soma-se a isso a condição intrínseca ao ser humano de um contato social que promova o desenvolvimento de laços sociais, condição sine qua non para a saúde mental de forma geral.

2 – A escola e a luta de classes

 É amplamente difundida na pedagogia a teoria acerca da dualidade da educação no sistema capitalista, esta consiste em afirmar que na educação, assim como no todo social, há uma divisão classista. Ou seja, há uma educação voltada para a classe burguesa dominante, e outra voltada à classe operária, preparando indivíduos para liderar e outros para serem comandados.

Neste sentido, sabemos com segurança que a oferta de aulas em EAD não será feita aos filhos dos burgueses, estes sabem bem a importância de uma boa educação para a manutenção de seu prestígio e “pompa” social; mas aos filhos de proletários, não só seria viável quanto preferível, analisemos então as condições.

As universidades particulares vêm promovendo aulas em EAD já há algum tempo, é corriqueiro vermos cursos no formato 100% virtual, com valores mais acessíveis é claro, e com a promessa “de um diploma igual ao presencial”. O central aqui é percebermos como esta modalidade de ensino é voltada para o público mais pobre, que geralmente trabalha e não tem tempo disponível para se dedicar integralmente aos estudos. Falamos então, do proletariado em busca de qualificação profissional, com claros objetivos de ascensão profissional. Neste caso, não há preocupação com teorias, críticas ou abstrações, trata-se apenas do concreto, do mínimo possível para se desempenhar uma atividade, seja ela mecânica ou não. Aos olhos da burguesia, mão-de-obra especializada, barata e acrítica, um prato cheio.

Em relação às escolas, a burguesia brasileira afeiçoada a “corte de gastos” acumularia ainda mais vantagens, o fim de despesas com professores, estrutura escolar, funcionários, e tudo que uma instituição escolar necessita, desde merenda escolar a bibliotecas. Como eles dizem, um “case de sucesso”!

3 – A escola como arena ideológica

Desde a ascensão do discurso da ciência em detrimento ao da religião enquanto aparelho ideológico do Estado por excelência, a escola foi transformada em principal campo de luta ideológica entre classes. Atualmente, temos outro polo de expansão para a ideologia burguesa capitalista que é a mídia em geral, desde tv, jornais a grande parte da internet. O ensino em EAD pode ser articulado por essas duas formas de disseminação da ideologia numa união entre mídia e escola.

A pós-modernidade se esforça em repassar a ideia de que a ciência pode ser desprovida de conteúdo ideológico, ou ser “neutra”; embora saibamos por meio de vários autores como Gramsci, Althusser, Zizek, etc que isto simplesmente não é possível, especialmente se estivermos no campo das ciências humanas.

Mas o que entendemos por ideologia? Ela pode ser entendida como um conjunto de ideias e representações que sustentam a posição dominadora de uma classe social, ou seja, reproduzem as condições necessárias às relações de exploração. Vale ressaltar que a ideologia preponderante sempre será a da classe dominante no cenário econômico-político, no caso, a ideologia burguesa.

No contexto do Brasil, o ataque vem por meio de um projeto chamado “Escola sem partido”, que visa ameaçar a liberdade de cátedra de professores que porventura se posicionem diante do cenário político, em especial nos campos da História, Sociologia, Filosofia e afins. Além disso, há ainda o combate à “ideologia de gênero”, em que se procura silenciar o debate que ocorre em escolas acerca da educação sexual, o que envolve respeito às diferenças sexuais, amplos debates acerca do feminismo, prevenção sexual a doenças sexualmente transmissíveis, e métodos anticoncepcionais. Neste ultimo ponto, ressaltamos a enorme importância do ambiente escolar no combate às violências e discriminações e reafirmamos a responsabilidade desta instituição no que se refere às discussões acerca da sexualidade (ainda ancorados na teoria freudiana), o que efetivamente depende de uma relação próxima entre os atores educacionais.

É previsível que a situação atual servirá de precedente para que o ensino EAD seja estimulado no país, e não podemos acreditar que esta modalidade não servirá para que a classe dominante dissemine seus ideais, e consiga efetivar planos que terão uma facilidade muito maior na implementação neste meio educacional que com os meios formais de educação presencial. Visto que já comentamos sobre os efeitos negativos da difusão do EAD, sobre a aprendizagem, desenvolvimento pessoal, má qualidade do ensino, e consequentemente, reducionista e tecnicista; apontamos para um combate a esta modalidade.

Para concluir, ressaltamos a enorme necessidade de uma forte crítica ao modelo de ensino à distância pelas comunidades escolares e acadêmicas, de forma a não regredir diante desse importante espaço de luta ideológica, social e política que é a escola.

 

Referências

S. FREUD – Sobre a psicologia do colegial (1914)

S. FREUD – O esclarecimento sexual das crianças (1907)

BAUDELOT e STABLET – A escola dualista na França (1971)

ANTONIO GRAMSCI – Cadernos do cárcere (caderno 11; 1932-33)

LOUIS ALTHUSSER – Aparelhos ideológicos do Estado (1971)

 

 

*Tamires Marinho é psicóloga e psicanalista, estudante de Letras, militante da Resistência e do Afronte no Ceará.