Participei da manifestação de apoio e desagravo em favor da advogada negra Dra. Valéria Lúcia dos Santos, em frente ao Fórum da Justiça Estadual da Comarca de Duque de Caxias, no dia 17 de setembro. Fiquei horrorizado quando, no início do evento, a direção do Fórum ordenou que se fechassem as portas principais daquele órgão de Justiça. Este fato – além de indisfarçada provocação -, deixou-nos todos e todas perplexos. Foi um evidente sinal de autoritarismo judicial, prepotência e que serviu como um aviso e prenúncio de que a vítima seria condenada.
Nesta terça, 26 de setembro, o que era um sinal foi infelizmente confirmado. A Juíza Leiga que determinou que a Polícia Militar algemasse a advogada foi considerada inocente pelo órgão da Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais do Rio de Janeiro (Cajes). Embora seja ainda uma instância inferior, este veredito já demonstra, contudo, que em termos político-institucional a cúpula do TJ do Estado do Rio de Janeiro está endossando e ainda protegendo a referida agente do Estado que praticou aquela barbaridade, ao mandar retirar da sala de audiências e algemar uma mulher desarmada, que, enquanto advogada, tão somente buscava exercer sua atividade profissional.
Dra. Valéria foi vítima de uma cruel realidade. Quando se é negro ou negra neste país, – principalmente em órgãos estatais – o tratamento é diferenciado e traz ainda os grilhões das senzalas, que, no seu caso, se materializaram em algemas de aço.
O relatório da decisão, assinado por um Desembargador, é no seu mérito totalmente injusto e mesmo desumano. A apuração dos fatos que deu origem a conclusão está sob absoluta suspeição, pois – pasmem! – foi realizado sem a participação da OAB, que não pôde acompanhar a oitiva da juíza e também das testemunhas. Ou seja, um processo que pode ser considerado tudo, menos isento.
Para se ter uma ideia do disparate, segundo o mencionado documento, não houve excesso no uso de algemas; não houve abuso de autoridade ou mesmo desvio de finalidade na atuação da juíza leiga e muito menos qualquer atitude racista. Não houve, incrivelmente, nenhuma vítima…
Enfim o relatório apontou que não aconteceu nada que pudesse servir de base para a condenação da juíza. Ao contrário, houve, sim, a necessidade de aplicação das algemas, pois, em resumo, concluiu-se que, naquela circunstância, a Dra Valéria poderia agredir a juíza… Sem mais comentários!
A Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ, que desde o primeiro momento saiu em defesa da Advogada, expediu nota oficial criticando a decisão, considerada lamentável pela Seccional, promete recorrer perante a Corregedoria de Justiça do TJ, e, caso não tenha êxito, recorrer ao Conselho Nacional de Justiça. O apoio de advogados e advogadas à colega algemada é unânime.
O fato, entretanto, transcende a própria advocacia e a OAB, pois sigo crendo, desde o início, que se tratou de uma prática racista, de cunho estrutural, que embora tenha se personificado na juíza leiga e no policial militar que impôs as algemas, tem por detrás toda uma complexa e efetiva estrutura de juízes togados, titulares de juizados, assim como a alta hierarquia administrativa e judicial do Tribunal de Justiça, que acabam por expressar, consciente ou inconscientemente, no cotidiano das relações judiciais aquilo que pode ser denominado de racismo institucional e profundamente arraigado, o qual infelizmente se reproduz há séculos.
Sim, salvo honrosas exceções de magistrados e magistradas críticos em relação a estrutura do judiciário, este episódio desnuda o racismo que existe na “Casa da Justiça”, onde é diminuta, quase rara, a quantidade de juízes negros e onde, como neste recente caso, alguns consideram normal algemar uma advogada que apenas trabalhava no interior de uma sala de audiências.
Não tenho a intenção de invadir o âmbito do pensamento e sentimentos de cada juiz ou juíza, funcionário ou funcionária do judiciário, – os quais respeito – mas não posso me furtar de afirmar é realmente um horror saber o que aconteceu com a Dra. Valéria e, agora, tomar conhecimento também que de vítima passou a ser considerada “violenta” , um perigo para a Juíza leiga que lhe agrediu e, via de consequência, um perigo para o próprio judiciário, motivo pelo qual teria sido algemada… Nesta linha de absurdos e horrores, o próximo passo deverá ser a obrigação de indenizar quem lhe algemou e lhe atirou ao chão. Não duvidem disto!
Por fim, retornando ao dia da manifestação em Duque de Caxias, encerro este texto, em forma de desabafo, chamando a reflexão para o fato de que o “fechar as portas do prédio do fórum” que todos nós que estávamos naquele dia chuvoso presenciamos, (até incrédulos), foi na verdade não somente um aviso para a Dra. Valéria dos Santos, mas um recado bem claro para a advocacia e toda a sociedade no sentido de que o Poder judiciário brasileiro apenas formalmente é público e aberto a sociedade. E ainda mais, concluo: está igualmente contaminado pelo racismo, para o qual fechou os olhos com esta decisão, e reflete os mais de 300 anos de escravidão legal no país.
Todo apoio e respeito a Dra. Valéria dos Santos, pois a luta continua.
FOTO: Valéria dos Santos, em ato de desagravo no Fórum de Duque de Caxias. OAB-RJ
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