Um serviço de alto falante no
morro do pau da bandeira
Quem avisa é o Zé do caroço
Que amanhã vai fazer alvoroço
Alertando a favela inteira
Ah! como eu queria que fosse mangueira
Que existisse outro Zé do caroço
Pra falar de uma vez para esse moço
Carnaval não é esse colosso,
Nossa escola é raiz é madeira,
Mas é morro do pau da bandeira
De uma Vila Isabel verdadeira,
E o Zé do caroço trabalha
E o Zé do caroço batalha e que malha é o preço da feira
E na hora que a televisão brasileira
Destrói toda gente com sua novela
É que o Zé bota a boca no mundo
Ele faz um discurso profundo
Ele quer ver o bem da favela
(Zé do Caroço, por Leci Brandão e Grupo Revelação, interpretada por Seu Jorge)
A negritude, como consciência da condição de negro(a), é um signo que une a comunidade negra no Brasil? Os negros (as) congregam em sua maioria em torno dessa qualidade histórica comum que compartilham? Suas instituições, instaladas na periferia, suas igrejas, suas atléticas, outros tipos de associação, congregam, se organizam, funcionam e se desenvolvem sob o símbolo da negritude enunciada como símbolo comum de orgulho a qual todos favelados pertencem? Podemos dizer com convicção que interessa ao povo escolhido para ser qualificado, ou desqualificado, como negro, ser reconhecido por sua negritude? Quantos de nós podem dizer, especialmente aqueles que não são oriundos de famílias de vasto capital cultural ou econômico, que viram nossos avós e avôs, pais e mães, tios e tias, entre labuta semanal, o gozo raro dos fins de semana e disciplina da reza, baterem no peito dizendo com orgulho que são negros ou negras? Algum de nós consegue lembrar, por mais que a vontade seja grande, dos membros destacados da nossa comunidade periférica, pastores, pastoras, líderes comunitários(as), até mesmo músicos, entre outros, enunciando a si mesmos, em grande maioria, como “negão” ou “negona”? Não é, felizmente ou infelizmente, cabe a nós debater com nossos pares em raça e classe, muito mais comum nos recordarmos de como as figuras negras da nossa comunidade, do nosso povo desprovido de unidade, se chamando de “cristãos”, “católicos”, “evangélicos”, “cidadãos de bem”, “de direita”, “de esquerda”, “trabalhador”, “empreendedor”, “Lula”, “Bolsonaro”, entre outros termos? Enfim, não nos soa, como uma verdade dura que precisa ser verbalizada, debatida e discutida, que a negritude favelada no Brasil quer, tenta, é ou finge ser tudo, menos negra?
Por que isso acontece? Como podemos definir as causas desse fenômeno paradoxal? O termo alienação da negritude é conciso o suficiente? A palavra negação, talvez, não seja mais, com toda ironia, “clara” para definir a relação da comunidade negra com ela mesma? Como nós podemos explicar esse movimento sem cairmos na crítica intelectualizada que desrespeita, com muito pouco respaldo, formas engajadas de conscientização sobre a realidade social da população periférica corporificada nas tecnologias sociais empregadas por pastorais, igrejas evangélicas, projetos de educação popular, associações cooperativistas? Entendendo assim o movimento que compele a massa negra periférica a enxergar-se muito mais nas escatologias do pastor empreendedor, nos messianismos dos seus candidatos políticos, do que nos signos que constituem a sua negritude, nos predicativos políticos e econômicos que moldam a posição do grupo racial, e da classe social que ele protagoniza, na república. Talvez, assim, interpretando a escolha política da comunidade negra em preterir sua identidade sem o tom corretivo, professoral, muito costumeiro a intelectualidade acadêmica, especialmente seus setores que se autoproclamam de vanguarda. Por fim, então, compreendendo a natureza política de uma negritude favelada que parece, a cada pleito, a cada tensão, a cada agudização das suas condições de vida, negar com cada vez mais veemência os aspectos mais inapeláveis da sua identidade como grupo racial.
Por onde começar? Com a morfologia política, cultural e econômica dos espaços periféricos e subalternizados que a comunidade negra reside ou vai trabalhar? Sim, pois é preciso questionar, sempre para que não possamos nos esquecer disso quando nos depararmos com os debates mais acalorados, com as autocríticas infindáveis e com as retrospectivas políticas inúteis de quem, separado por raça e classe, nada faz para nos ajudar: Como é a geografia do espaço no qual a comunidade negra vive? Quais são as técnicas que lá chegam? As ruas são asfaltadas? Os serviços públicos são presentes? Suas casas são rebocadas? Possuem encanamento? Quais são seus eletrodomésticos? Que tipo de lazer possuem? Suas crianças vão pra escola? Elas vão trabalhar? Como tudo isso, que sobrepuja, sufoca, confina o acesso da comunidade negra a própria cidade que em São Paulo, Salvador, Recife, Porto Alegre, São Luís, Rio de Janeiro, entre tantas outras grandes cidades brasileiras, é sustentada com o próprio trabalho desse povo, acaba por influenciar sua consciência sobre si mesmos, suas formas de resistência e organização política?
Quais são, nesse mesmo sentido, as suas instituições? Aquelas que ajudam a manter? Aquelas que vão lá para a favela, a fim de lhes dizer quem devem amar, o que devem comer, quando devem trabalhar, como devem morrer, o que podem ou não fazer, fundamentalmente, quem o negro deve ou não ser? A pertinência dessas questões não pode ser simplesmente reduzida a um juízo moral sobre as organizações que estão disputando, ou não, a consciência da negritude, dentro dos limites geográficos da comunidade periférica. Na intelectualidade já há, de maneira saturada, aqueles e aquelas, de camisas floridas e escondidos sob muitas cores, cujo o cotidiano, lá de dentro dos confins da classe média, é recomendar, quase sempre depois da luta, como os outros devem ou não lutar, respaldados é claro num capital cultural insípido e de vocabulário quase anacrônico em relação ao mundo social das classes populares. A reflexão sobre as questões relativas à identidade da comunidade negra transcende as pequenas disputas no mercado de bens simbólicos, tão disputado, a ferro e fogo, por todos nós trabalhadores letrados de toda espécie de honestidade, ingenuidade, mediocridade ou oportunismo. Tratam-se sim, de temas duros, especialmente para aqueles que negros são, porque lhes convocam de imediato não apenas a uma reflexão, a um diálogo com seus pares de raça e classe, mais também a ação, a negociação de termos, objetivos gerais e metas com aqueles que na favela vivem e sequer desejam, intimamente, reconhecer em nós suas contrapartes intelectualizadas, e tão orgulhosas da resistência de inúmeros derrotados anônimos ilustres que nada significam para o nosso povo hoje, um passado com o qual estão entrelaçados, com o qual tem laços de sangue, com o qual seu destino econômico e político atual está entrelaçado, quer gostem ou não. Lidar com isso significa admitir que o passado reivindicado pelo favelado, por vezes, não é mesmo reivindicado pela intelectualidade negra.
Sendo assim, o que fazer ao nos defrontarmos com a realidade que a questão, quem quer ser negro no Brasil, nos impõe? Devemos nos ressentir, por que nossos irmãos não são tão iluminados, em suas representações do passado e do tempo presente, quanto nós? Censurá-los por sua submissão? Por sua covardia? Por suas contradições preenchidas de escatologias pseudo-evangélicas, repetidas vezes reveladas na pressa hobbesiana de serem o lobo do outro, enquanto pedem ao Senhor Deus a paciência, a complacência, o infinito amor, fé e altruísmo daquele que tudo pode, porém se espera, com muita angústia, que no final se faça novamente cordeiro para lhes salvar? Vamos lhes repetir narrativas pretéritas sobre a realidade social na qual vivem, e conhecem intimamente, na dor da fome, na violência e nas restrições do consumo, buscando fazer coro aos mesmos dissimuladores e demagogos que lhes prometem, com a força da arma ou do auxílio, que com o voto a cada biênio, no representante patriarcal certo, em líderes que são muitas coisas porém não são seus, tudo vai melhorar? Não, talvez, entender por que ninguém, de fato, quer ser negro no Brasil, não seja uma avenida de estudo, organização e luta, que passe por aí, esse mesmo lugar no qual o empoderamento liberalesco está, desde o século passado, fazendo exatamente o inverso daquilo que seria construir a unidade dos seguimentos da população aos quais os agente externos, muito mais do que os membros da própria comunidade, convencionam chamar de povo negro.
Sem hesitação, o caminho para entender, defender e continuar lutando ao lado de um povo que se nega, seja o de abandonar a negritude idealizada pela classe média, comercializada pela indústria cultural, predada pela extrema direita e parte da esquerda, frouxa até sob o som do próprio nome, decidida apenas a reagir, censurar, defender sem ler, todos amar e do poder passar longe para não adicionar responsabilidades reais às imaginárias que já carrega há décadas. O caminho, e ele existe, e já é empregado por aqueles (as) dentre nós organizados para a transformação, seja nos núcleos partidários dedicados a ação popular ou na Universidade em linhas de pesquisa dedicadas a habilitação política do povo, não cai nos desvios enganosos, coloridos e brilhantes da indumentária estilizada, reivindicadora de um Afro-Brasilidade que existe apenas como projeto estético, do que queríamos que a negritude brasileira fosse, do que ela é apenas quando, como dizia a canção do Zé do Caroço, “na hora que a televisão brasileira destrói toda gente com sua novela”, nos envenenando na alienação do empoderamento individual, fadado ao fracasso. O caminho que precisamos trilhar não nos permite cair na armadilha, muito contingente ao humano que busca dar esperança a e alegria ao futuro, de confundir os enunciados de um discurso esperançoso com a realidade atual de impotência sobre a qual a palavras de empoderamento vazio dizem contemplar e na qual, algum dia, nunca sabemos quando, visará intervir, sem, é claro, construir força coletiva alguma.
Devemos trabalhar com aquilo que negritude é na prática: a luta constante contra a negação da vida, da dignidade humana, da autonomia econômica, política e cultural, da dirigência dos negros que estão vivos, que são dignos de viver, sobre o seu próprio destino, o destino do seu povo, da República que sustentam com o seu trabalho. Compreendendo, através dessa negação, o que é ser negro por meio das formas de organização material da vida que regulam o cotidiano do povo, que convencionamos chamar de negro, mas também é brasileiro, nordestino, sudestino, sulista, nortenho, e muitos outros predicativos, com os quais teremos de lidar, negociar, demover ou mobilizar ao nosso favor, se desejamos é claro, nalguma medida, conquistar o poder ao lado dessa gente, partilhá-lo com a favela, ao invés de querer guiá-la através de demagogia e pedantismo quixotescos. Entendendo desse jeito, não o único, mas aquele que nos é útil, como as regras que ditam os termos das identidades que reivindicam e negam, encontram sua origem não na fabulação cultural do que os seus ancestrais foram ou poderiam ter sido, mas estão sim fundamentadas na economia, política e ideologia da organização social da qual fazem parte, da qual são ensinados a vida toda a sustentar, sem é claro, jamais contemplarem enquanto possibilidade real se tornarem senhores de tudo que, através dos séculos, sangraram e suaram para construir.
Somente assim, talvez, possamos entender quem, de fato, quer ser negro na República do Brasil? São aqueles que a negam a si mesmos? Ou são aqueles que, por qualquer meio necessário, querem reivindicar seu direito histórico de se assenhorar de tudo que ela pode, e deve, nos oferecer?
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