Carlos Dias
A ascensão do Movimento Punk em 1977 teve como mote musical o retorno do Rock para os seus verdadeiro donos: a garotada que repete de ano e beira a delinquência. O Rock, nesta época, era dominado pelo torpor sonolento e grandiloquência do progressivo enquanto a música popular se rendia ao encanto purpurinado da discoteca. O Punk ofereceu guitarra, baixo, bateria e três acordes em resposta.
Como todo movimento cultural jovem, o Punk foi absorvido rapidamente pelo sistema: alfinetes de fralda, jeans rasgados e outros acessórios daquele primeiro momento do Movimento viraram itens de moda, sendo vendidos nas boutiques.
A domesticação do Punk acabou por transformá-lo rapidamente em uma piada inofensiva de jovens desmiolados. Por volta de 1979, 80, o Movimento já parecia coisa do passado, gerando até sucessores mais água-com-açúcar, como a New Wave.
O que – mais uma vez – passava ao largo do sistema era que muitos daqueles adolescentes que se envolveram com o Punk não desistiram da ideia de ter sua própria música, longe do controle das gravadoras e do establishment. Nas garagens um novo monstro começava a ser gerado: na parte musical, pegaram os três acordes do Punk, mantiveram a guitarra distorcida e aceleraram a velocidade da bateria; já no campo ideológico, a anarquia infantil do espírito de 1977 revestiu-se de seriedade, abraçando as causas de todos os injustiçados do mundo. Pronto! O Hardcore dava seus primeiros passos.
O marco inicial do movimento foi o EP “Out of Vogue”, dos californianos do Middle Class. Curiosamente, como acontecera com a explosão inicial do Punk, o hardcore também dava seus primeiros passos do outro lado do Atlântico: na Inglaterra, o Discharge soltava seus primeiros petardos sonoros.
O som absurdamente barulhento do Hardcore, unido às letras de protesto, sepultou qualquer chance de sucesso comercial e, consequentemente, de cooptação naquele primeiro momento. Assim sendo, no começo dos anos 80 os jovens tinham o controle mais uma vez da sua própria música.
Rapidamente, o Movimento se espalhou numa teia de bandas, fanzines e álbuns espalhados pelo mundo inteiro. Isso, 15 anos antes da Internet dar seus primeiros passos. Os jovens se correspondiam pelo correio, trocando LPs e publicações.
No Brasil, São Paulo foi onde o Hardcore encontrou terreno mais fértil para crescer. Bandas como Cólera, Olho Seco e Ratos de Porão apareciam na linha de frente. As letras de protesto faziam todo sentido naqueles dias. Por sinal, se o Brasil não vivesse à época o fim de ditadura militar, com uma relativa e ainda tímida liberdade, dificilmente esses grupos passariam pelo crivo da censura. As canções criticavam o patriotismo e o militarismo (“Medo de Morrer”, Inocentes), a polícia (“Sub-Ratos”, Cólera) e até mesmo o então poderoso Fundo Monetário Internacional, “dono” da impagável dívida externa brasileira (“FMI”, Ratos de Porão).
Por sinal, os Ratos foram a primeira banda a lançar um álbum do gênero na América Latina: o clássico “Crucificados pelo Sistema” (1983). Além da já citada “FMI”, o disco não economizava na aspereza em músicas como “Agressão/Repressão”, “Asas da Vingança” e a faixa título. Outra curiosidade é que o Crucificados marcou a estreia de um ainda não tão gordo João Gordo nos vocais. Por sinal, em 2001, a fim de comemorar 20 anos de carreira, o grupo regravou o álbum com melhor qualidade e o lançou com o nome “Sistemados pelo Crucifa”.
Ideologicamente, o Hardcore resgatou uma variante anarquista de corte nilista (“foda-se o mundo”) dos primeiros dias do Punk e o transformou em conscientização política e bandeira. Bakunin e Malatesta, entre outros pioneiros anarquistas, tinham suas ideias debatidas por jovens de 14, 15 anos. Outras causas como direitos das mulheres, oposição ao capitalismo, desarmamento, liberdade individual e proteção aos animais (muito antes do assunto virar tendência) também eram abraçadas pelo Hardcore. Enfim, qualquer minoria injustamente oprimida ou boa causa encontrava abrigo. Shows beneficentes em prol dessas lutas eram comuns. A oposição à mais-valia vinha até estampada nas capas dos álbuns, sempre produzidos e distribuídos pelas gravadoras do pessoal: os avisos de “pague não mais que R$ XX por esse disco” vinham impressos nas capas.
Até o visual da tribo buscava uma coerência ideológica. Foram abandonadas algumas peças de vestuário usadas para chocar que identificavam os punks de alguns anos antes: os já citados alfinetes de fralda e jeans rasgados e os casacos de couro (afinal, roupas de couro contribuíam com a exploração dos animais). O negócio, agora, era não cair num cliché visual. Uma camisa de banda, uma calça jeans e um tênis já bastavam.
E dentro do Hardcore também existiam os subgrupos. Talvez os mais interessantes fossem os anarcopunks e os straight edge. Os primeiros viviam a experiência anarquista: moravam em casas abandonadas, participavam de ações diretas de confrontação ao poder e eram extremamente politizados. Já os straight edge surgiram como uma resposta à alienação e ao retrato feito pela mídia do Punk. Os SE não bebiam, não usavam drogas… Até o sexo casual não era bem visto pelo grupo. Enfim, se o Punk era contra tudo, o straight edge era contra a imagem estereotipada do Punk.
Ao contrário do Punk de 1977, o Hardcore demorou alguns anos pra ser devidamente deglutido pela indústria cultural. Até 1983 o Movimento passou em branco pelos canais oficias da mídia. A correspondência, os LPs e os fanzines circulavam apenas entre os adeptos. A partir de 1983 algumas bandas de Hardcore começam a aprimorar tecnicamente sua sonoridade, chegando perto do som de certos grupos de metal mais pesado e chamam a atenção das gravadoras. O metal e sua opereta bufa satã/inferno já não assustavam mais as mamães dos jovens “rebeldes”, era necessário trazer uma ameaça mais real, assim sendo a aproximação sonora hardcore/metal era um grande prato para as corporações, que podiam trazer – mais uma vez – a rebeldia enlatada pra sala de estar.
Surgido em Los Angeles, em 1981, o grupo Suicidal Tendencies só começou a ser realmente ouvido por volta de 1983, quando lançou seu álbum de estreia, uma azeitada mistura de sonora de hardcore e metal com letras críticas e inteligentes. Com seu visual das ruas, envolvimento com gangues e apelo chicano, o Suicidal era o produto ideal para atender à demanda da indústria do disco por sangue novo. Em pouco tempo, a música “Institutionalized” tem seu clip(!) em boa rotação na MTV americana.
A partir daí foi aquele mesmo esquema, já bem conhecido: gravadoras correndo atrás do próximo Suicidal. Muitas bandas caíram no conto da sereia, assinaram com grandes gravadoras e deram uma metalizada comercial no seu som.
Para alguns estudiosos 1986 marca o fim do Hardcore: era difícil que um gênero de som tão limitado tecnicamente conseguisse evoluir, ou mesmo aceitar influências de outros estilos musicais; as brigas entre os jovens e as confusões nos shows tornavam escassos os locais para tocar; muitos grupos “evoluíram” musicalmente e tomaram outros caminhos; a garotada cresceu e teve que começar a correr atrás do próprio sustento, o que era quase impossível para os envolvidos com a cena etc.
O fim dessa “era de ouro” do Hardcore foi apenas a semente de uma grande mudança no mainstream musical que estava por vir. O tão falado grunge, que virou o Rock de cabeça pra baixo no começo dos anos 90, foi o amadurecimento musical daquela garotada antes envolvida na cena Hardcore. Pearl Jam, Mudhoney, Nirvana, Soundgarden e outras bandas de frente do grunge tiveram vários membros como plateia ou membros de bandinhas de hardcore. Dave Grohl (baterista do Nirvana e líder do Foo Fighters), por exemplo, antes da fama, foi baterista do Scream, banda americana de hardcore de Alexandria (Virginia).
Já no Brasil, esse legado veio se manifestar em meados da década de 90. Grupos como Chico Science, Raimundos e, um pouco depois, Sheik Tosado e Zefirina Bomba, juntaram o Hardcore com forró, baião e outros ritmos brasileiros numa mistura instigante. Nos anos 80 tal travessia de fronteiras musicais seria impossível. Naquela época era cada macaco no seu galho e qualquer mistura do Hardcore com outros ritmos era inviável e muito malvista pelos participantes da cena. Felizmente, até os estilos musicais amadurecem.
O tal fim do melhor momento do Hardcore em 1986, apontado por pesquisadores em perspectiva, passou batido por muita gente envolvida no movimento na época. As bandas continuaram, os garotos se envolviam… E continua até hoje. Por mais paradoxal que seja algo tão niilista perdurar por tantos anos é assim que a banda toca: quando se é jovem, e as angústias e dúvidas atravessam o coração, sempre pode ser hora de começar seu próprio pesadelo.
A popularização da internet em meados dos anos 90 também deu novo alento ao movimento. Se nos anos 80, quando as cartas e LPs podiam demorar meses para viajar de um país para outro, o intercâmbio mundial já era forte, imagina com a possibilidade de contato e troca de informações imediata proporcionada pela internet.
Alguma Discografia
Crucificados pelo Sistema – Ratos de Porão (Brasil) – 1983
Tente Mudar o Amanhã – Cólera (Brasil) – 1984
Grito Suburbano – coletânea com Cólera, Inocentes e Olho Seco – 1982
Walk Together, Rock Together – 7 Seconds (Estados Unidos) – 1985
Damaged – Black Flag (Estados Unidos) – 1981
Complete Disorder – Disorder (Inglaterra) – 1981
Hear Nothing, See Nothing, Say Nothing – Discharge (Inglaterra) – 1982
Ingen Fattig, Ingen Rike – Kafka Prosess (Noruega) – 1986
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