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Pelo alto e avante! Revolução passiva e cesarismo em Antonio Gramsci

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Aparecendo como sinônimo da fórmula “revolução-restauração” também utilizada nos Cadernos do Cárcere (retirada da obra do historiador francês Edgar Quinet),  a ideia de “revolução passiva” (por sua vez buscada nos escritos do político e economista italiano Vincenzo Cuoco) foi mobilizada por Gramsci para se referir a processos históricos nos quais a passagem à moderna sociedade burguesa industrial não se fizera acompanhada – e não se dera por meio – de uma revolução de cunho democrático-burguês. Compreendendo a existência de uma historicidade própria a certas formações sociais, nas quais o “novo” não eliminava revolucionariamente o “velho”, mas sim convivia contraditoriamente com ele, Gramsci, com a noção de “revolução passiva”, desenvolveu seu método histórico-dialético de interpretação social já contido em seus escritos pré-carcerários, nos quais abordou a questão meridional italiana (GRAMSCI, A. A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987).

Muito próxima das análises de Engels, Lênin e Trotsky sobre os caminhos políticos da modernização burguesa dos países industrialmente retardatários, a categoria gramsciana de “revolução passiva” refere-se a uma forma de transição política ao capitalismo industrial em que a perspectiva disruptiva de viés jacobino-radical, que marcara a luta do “terceiro Estado” contra a reação feudal no clássico processo revolucionário francês de fins do século XVIII, teria sido substituída por uma conciliação, pelo alto, entre as velhas e decadentes classes proprietárias agrárias (nobiliárquicas) e a jovem burguesia industrial em ascensão. Em função de um tardio desenvolvimento fabril, que convivera com a longa permanência das antigas relações de produção no campo e, simultaneamente, proporcionara rapidamente a formação do “perigoso” proletariado urbano, certas formações sociais não apresentaram um antagonismo estrutural entre as economias “arcaica” e “moderna”. Assim, o avanço político dos setores subalternos, sobretudo da classe operária, teria funcionado, segundo Gramsci, como uma mola propulsora da aliança, via Estado, entre as velhas e novas classes proprietárias contra aqueles, o que teria determinado uma dinâmica sócio-política da passagem da sociedade agrária ao capitalismo industrial que poderia ser bem definida pela fórmula “revolução sem revolução”.

Segundo Alvaro Bianchi, a noção gramsciana de “revolução passiva” procurou dar conta de “um contexto nacional no qual predominavam condições objetivas ainda não plenamente desenvolvidas e condições subjetivas nas quais as antigas classes dominantes ainda não haviam esgotado todas as suas potencialidades”, o que

“criava a possibilidade de uma persistência das antigas formas sociais e políticas no interior de um renovado invólucro. A “velha” formação social dispunha ainda de energias históricas suficientes que lhe permitiriam persistir. Gramsci estabelecia, assim, um forte nexo entre o conceito de revolução passiva e uma “teoria da persistência” […]

A revolução era passiva, mas a passividade que a caracterizava era aquela das classes subalternas, e não das classes dominantes. Uma nova estrutura social e uma renovada forma política surgiam como resultado dos conflitos que contrapunham o novo ao velho e ao novíssimo, a burguesia às antigas classes feudais e ao proletariado.” (BIANCHI, Alvaro. O Laboratório de Gramsci. Filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008, p. 270-271).

  Para o mesmo Bianchi, o caminho analítico trilhado por Gramsci a partir de sua ideia de “revolução passiva” o teria levado ao encontro de “companhias ilustres”:

“Lênin, em sua análise do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, havia apontado uma via não-revolucionária, a via prussiana, como uma possibilidade de resolução da questão agrária-camponesa […] Por outro lado, Trotsky havia ressaltado o papel desempenhado pelo capital financeiro e pelo Estado czarista no processo de constituição do capitalismo na Rússia contornando a revolução burguesa […]. A respeito desse ponto, o que diferenciava o marxista sardo de seus contemporâneos era a tentativa de construir um conceito que desse conta da análise dos processos de transição sem revolução para o capitalismo, como eles haviam feito, mas que, ao mesmo tempo, tivesse um alcance metodológico, historiográfico e político mais abrangente” (idem, 271-272).

Referindo-se a esses processos de “revolução passiva”, nos quais a burguesia conseguira chegar ao poder “sem passar pelo calvário da revolução, sem lançar mão do ‘aparelho terrorista francês [jacobino]’” (idem, p.267),  Gramsci destacou a inexistência de qualquer fração das classes dominantes capaz de, incorporando ativamente os setores subalternos, dirigir a seu modo a luta pela efetivação da sociedade burguesa-industrial contra as forças declaradamente retrógradas. Em meio a essa situação de incapacidade hegemônica por parte das classes dominantes, teria cabido ao Estado, por seus meios próprios, o exercício da direção política daqueles processos, o que Gramsci, inspirando-se no caso exemplar da unificação italiana, denominou de “função de Piemonte”:

“A função do Piemonte no Risorgimento italiano é a de uma “classe dirigente”. Na realidade, não se trata do fato de que, em todo o território da península, existissem núcleos de classe dirigente homogênea, cuja irresistível tendência à unificação tenha determinado a formação do novo Estado nacional. Estes núcleos existiam, indubitavelmente, mas sua tendência à união era muito problemática e, o que mais conta, nenhum deles, cada qual em seu âmbito, era “dirigente”. O dirigente pressupõe o “dirigido”, e quem era dirigido por estes núcleos? Estes núcleos não queriam “dirigir” ninguém, isto é, não queriam harmonizar seus interesses e aspirações com os interesses e aspirações de outros grupos. Queriam “dominar”, não “dirigir”, e mais ainda: queriam que fossem dominantes seus interesses, não suas pessoas, isto é, queriam que uma força nova, independente de qualquer compromisso e condição, se tornasse o árbitro da Nação: esta força foi o Piemonte e, daí, a função da monarquia. O Piemonte, portanto, teve uma função que, sob certos aspectos, pode ser comparada à do partido, isto é, do pessoal dirigente de um grupo social (e, com efeito, sempre se falou de “partido piemontês”); com a particularidade de que se tratava de um Estado, com um Exército, uma diplomacia etc. Este fato é de máxima importância para o conceito de “revolução passiva”; isto é, que não seja  um grupo social o dirigente de outros grupos, mas que um Estado, mesmo limitado como potência, seja o “dirigente” do grupo que deveria ser dirigente e possa pôr à disposição deste último um Exército e uma força político-diplomática. (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2002, volume V, p. 328-329. Grifos do autor.)

É possível percebermos na obra de Gramsci, portanto, um nexo causal entre “crise de hegemonia” e a “função de Piemonte” desempenhada pelo Estado nas modernizações capitalistas retardatárias que se processaram sob a forma de “revolução passiva”. Dirigida pelo Estado, por assim dizer, a fração ou classe politicamente preponderante nas “revoluções passivas” exerceria, segundo Gramsci, a “hegemonia” apenas entre as demais frações e grupos dominantes, como foi o caso dos Moderados (do liberal Cavour) no Risorgimento, mas não entre os amplos setores subalternos, como havia sido o caso do jacobinismo francês:

“O importante é aprofundar o significado que tem uma função de tipo “Piemonte” nas revoluções passivas, isto é, o fato de que um Estado substitua aos grupos sociais locais na direção de uma luta de renovação. É um dos casos nos quais se tem uma função de “domínio” e não de “direção” nestes grupos: ditadura sem hegemonia. A hegemonia será de uma parte do grupo social sobre o grupo inteiro, não deste sobre outras forças para fortalecer o movimento, radicalizá-lo, etc., segundo o modelo jacobino.” (Idem, p. 330. Grifos do autor). (1)

Tendo em mente essa fundamental distinção entre uma “hegemonia” existente somente entre os grupos dominantes e outra “hegemonia” exercida sobre o conjunto da sociedade (e, portanto, sobre os setores sociais antagonistas), Gramsci estabeleceu, como pode ser visto, uma diferença entre uma “função de ‘domínio’” e uma “função de ‘direção’”: enquanto a primeira, típica das “revoluções passivas” em países tardios, seria uma espécie de “hegemonia limitada”  que implicaria em uma “ditadura sem hegemonia” com forte protagonismo político do Estado, a segunda tratar-se-ia de uma “hegemonia” propriamente dita, a qual tenderia a dar origem, em sociedades de massas – e aqui exclui-se, evidentemente, a França jacobina do século XVIII –, a um regime de tipo democrático-burguês – o qual, dialeticamente, possibilita o próprio exercício da “hegemonia” (dominação hegemônica).

Destarte, nas modernizações capitalistas realizadas via “revolução passiva” encontraríamos, segundo a perspectiva gramsciana, um Estado que assumiria para si a função de direção política da nação, o que se expressaria pela existência de um aparelho estatal que extrapolaria suas atribuições “normais”. Centralizado e fortalecido, esse Estado adquiriria, segundo compreendemos, um autonomia relativa face a todas as frações e grupos dominantes, sendo ele próprio quem vai, com sua lógica e métodos burocrático-militares, comandar a aliança entre essas frações e grupos que buscariam, em tempos de mudanças infraestruturais, se proteger dos novos sujeitos sociais que potencialmente ameaçam a ordem vigente.

Se o Estado (stricto sensu, isto é, a “sociedade política”) é sempre, tanto nas sociedades hegemônicas quanto não-hegemônicas, o locus onde se processa a aliança entre as diferentes frações proprietárias, nos casos de “revolução passiva” seria o Estado quem delimitaria os termos e o modo de funcionamento desta aliança, assim como muitas vezes até mesmo os segmentos nela envolvidos. É nesse sentido que se pode dizer que, nesses casos, o pacto entre as velhas e novas classes dominantes é realizado pelo alto. Do mesmo modo, seria pelo alto – isto é, por meio de uma dirigente burocracia estatal relativamente autonomizada em face das frações proprietárias e que necessita, por vezes, agir contra os interesses imediatos de cada uma destas frações – que o conjunto da classe dominante se relacionaria com os setores subalternos “perigosos”, os quais, em meio a um processo de industrialização e urbanização, precisam ser incorporados à vida pública como massas politicamente heterônomas. As incontornáveis mudanças, necessárias para “que tudo fique como está”, segundo a célebre frase de Lampedusa, seriam orquestradas e implementadas por um aparelho estatal que tomaria quase que inteiramente para si o proscênio social e político da nação.

Portanto, é possível depreender dos textos de Gramsci, pensamos, a existência de uma associação entre os processos de “revolução passiva” nos países de modernização capitalista retardatária e a emergência de formas cesaristas de Estado. O cesarismo – ou seja, o bonapartismo – seria, assim, o tipo de regime político adotado pelo Estado nessas formações sociais em que a passagem de uma sociedade agrária ao moderno capitalismo industrial não se teria processado por uma via revolucionária. Jogando com as palavras do próprio Gramsci, podemos dizer que os países nos quais se verificaram transições ao capitalismo por um caminho não-disruptivo se mostraram “por assim dizer, potencialmente bonapartistas” (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Op. cit., volume III, p. 66).


 

NOTAS

1 – Neste e em outro momento de seus escritos carcerários (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 92-95), Gramsci considerou o jacobinismo como uma forma de “hegemonia” burguesa, isto é, como uma expressão da direção política exercida pela burguesia sobre as massas plebeias nos quadros da Revolução Francesa. Faz-se necessário ressalvar, entretanto, que, nos baseando nestes mesmos escritos de Gramsci, optamos por utilizar “hegemonia” como um conceito que se refere a uma forma de dominação política que se faz presente (ou que, ao menos, sua necessidade se coloca) em sociedades burguesas de massas, nas quais o proletariado já se constitui como um sujeito dotado de algum peso social significativo e de algum nível relevante de organização política (partidos, sindicatos, associações, jornais etc.), o que, decerto, não era o caso da França de 1792-1795.