Estamos prestes a completar um mês de duração da quarentena. Um fenômeno bastante curioso foi a dificuldade de percepção sobre os dias da semana, muito em razão da falta de uma rotina para grande parte das pessoas que estão tendo o direito ao isolamento social. Ora, vivemos em uma sociedade capitalista, na qual as jornadas de trabalho são exaustivas e ocupam a maior parte do tempo das pessoas, de modo que o tempo ocioso é sempre mal visto, em detrimento a tão incentivada produtividade. A produtividade exigida se assemelha com a logica das fabricas, observada por Marx, em que se automatiza e se intensifica o trabalho, aumentando, assim, a produção em menor tempo gasto. As pessoas estão sendo cobradas socialmente a serem produtivas, em um momento de incertezas, sofrimentos, angustias e medo, sentimentos comumente negados pela sociedade capitalista, expressa nas redes sociais pela “filosofia” da gratidão e do “good vibes only”. Esse modo de pensar e viver ignora o fato de que todos esses sentimentos são adaptativos e necessários para a sobrevivência humana. É o medo, por exemplo, que tem ajudando muitas pessoas a entenderem a gravidade do momento social e politico que estamos enfrentando com essa pandemia, fazendo com que algumas tomem iniciativas de autoproteção e proteção ao próximo.
Outra dificuldade que o ser humano moderno tem é lidar com a solidão e o isolamento, algo perfeitamente compreensível, visto que a nossa espécie se constitui na cultura, cuja construção se dá no coletivo. Recentemente tem circulado uma imagem nas redes sociais fazendo uma critica ao isolamento como método de “cuidado” em saúde mental, o que é extremamente pertinente ser discutido, pois não é um fenômeno atual que os profissionais de saúde lutam pelo fim das praticas manicomiais, no âmbito da saúde mental, propondo a substituição desse modelo pelo cuidado em liberdade. O movimento intitulado de Reforma Psiquiátrica teve início na segunda metade do século XX, na Itália, representado principalmente por Franco Basaglia, que criticava a forma como a loucura passou a ser tratada com o passar do tempo, culminando no modelo de isolamento social, adotado pelos hospitais psiquiátricos da época. No Brasil, essa discussão tem como resultado a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental.
Ainda assim, no primeiro ano do atual governo, o Brasil deu enormes passos atrás no que se refere às politicas de drogas no Brasil, com o incentivo às comunidades terapêuticas, cujas práticas proporcionam um ambiente em que muitas vezes ocorrem violações de direitos, através da imposição de métodos não científicos, baseados em uma religião, privando os pacientes de sua liberdade. Oficialmente, os manicômios foram extintos no país, mas as práticas manicomiais prevalecem na cultura e na conduta adotadas em alguns equipamentos de saúde. Recentemente, o jornalista do canal SBT, Marcão do Povo, declarou: “Não seria interessante que o Exército, a Marinha, a Aeronáutica montassem um campo de concentração, de cuidados, com equipamentos mais sofisticados, com os melhores profissionais e colocar essas pessoas com problemas?”, endossando um discurso neofascista e completamente absurdo sobre cuidado em saúde.
O fato é que o isolamento social, apesar de ser extremamente necessário e de ser o método mais eficaz de prevenção ao contágio pelo vírus, está gerando sofrimento de diversas ordens nas pessoas: seja pela saudade da rotina, das coisas banais e cotidianas ou mesmo pelo crescimento do número de mulheres sofrendo violência doméstica. O que eu quero dizer é que o sofrimento está sendo expresso através de muitas maneiras, algumas criativas e outras preocupantes. Gostaria de dar atenção especialmente para o aumento do consumo de álcool durante a quarentena, uma droga socialmente aceita, incentivada e propagandeada, totalmente oposto ao proibicionismo e a criminalização de outras drogas. O álcool tem a favor de si as propagandas com pessoas elegantes e refinadas com seu copo de uísque, ou um bar animado, com muita gente feliz, dançando e festejando. Precisamos encarar a nossa baixa capacidade de entender o real problema por trás do álcool e sua aceitabilidade social: quando estamos felizes, bebemos para comemorar, quando estamos cansados, bebemos para relaxar, quando estamos preocupados ou tristes, bebemos para esquecer. Se alguém do ciclo social não bebe ou decide parar de beber, as pessoas agem como se houvesse algo anormal naquele comportamento. Ou seja, além de estar presente na maior parte dos acontecimentos da vida social, o consumo de bebida alcoólica é incentivado.
Durante a quarentena não poderia ser diferente. Tenho observado frequentemente frases como “o Brasil me obriga a beber”, “meu fígado não aguenta mais essas lives todos os dias”. Mas o que está por trás do consumo excessivo de bebida alcoólica durante a quarentena? “Todo excesso esconde uma falta”, diria o famoso ditado popular, dada a dificuldade do ser humano em lidar com sobriedade com os sofrimentos diários.
O alcoolismo, ao contrário do imaginário comum, não é um fenômeno exclusivamente químico ou biológico, é sobretudo uma questão social. Nenhuma droga por si só torna o usuário um adicto, sendo o contexto em que o sujeito faz o uso, bem como suas condições sociais e a relação com a substância, fatores bastante relevantes na avaliação do problema. O objetivo desse texto não é condenar o consumo do álcool, mas questionar a aceitabilidade dessa substância em detrimento da criminalização de outras e, ainda, as consequências da mesma.
Iniciei o texto falando sobre rotina e jornadas exaustivas de trabalho no capitalismo, realidade que nos afasta do ócio e da capacidade de lidar com as nossas próprias questões, mas durante a quarentena os mecanismos de refúgio precisam se adaptar ao contexto do isolamento e da falta de ocupação. Desse modo é preciso atentar para qual lugar a produtividade excessiva ou o consumo de álcool está ocupando na sua vida nesse exato momento. O cuidado com a saúde mental na quarentena vai além de uma rotina de skin care ou distrair a mente dos noticiários. Cuidar da mente também pode ser encarar que existe um sofrimento que talvez não sejamos capazes de lidar sozinhos e procurar um profissional, é manter, na medida do possível, um funcionamento saudável das atividades da rotina, respeitando os limites individuais.
*Gladys Pontes é psicóloga e militante da Resistência Feminista e do movimento AFRONTE!
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