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BRASIL

Duas notas sobre ensino à distância em tempos de capitalismo de desastre

Diogo de Oliveira*, de Niterói, RJ

Teenage angst has paid off well           (A angústia adolescente pagou muito bem)
Now I’m bored and old                            (Agora estou entediado e velho)
Self-appointed judges judge                   (Juízes auto-proclamados julgam)
More than they have sold                        (Mais do que eles venderam)
(…)
Serve the servants, oh no                         (Sirva os servos – oh não)
Serve the servants, oh no                         (Sirva os servos – oh não)
Serve the servants, oh no                          (Sirva os servos – oh não)
Serve the servants                                      (Sirva os servos)
That legendary divorce is such a bore    (Esse divórcio lendário é tão chato)

(Serve the Servants, Nirvana)

Na mesma semana em que o estado do Rio de Janeiro começava a parar por causa da pandemia do novo coronavírus, a SEEDUC-RJ apresentava sua solução para que “tudo continuasse normal”: um improvisada plataforma online de atividades e materiais pedagógicos, assim como de aulas online, com pretensões de ensino à distância. Semana após semana, um espectro vem rondando a o ensino público do estado do Rio, assim como o nacional: a infoproletarização da educação em tempos de capitalismo de desastre. Por onde anda o espectro da resistência proletária, espectro do comunismo? Apresentamos, pois, duas notas para estudo da situação que estamos enfrentando.

Nota 1: O capitalismo de desastre e a doutrina do choque

Naomi Klein sistematizou dois conceitos acoplados em seus livro “A doutrina do choque: A ascensão do capitalismo de desastre”: enunciados já no título, doutrina do choque e capitalismo de desastre. Vejamos:

“(…) Naomi Klein explica o ‘desastre capitalista’ como uma maneira de descrever a forma como as indústrias privadas ressurgem ao se beneficiar diretamente de uma crise de larga escala. ‘O lucro produzido de desastres e guerras não é um conceito novo, mas realmente se aprofundou no governo Bush, após 11 de setembro de 2001, quando o governo declarou tais tipos de crises de segurança sem fim, e simultaneamente as privatizou e subcontratou’”. (1)

“A Doutrina do Choque é uma estratégia política que consiste em usar crises em larga escala para promover políticas que sistematicamente aprofundam a desigualdade, enriquecem as elites e minam os demais”.  (2)

“É uma filosofia que sustenta que a melhor maneira, a melhor oportunidade para impor as ideias radicais do livre-mercado é no período subsequente ao de um grande choque. Esse choque pode ser uma catástrofe econômica. Pode ser um desastre natural. Pode ser um ataque terrorista. Pode ser uma guerra. Mas a ideia é que essas crises, esses desastres, esses choques, abrandam a sociedades inteiras. Deslocam-nas. Desorientam as pessoas. E abre-se uma ‘janela’ e a partir dessa janela se pode introduzir o que os economistas chamam de ‘terapia do choque econômico’”.  (3)

“Um tsunami ou um incêndio em uma favela, bem como um golpe de Estado, são acontecimentos chocantes que permitem produzir outros choques econômicos ou implantar medidas que, para a população desinformada, parecem as melhores. (…) Outro exemplo, acaba-se com o SUS e depois ninguém vai achar ruim que o sistema de saúde seja todo privatizado. Quem não tiver dinheiro para pagar um plano de saúde, também não vai se importar muito porque já terá perdido as forças para lutar por qualquer melhoria em suas condições de vida”.  (4)

E não é a primeira vez que em contexto de capitalismo de desastre a ordem do capital aproveita-se do choque produzido por um desastre para fazer avançar projetos privatistas na educação pública. O desastre social do furacão Katrina em Nova Orleans e a ofensiva privatizadora sobre o sistema público de ensino é comemorado pelos apologistas do capitalismo selvagem. Como se pode ver no artigo “Como o furacão Katrina conseguiu vencer o lobby dos sindicatos dos professores“, do jornal direitista Gazeta do Povo:

“Desde os anos 80, um movimento bipartidário de reforma educacional tentou melhorar as escolas dos Estados Unidos. Embora aqueles que queriam transformar a educação conquistassem vitórias aqui e ali, seus sucessos permaneciam irrelevantes. Os sindicatos dos professores, os distritos escolares e políticos aliados enfraqueciam, diluíam ou bloqueavam o que eles tentavam realizar. O modelo básico da educação pública americana permaneceu o mesmo (…). Em Nova Orleans, como em grande parte do país, grupos estabelecidos no poder impediram por muito tempo os esforços dos chamados reformistas. Antes do Katrina, o sistema escolar público da cidade era um exemplo da educação norte-americana que deu errado: baixas taxas de conclusão, péssimo desempenho dos alunos nos testes e administração incompetente. (…) A corrupção foi tão generalizada que o FBI abriu um escritório no prédio administrativo do distrito. Apesar das falhas evidentes, o sistema de sempre era mantido. Então veio o Katrina, varrendo o distrito escolar de Nova Orleans. Muitas famílias deixaram a cidade. As escolas foram fechadas durante meses e os professores foram dispensados. Até mesmo o sindicato dos professores perdeu membros e dinheiro. O governo do estado de Louisiana afastou o conselho escolar e assumiu o controle. Katrina, assim, provocou uma experiência não intencional na educação pública. Operando com uma mão mais livre após a tempestade, os reformistas demonstraram o que poderia ser feito. (…) Partindo da história de Nova Orleans, Moe revela como sindicatos de professores, conselhos escolares e outras forças do establishment educacional exercem um poder oculto para sufocar mudanças. (…) Quase todas as políticas de governo, argumenta ele, criam beneficiários, que buscam sustentar essas políticas – e resistem à mudança. É muito mais fácil se opor à mudança do que implementá-la (…). Os sindicatos buscam políticas que protejam a segurança no trabalho, diminuam sua carga de trabalho, aumentem seus salários e benefícios, restrinjam o gerenciamento e reduzam o tamanho das turmas. Os distritos escolares, por sua vez, buscam aumentar a matrícula e o financiamento, ganham maior autonomia das diretrizes estaduais e federais e incentivam a harmonia burocrática. Esses esforços resultam em um sistema que melhor atende adultos, não crianças. O movimento de reforma educacional, claro, procura acabar com esses arranjos. As duas palavras-chave do movimento são responsabilidade e escolha. Prestação de contas significa documentar o desempenho do professor por meio de avaliações rigorosas, vinculando o pagamento ao desempenho e removendo maus professores. Escolha significa introduzir competição na educação pública americana dando aos pais e filhos mais opções na forma de escolas ou vouchers para frequentar escolas particulares. Embora ninguém tenha planejado, e muitos implementadores foram céticos sobre isso, o sistema que surgiu em Nova Orleans após o Katrina é composto quase inteiramente de escolas charter (escolas públicas de gestão privada). As crianças escolhem suas escolas, que competem para atrair e reter alunos. A tomada de decisões é descentralizada e os dados de desempenho são divulgados publicamente. Embora as escolas da cidade estejam longe de serem perfeitas, as evidências sugerem que elas funcionam melhor que o sistema escolar antes do Katrina”.  (5)

A vantagem do material produzido pela Gazeta do Povo é a mescla evidente de ideologia com sinceridade do projeto político defendido. A tragédia social do furacão Katrina foi uma “oportunidade” para implantar as reformas educacionais neoliberais de maneira radical, aproveitando-se do “estado de choque” da sociedade de Nova Orleans, professores, sindicatos, população. Sendo que sindicatos e professores, claro, eram apresentados no melhor estilo José Padilha e Carlos Alberto Sardenberg: um “sistema impessoal” que resiste às “reformas necessárias”. A pandemia do novo coronavírus é uma tragédia, mas não podem afetar as “reformas necessárias” no sistema educacional, diria Sardenberg. O “sistema é foda”, diria José Padilha.

Nota 2: Infoproletarização dos educadores entre o virtual e o real

Num ritmo que podemos tomar como análogo ao padrão “doutrina do choque” do “capitalismo de desastre”, propostas de plataformas online de aprendizagens e ensino à distância estão sendo difundidas rapidamente pelas secretarias de educação em todo país. No estado do Rio de Janeiro não é diferente. A ideologização das medidas é fortíssima: a mídia corporativa burguesa as difunde com mescla de entusiasmo pela “modernização” e clamores pela missão redentora d@s profissionais da educação; a própria categoria d@s profissionais da educação se vê no dilema entre a resistência à esta reforma e à adesão consentida – “não há o que fazer”, “é uma emergência”, “melhor que perder férias, recessos e salários/empregos”, “já era hora de modernizar a educação”, “estamos no século 21” etc. Há, no dilema, uma importância tendência de solidariedade de classe d@s educadores/as para com noss@s alun@s das classes populares. Entretanto, queremos destacar nesta nota a realidade da infoproletarização da categoria d@s profissionais da educação e seus dilemas que, cedo ou tarde, teremos que enfrentar. Para tanto, recorremos à Introdução do excelente livro organizado por Ruy Braga e Ricardo Antunes: Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual.

Em primeiro lugar, já há décadas é fortíssimo o discurso que defende a emergência de uma “sociedade da informação”, onde o “trabalho imaterial substitui largamente o trabalho material” e a sociedade “do século 21” é cada vez mais marcada pela informatização, telecomunicações e trabalho-comunicação-sociabilidade pela internet. Um discurso entusiasmado.

“Mescla de argumentos pós-fordistas e teorias pós-industriais revivificadas pelo boom da chamada ‘nova economia’ ocorrida na década de 1990, a noção de ‘sociedade da informação’ ganhou rapidamente notoriedade, nos governos tanto dos países capitalistas avançados quanto semiperiféricos, tornando-se moeda corrente também entre os ideólogos e gestores globalizados do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização das Nações Unidas (ONU). Integrar essa nova ‘utopia planetária’ passou a ser questão de vida ou morte para esses governos submetidos ao jogo renovado da concorrência global. (…) Castells prenunciou a superação do trabalho degradado pelo avanço tecnocientífico – em especial, pela internet –, pela difusão de empregos qualificados com forte autonomia no trabalho, pela consolidação de valores comuns unindo trabalhadores e gerência, pela hegemonia do trabalho complexo em atividades relacionadas à inovação tecnológica e, finalmente, por meio do crescimento de uma nova economia de serviços unificada por um modelo mais rico de comunicação produtiva”.  (5)

O entusiasmo com as maravilhas da “sociedade da informação” e da emergência de um trabalho complexo não-degradado, horizontal, autônomo e criativo se tornou forte senso comum. O discurso contra os “atrasados” e aqueles/as que “não se adaptam” anda de mãos dadas com o discurso entusiasta. Na educação, não é novidade o discurso que fala de uma “escola no século 21, com professores do século 20 trabalhando como no século 19”. Entretanto, é preciso desmistificar o entusiasmo, com análises de experiências já consolidadas no mundo do trabalho informático “do século 21” e sua classe trabalhadora. Vejamos:

“(…) a imbricação existente entre trabalho material e imaterial, tanto nas atividades industriais mais informatizadas quanto nas esferas compreendidas pelo setor de serviços ou nas comunicações, configura uma adição fundamental para se compreender a nova morfologia do trabalho, bem como os novos mecanismos geradores de valor. (…) Infoproletários busca revelar a face sombria dessa atividade globalizada: a tendência à alienação do trabalho informacional. Ao mesmo tempo, procura inserir esse movimento num quadro mais amplo, explorando a multidimensionalidade desse fenômeno por meio da análise dos novos modelos gerenciais, da formação de uma nova condição proletária nos serviços, das características da estrutura sócio-ocupacional desse setor econômico, da recomposição do controle e gestão do trabalho, das novas formas de obtenção do consentimento à exploração econômica, da produção de novas e precárias identidades coletivas, das desigualdades de gênero, das trajetórias profissionais… (…). De certa maneira, esse grupo de trabalhadores sintetiza aspectos centrais da recente reprodução contraditória das relações sociais capitalistas no Brasil. (…) ao contrário daquilo que é, com frequência, advogado pelas teses da ‘sociedade pós-industrial’, o trabalho no setor de telemarketing é rigidamente condicionado pelas características desse processo de reprodução contraditória. Articula tecnologias do século XXI com condições de trabalho do século XIX, mescla estratégias de intensa e brutal emulação do teleoperador, ao modo da flexibilidade toyotizada, com técnicas gerenciais tayloristas de controle sobre o trabalhador; associa o serviço em grupo com a individualização das relações trabalhistas, estimula a cooperação ao mesmo tempo que fortalece a concorrência entre os teleoperadores, dentre tantas outras alterações, ampliando as formas mais complexificadas de estranhamento e alienação contemporânea do trabalho” (6).

Quaisquer semelhanças com o que se avizinha para @s profissionais da educação não é mera coincidência: nossa categoria cada vez mais imersa numa nova morfologia do trabalho, galopante alienação do trabalho educacional que agora se quer informatizado, as históricas desigualdades de gênero, flexibilidade ao trabalhar sob modelos gerenciais cada vez mais despóticos e também em informatização, cooperação e concorrência etc. Argumentamos, pois, a necessidade do entendimento do processo que se avizinha a nós: a infoproletarização d@s educadores/as.

 

* Diogo de Oliveira é Professor de Geografia da SEEDUC-RJ.

 

Notas

1 – Naomi Klein, capitalismo e coronavírus: “O choque é o próprio vírus”. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597194-naomi-klein-capitalismo-e-coronavirus-o-choque-e-o-proprio-virus. Acesso em 05/04/2020.
2 – Op. cit.
3 – “A doutrina do choque”. O tema do novo livro da ativista Naomi Klein. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/176-noticias/noticias-2007/562784-a-doutrina-do-choque-o-tema-do-novo-livro-da-ativista-naomi-klein. Acesso em 05/04/2020.
4 – Capitalismo de desastre – Choque e Anestesia na cultura política do Brasil atual. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/capitalismo-de-desastre-choque-e-anestesia-na-cultura-politica-do-brasil-atual/. Acesso em 05/04/2020.
5 – BRAGA, Ruy e ANTUNES, Ricardo. Apresentação. In. Infoproletários: Degradação real do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009, p.7-8.
6 – Op. cit., p.9-10.