Por: Danilo Georges* e Rejane Hoeveler**
Leandro Resende – Já se passaram mais de 300 dias desde que a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista, Anderson Gomes, foram mortos. Para o senhor, o crime foi uma tentativa de desmoralizar a intervenção?
BRAGA NETTO – Não. Para mim não teve nada… Aquilo foi uma má avaliação deles, da intenção deles. Avaliaram mal, fizeram …
Leandro Resende –Avaliaram mal o quê? Quem?
BRAGA NETTO – Avaliaram mal, acharam que ela é um perigo maior do que o que ela era…
Entrevista à Veja, janeiro de 2019.
Como colocamos em nosso artigo “Pandemia e Golpismo: uma tempestade perfeita no Brasil?” a pandemia do coronavírus precipitou uma confluência de crises no Brasil: crise política; crise econômica sem precedentes (em escala mundial), e uma crise social que beira a convulsão, trazendo grande instabilidade para o capital.
Temos um presidente miliciano que não é só um problema político e institucional, devido ao seu caráter fascista, mas também um problema de saúde pública. Bolsonaro não é (somente) louco – talvez seja um “kamikaze”, pois sempre teve como objetivo encerrar o clico de democratização brasileira, mesmo isso possa significar um suicídio político, com a perda de seu mandato. Bolsonaro soube aproveitar dos frouxos mecanismos de controle social da ordem burguesa fruto de nossa transição “lenta, gradual e segura”, que permitiu que agentes e grupos políticos autoritários conseguissem galopar politicamente, galvanizando a política do ódio e do ressentimento como estratégia de “diferenciação” através do “politicamente incorreto”.
A trajetória militar do presidente é bastante simbólica neste sentido: ela começa com Bolsonaro como herdeiro político do general Sylvio Couto Coelho da Frota, ministro do Exército conhecido por seu anticomunismo extremo e por sua fracassada tentativa de derrubar Geisel por considerá-lo “moderado demais” – após o que foi exonerado pelo então penúltimo presidente militar.
Assim como Bolsonaro, Frota foi aposentado do Exército. Entre os dois, um elo: o então capitão Augusto Heleno Ribeiro, que atuou como uma espécie de chefe de gabinete de Frota. Em síntese, Bolsonaro descende de uma linhagem golpista e extremista que conspira até mesmo contra o Exército e a hierarquia militar. Portanto, seus recuos são sempre táticos e nunca desviam dessa genealogia.
O navio do capitão Corona e seus tripulantes
Ao longo dos últimos meses, vimos como a base parlamentar bolsonarista foi se despedaçando; da crise com o PSL ao fracasso em recolher assinaturar para o partido fascista “Aliança pelo Brasil”, passando pela perda de importantes articuladores no Congresso nacional, a última grande derrota de Bolsonaro no Congresso foi a aprovação da renda mínima, articulada pela oposição.
Apesar do aumento das tensões em sua base, Bolsonaro manteve apoios fundamentais do alto escalão do Exército, dos fundamentalistas religiosos e suas principais lideranças – Silas Malafaia (Assembleia de Deus), Edir Macedo e bispo Crivella (IURD) – e de grande parte do empresariado, que repudia a quarentena e quer a liberação dos trabalhadores para que voltem a seus postos de trabalho, ou possam ser demitidos sem direitos. Essa foi a posição da FIESP, do Santander, de Joesley Batista Jr, entre tantos outros, como mostra um levantamento recentemente publicado. Bolsonaro ainda conta com o apoio, ainda que vacilante e passivo, de setores orgânicos do capital que permanecem no desgovernado navio do capitão corona – em especial de pequenos empresários que temem a proletarização, base clássica do fascismo.
Existem também setores orgânicos do grande capital que se afastaram do capitão Corona: parte do empresariado brasileiro que antes topava qualquer absurdo – vendo o fascista como um “mal menor” frente a um possível retorno do PT e em troca da aprovação das contrarreformas – já dá alguns sinais de que podem abandonar o barco. A crise aberta com a China, nosso principal parceiro comercial, em um momento de profunda recessão econômica, reverberou fortemente no agronegócio, que tem defendido uma “unidade nacional” contra a crise. Para estes, Bolsonaro atrapalha o dito “ambiente adequado de negócios” e inviabiliza também interesses do grande capital ao não tomar medidas anti-cíclicas efetivas. Apesar de uma tendência de queda, Bolsonaro ainda conta com apoio massivo de cerca de 30% do eleitorado.
Policialização e milicialização: até onde?
Desde então, Bolsonaro vem estimulando o desabastecimento, propagando fake news sobre o tema, atrasando a remessa de recursos para a crise sanitária e tentando interferir na distribuição de alimentos, ao fomentar a greve dos caminhoneiros (outra base social estratégica do bolsonarismo). Acreditamos que não se trata de “loucura”, mas de uma sinalização para sua base social de apoio mais sólida, que, como já afirmamos, é composta em diferentes formas por policiais: oficiais, para-oficiais e também seguranças privados, milicianos e parcelas expressivas do baixo escalão das Forças Armadas. Essa junção com as baixas patentes é um grande risco à hierarquia militar e esse é o principal trunfo de Bolsonaro – e, provavelmente, o principal motivo para o temor dos altos escalões em afastá-lo completamente do poder.
Em síntese, o bolsonarismo representa a policialização da nossa existência, como sugere Virgínia Fontes. Em seu navio ainda estão a bordo: grandes e médios empresários, mega pastores, parcelas do Exército, policiais e milícias, entre outros. Bolsonaro não recuou ou desistiu da afronta à saúde pública e à democracia. Podemos destacar diversas ações nos últimos dias que comprovam isso, como quando ele desobedeceu frontalmente as recomendações do Ministério da Saúde, saindo do Palácio do Planalto para fazer corpo a corpo em Brasília; quando convocou carreatas pelo fim da quarentena; e um longo etc.
A partir dessas colocações, devemos nos perguntar: o processo que vinha em curso de uma milicialização da política nacional e de controle sobre recursos, bens e serviços face à população de baixa renda (como já é no Rio de Janeiro) necessita de Bolsonaro e de seu clã para avançar? Ou compõe um projeto de sociabilidade burguesa mais ampla, ancorada na necropolítica como mais um método de regulação social do/para o grande capital?
Ainda devemos nos questionar: tais grupos para-militares possuem, no atual cenário, “autonomização relativa” frente aos apadrinhamentos políticos fidelizados ou, elas mesmas, compõem o próprio Estado? Os governadores são realmente capazes de controlar suas polícias militares? E as milícias, que dispõem de organizações subterrâneas e armas nas mãos, estariam dispostas a defender Bolsonaro? Seja de maneira ativa, em ação golpista, ou passiva, na contenção violenta de um processo de afastamento do presidente? As polícias, milícias e seus contatos com baixas patentes, chegariam ao ponto de se defrontar contra o próprio Exército, ou sua alta hierarquia?
A ascensão de Braga Netto e a “alternativa Mourão”: se mexem os quartéis
Nos últimos dias, o general Braga Netto ganhou ainda mais protagonismo, se tornando um “presidente operacional”, segundo artigo publicado no portal DefesaNet. Tal medida ganhou holofote internacional, a partir de informação revelada pelo renomado jornalista argentino Horácio Verbitsky sobre uma suposta comunicação entre um general brasileiro a um general argentino, informando que o Exército brasileiro teria tomado a decisão de “isolar Bolsonaro de todas decisões importantes” – o que não significava a deposição do presidente, mas uma redução significativa de seu poder, transformando Bolsonaro em uma espécie de monarca constitucional sem poder efetivo (ou, como afirmou Verbitsky, em uma “Rainha Louca”, em referência à Rainha Maria I de Portugal).
Esta análise corrobora a interpretação traçada por Demian Melo em seu assertivo texto “A tutela militar ao governo Bolsonaro”. Estranhamente ou não, esse dado importantíssimo pouco repercutiu na imprensa brasileira.
É importante lembrar que Braga Netto era o interventor militar no estado do Rio de Janeiro em 2018, quando do assassinato da vereadora do PSOL Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. O discurso da intervenção era justamente o de combater o crime organizado no Rio de Janeiro. É notável que Braga Netto tenha assumido o ministério da Casa Civil quando vem a público que Bolsonaro que está citado no inquérito do assassinato de Marielle e Anderson, possuindo vínculos orgânicos com as milícias e o “escritório do crime.” A escolha de Braga Netto à chefia da Casa Civil – prestigiada, de maneira discretíssima, pelo Comandante Puyol, principal comandante na ativa – não foi casual. Ele serve como intermediário político e militar em múltiplos sentidos. Enquanto isso, outros setores se agrupam em torno da defesa da “alternativa Mourão” – como estampado na capa da revista Istoé, no último sábado, 04 de abril.
Tudo parece indicar que Braga Netto é o nome das Forças Armadas deslocado para “tutelar” a relação de Bolsonaro com outras forças políticas e militares que vivem em intensa guerra de posição. Tal medida sinaliza uma perda de força de Bolsonaro na direção do país, mas simultaneamente protege Bolsonaro de qualquer tentativa de apeá-lo do poder. Ao que parece, Braga Netto não é consenso entre outras forças que compõem o governo, como os filhos do presidente (que estão em guerra permanente contra todos) e tampouco com o próprio Puyol. Assim, o impasse tende a se arrastar, com disputas e chantagens internas desses blocos das frações burguesas e do Estado.
Tudo demorando em ser tão ruim…
No atual cenário, Bolsonaro, apesar de ser uma peça incômoda para setores da burguesia, até o presente momento continua no poder. Pode seguir em desidratação política ou conseguir uma reaglutinação de setores burgueses. Tudo pode modificar-se rapidamente, dependendo do impacto da pandemia no Brasil e da agenda econômica, concomitante a um provável crescimento da insatisfação popular.
Alguns setores da esquerda têm sinalizado a aposta nesse cenário de desidratação, apostando em vitórias contra o bloco fascista pela via eleitoral. No entanto, um cenário com Bolsonaro enfraquecido, mais ou menos tutelado pelos militares, caminha para uma descentralização do poder (de Bolsonaro) com Legislativo, Judiciário e os níveis subnacionais – com a ampliação da alçada desses últimos. Esse cenário é extremamente instável, pois uma tal dualidade/multiplicidade de poderes em um Estado burguês não é sustentável a médio prazo – muito menos quando arrisca a própria unidade federativa.
A esquerda não pode depender de Maia, do STF ou dos governadores, nem ficar a reboque da agenda da dita “oposição” a Bolsonaro. O nosso “Fora Bolsonaro e Mourão” precisa apostar em uma agenda propositiva: garantia de renda aos trabalhadores; taxação de grandes fortunas; suspensão do pagamento das dívidas externa e interna; defesa do emprego e defesa do SUS e das amplas lutas contra as privatizações, especialmente dos serviços públicos. Enquanto não houver por parte da esquerda força política e capacidade de construção dessa agenda, seguiremos sendo um coadjuvante pouco relevante na conjuntura. Além disso, precisamos sempre ter em mente que, em qualquer cenário, o Estado e a burguesia brasileira vão atuar fortemente pela eliminação política da esquerda radical.
* Historiador, mestre em Ciências sociais, membro da coordenação estadual do Subverta (corrente interna do PSOL). Assessor parlamentar do deputado estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ).
** Rejane Hoeveler é historiadora, professora da UFRJ e colunista do Esquerda Online.
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