Pular para o conteúdo
Colunas

Hegemonia e democracia liberal: similitudes entre Trotsky e Gramsci (uma breve nota)

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Analisando as bases materiais da democracia liberal, Trotsky, observando historicamente as últimas décadas do século XIX e o início do século XX, afirmou que “através de uma série de etapas, consolidava a burguesia o seu poder, sob a forma da democracia parlamentar. De novo [como no jacobinismo], nem pacífica, nem voluntariamente. A burguesia manifestou o seu medo de morte do sufrágio universal. Afinal, graças à combinação de medidas de violência com as concessões, da miséria com as reformas, conseguiu submeter, nos quadros da democracia formal, não só a antiga pequena-burguesia, como também, em medida considerável, o proletariado, para o que se serviu da nova pequena-burguesia – a burocracia operária. Em agosto de 1914, a burguesia imperialista, por meio da democracia parlamentar, pôde arrastar à guerra dezenas de milhões de operários e camponeses” (TROTSKY, L. “O único caminho” (“Burguesia, pequena-burguesia e proletariado”) in ____. Revolução e contra-revolução na Alemanha. Lisboa/Porto/Luanda: Centro do livro brasileiro, s.d., p. 289.).

Consideramos possível encontrar nessas considerações de Trotsky uma similitude com a noção gramsciana de “hegemonia”. Tal como Gramsci notou em seu caderno carcerário de número 13 (escrito, aliás, como o texto acima, na primeira metade dos anos 1930), Trotsky atenta para um complexo processo social em que a classe dominante, por meio de uma forma de regime político (democracia parlamentar) na qual se combinam medidas coercitivas e concessões reformistas, logra obter a adesão/submissão dos setores sociais subalternos (pequena-burguesia e proletariado) para seus projetos políticos estratégicos (no exemplo acima, a guerra imperialista). (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vol. III. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007).

Assim como já havia antecipado Lênin em sua ideia de “aristocracia operária” (LÊNIN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1979), Trotsky assinala que o sucesso dessa dominação burguesa de tipo democrática requer a participação ativa das direções sindicais e políticas da classe trabalhadora, as quais passam por um processo de aburguesamento (nova pequena-burguesia/burocracia operária). De nossa parte, achamos que esse aspecto referente ao papel desempenhado pelas direções políticas do proletariado nos quadros de uma dominação burguesa pode ser perfeitamente compreendido pelo conceito de “transformismo”. Em muitas vezes, são desses setores transformistas, assinala Gramsci, que advém o “consenso ativo” oferecido a determinadas formas de dominação. (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de janeiro: civilização brasileira, 2002, volume V, p.93). Cabe ressalvar, contudo, que o conceito gramsciano de “hegemonia” refere-se não apenas aos regimes políticos assumidos pelo Estado capitalista, mas também, e sobretudo, ao próprio Estado em sua dimensão “integral” (ou “ampliada”).

Pode-se dizer, assim, que há muito mais proximidade teórica e política entre Trotsky e Gramsci do que podem supor tanto o obsoleto reformismo social-democrata, quanto o estéril sectarismo ultra-esquerdista de pequenas seitas em extinção – isto, claro, para nada dizermos dos vetustos ou novos estalinistas, cúmplices tanto do assassinato do revolucionário russo, quanto da deturpação política do revolucionário sardo.