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TEORIA

Quem é o precariado?

Ruy Braga

A realidade de um número crescente de jovens em idade de entrar no mercado de trabalho em condições crescentes de deterioração da proteção aos trabalhadores surge como um fantasma saído diretamente do século XIX. Tal processo acusou a incômoda presença de uma fração de classe espremida entre a permanente ameaça da exclusão social e o incremento da exploração econômica: o “precariado”.

Marx já havia exorcizado esse espírito ao associar o aumento da ocupação industrial à formação de uma população excedente em relação às necessidades ordinárias das empresas. Argumentou ser próprio da acumulação capitalista produzir despoticamente – sob a forma do desemprego ou do trabalho precário – uma população trabalhadora excedente e necessária ao modo de produção capitalista aglutinada em torno de quatro frações distintas, porém mutuamente permeáveis[1].

  • A população flutuante, que, tendo em vista a dinâmica dos investimentos capitalistas e a aceleração do consumo da força de trabalho, seria formada por aqueles trabalhadores ora atraídos, ora repelidos pelas empresas.
  • A população latente, composta por jovens e trabalhadores não industriais à espera de uma oportunidade para deixar os setores tradicionais, especialmente rurais, estabelecendo-se na indústria.
  • A população estagnada, parte da força de trabalho, ocupando, no entanto, funções tão deterioradas e mal pagas que sua condição de vida cairia para níveis subnormais de existência.
  • E finalmente, a população pauperizada seria formada pela massa de indigentes, de doentes, de acidentados e de incapacitados para o trabalho devido à idade[2].

Aos nossos olhos, o precariado, isto é, o proletariado precarizado, é formado por aquilo que, excluídos tanto o lumpemproletariado quanto a população pauperizada, Marx veio a chamar de “superpopulação relativa”; a população estagnada, latente e flutuante. A mesma contrasta com os trabalhadores que recebem os melhores salários

  • os setores profissionais, aqueles grupos mais qualificados, mais bem remunerados e, por isso mesmo, tendencialmente mais estáveis

Devemos diferenciar analiticamente o pauperismo e o lumpemproletariado do precariado, pois entendemos que os trabalhadores precarizados são uma parte da classe trabalhadora em permanente trânsito entre a possibilidade da exclusão socioeconômica e o aprofundamento da exploração econômica.

  • Já o lumpemproletariado, descrito por Marx como “o lixo de todas as classes”, é  formado por indivíduos arruinados e aventureiros egressos da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-saídos da cadeia, batedores de carteiras, rufiões, mendigos… Por meio dessa categoria, Marx pretendeu chamar a atenção para o aprofundamento, especialmente saliente em períodos de crise, da degradação social que submete um número grande de indivíduos, separando-os de suas classes originárias e transformando-os em uma “massa desintegrada” vulnerável a movimentos reacionários. Vale lembrar que Marx não explorou conceitualmente a relação entre a população pauperizada e o lumpemproletariado.

Segundo Marx “[…] Quanto maior a produtividade do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre os meios de emprego, tanto mais precária, portanto, sua condição de existência, a saber, a venda da própria força de trabalho para aumentar a riqueza alheia ou a expansão do capital”[3]. Ao decair para o pauperismo, esses trabalhadores deixam de cumprir qualquer função relevante relacionada à exploração econômica de classe, conformando-se àquilo que Marx chamou de “o asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva”[4].

Identificamos o precariado com a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano e dos trabalhadores agrícolas, localizada no coração do próprio modo de produção capitalista. A precariedade é uma dimensão intrínseca ao processo de mercantilização do trabalho e não subproduto da crise do neoliberalismo. A dimensão histórica e relacional desse grupo é parte integrante da classe trabalhadora, e não uma amálgama intergeracional e policlassista que assumiria de maneira progressiva a aparência de uma nova classe.

Vale destacar que, pelo fato de não possuírem qualificações escassas, não exercerem autoridade e não contratarem trabalho, os proletários precarizados constituem a fração mais subordinada e explorada da classe trabalhadora.

Temos total ciência de que, mesmo retificado e ressignificado pela teoria marxista das classes e da população excedente, ao utilizarmos o conceito sociológico de precariado a fim de caracterizar a fração do proletariado precarizado em condições sociais capitalistas periféricas, estamos nos expondo à crítica dogmática daqueles que não veem sentido em chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Estes preferem simplesmente seguir associando essa parcela da população trabalhadora ao proletariado, evitando assim o laborioso esforço de estabelecer segundo critérios científicos a justa mediação entre as partes e o todo. Em consequência, desresponsabilizam-se de investigar a natureza contraditória das relações sociais, especialmente políticas, vinculadas à estrutura social, que constituem o precariado como uma realidade transicional, preferindo adjudicar uma imutável essência à classe operária. Nossa análise, ao contrário, não parte de essências, mas de relações sociais.

O precariado na História

Ao longo dos “trinta anos gloriosos” do capitalismo (1945-1973), o crescimento na Europa e EUA do “salariado”, isto é, da classe de trabalhadores assalariados cuja reprodução é regulada pelos direitos da cidadania, supostamente apontavam para o horizonte da superação da condição proletária. Porém, a atual crise economia mundial quebrou a promessa da institucionalização de direitos sociais e a eliminação da insegurança da relação salarial, com ajustes baseados na eliminação de direitos e cortes orçamentários.

Confrontado com o ressentimento social semeado entre os trabalhadores precarizados, o progressivo desmanche da relação salarial “fordista” e aumento do desemprego, sociólogos europeus buscaram respostas em uma condição exterior à relação salarial. Para os mesmos, se não fosse pelo neoliberalismo e pela atual crise econômica mundial, a institucionalização dos direitos da cidadania por meio da relação salarial certamente substituiria a precariedade pela proteção social.

Entendemos o contrário, que em decorrência da mercantilização do trabalho, do caráter capitalista da divisão do trabalho e da anarquia da reprodução do capital, a precariedade é constitutiva da relação salarial. Consequentemente, o precariado não deve ser interpretado como o antípoda do “salariado”, seu “outro” bastardo ou recalcado. Na realidade, o precariado é a própria condição de existência do “salariado”: tanto na Europa ocidental quanto nos Estados Unidos, o compromisso fordista mostrou-se bastante eficiente em proteger a fração profissional, branca, masculina, adulta, nacional e sindicalizada da classe trabalhadora, à custa da reprodução da fração proletária não qualificada ou semiqualificada, feminina, negra, jovem e migrante[5].

Se a precariedade parece estar se transformando em um “registro ‘regular’ da organização do trabalho”, ameaçando décadas de institucionalização de direitos sociais nos países capitalistas avançados, a verdade é que ela nunca deixou de ser a regra na periferia do sistema. Um indício de que o desenvolvimento capitalista, além de permeável a uma multiplicidade de ritmos, não é dirigido por nenhum telos progressista, revelando-se, ao contrário, desigual e combinado[6].


[1] Para uma convincente análise sociológica da formação histórica dessa população trabalhadora no Brasil, ver Adalberto Moreira Cardoso, A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades (Rio de Janeiro, Editora FGV, 2010), em especial os quatro primeiros capítulos. Para uma análise da formação do mercado de trabalho nacional, desde o período da escravidão, ver Alexandre Freitas Barbosa, A formação do mercado de trabalho no Brasil (São Paulo, Alameda, 2008).

[2] Para mais detalhes, ver Karl Marx, O capital: crítica da economia política (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, livro 1, v. II). Qualquer referência aos conceitos de população trabalhadora excedente, exército industrial de reserva e pauperismo em Marx não pode deixar de mencionar a conhecida problematização teórica empreendida pelo cientista político argentino José Nun – e que posteriormente fundamentou o debate deste com Fernando Henrique Cardoso sobre a dinâmica da população pauperizada na América Latina. Ver José Nun, “Superpoblación relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal”, Revista Latinoamericana de Sociología, Buenos Aires, v. 5, n. 2, jul. 1969, p. 178-236, e José Nun, Marginalidad y exclusión social (Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2001).

[3] Karl Marx, O capital, cit., p. 748.

[4] Ibidem, p. 747. Como Marx deixa entrever nesta passagem, não devemos negligenciar o fato de o pauperismo, a despeito de não cumprir função no tocante à exploração econômica, permanecer vinculado à esfera do consumo dos meios de subsistência.

[5] Para mais detalhes sobre o caso estadunidense, ver Aaron Brenner, Robert Brenner e Cal Winslow (orgs.), Rebel Rank and File: Labor Militancy and Revolt From Below During the Long 1970s (Nova York, Verso, 2010). Em relação ao caso francês, ver Stéphane Beaud e Michel Pialoux, Retorno à condição operária: investigação em fábricas da Peugeot na França (São Paulo, Boitempo, 2009).

[6] Vale lembrar que esta característica do desenvolvimento capitalista rege também o ritmo da teoria social, podendo colocar na vanguarda países atrasados em períodos relativamente curtos de tempo. Eventualmente, estes podem aproveitar algumas das vantagens que surgem quando uma parte do caminho já foi percorrida. Ver Paulo Eduardo Arantes, Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz (São Paulo, Paz e Terra, 1992) e Michael Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development (Nova York, Verso, 1981).