Patrick Galba de Paula
Potest igitur homo humanus deus atque deus humaniter, potest esse humanus angelus, humana bestia, humanus leo aut ursus, aut aliud quod-cumque
(Pode, portanto, um homem, o deus humano homem e Deus é humano, ele pode ser o anjo do homem, a besta humana, o leão humano ou um urso, ou qualquer coisa que, e quando, consiga).
Nicolau de Cusa, cardeal católico e filósofo renascentista (1401-1464), apud Kosik (1986, p. 218).
Em agosto de 2013 ocorreu uma batalha nas ruas de Quito: De um lado setores diversos da população, movimentos de povos indígenas, ambientalistas, organizações de esquerda. Do outro as forças de segurança do governo de Rafael Correa. O motivo: a decisão do governo equatoriano de iniciar o processo de exploração de petróleo na região amazônica de Yasuní, região declarada pela Unesco em 1989 como reserva mundial da biosfera.
Não foi por falta de boa vontade. O governo equatoriano havia se comprometido a tentar evitar a exploração de petróleo no parque e chegou a formular uma saída alternativa. Correa havia lançado em 2007 um plano com este objetivo. Consistia num chamado aos governos e empresas do mundo para que evitassem a exploração de petróleo no parque doando ou participando de alguma forma de um projeto de arrecadação de US$ 3,6 bilhões, equivalentes à metade do que seria obtido com 13 anos de extração de petróleo na região. Em suma, os capitalistas ricos deveriam utilizar parte de seus recursos, inclusive obtidos com a exploração de petróleo por todo o mundo, para que Yasuní permanecesse como um “santuário” ambiental e, ao mesmo tempo, sua população obtivesse parte dos recursos necessários para realizar suas potencialidades.
O projeto, obviamente, fracassou. No dia 15 de agosto de 2013 Correa veio a público afirmar que ele (e “o mundo”) haviam falhado em oferecer uma alternativa à exploração de petróleo em Yasuní pelas multinacionais petroleiras. Para “tirar as populações locais da pobreza” agora o governo progressista de Correa, o mesmo que desafiou o imperialismo estadunidense e seus vassalos britânicos concedendo asilo a Julian Assange, precisaria se unir às corporações do petróleo permitindo o início dos trabalhos de destruição (ainda que parcial) do parque para retirar um material que estas mesmas populações não necessariamente precisariam, mas que se destinará a abastecer à indústria estrangeira.
Diante do fracasso da ingênua proposta de Correa e das vicissitudes da crise capitalista o reformismo latino americano em todas as suas variantes (lulista, kirchnerista, bolivariana, ou mesmo o frenteamplismo de Mujica) passou de armas e bagagens de um certo “altermundismo” dos tempos de bonança para a nua e crua defesa da necessidade do “progresso” para Yasuní e para o povo latino-americano[1]. Tal necessidade, apresentada como uma dura realidade da qual não se pode fugir, decorre da lógica férrea do capital cujo elemento fundamental estaria nas taxas de lucro a serem obtidas com a exploração do petróleo.
Se nada mais soubéssemos sobre o reformismo latino americano contemporâneo, talvez o episódio de Yasuní fosse suficiente para evidenciar o seu fracasso em formular uma alternativa histórica, não apenas ao capitalismo, mas também sua forma específica atual, o neoliberalismo desenfreado esposado pelos defesas mais explícitas da sociedade do capital.
Apesar disso, existe na esquerda socialista, em especial no marxismo uma noção alternativa de desenvolvimento, que coloca a possibilidade de superação da lógica do capital e das taxas de lucro e que recusa tal realidade como algo inescapável. Este texto tem como objetivo apontar que concepção é esta.
As noções burguesas de desenvolvimento: Das filosofias da história ao multilinearismo pós-moderno
Antes, porém, vejamos o que estamos criticando. A visão de um “progresso” inescapável ao qual poderíamos apenas nos render sem dúvida deve sua formulação mais sofisticada e conhecida ao filósofo alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831). Em suas palestras sobre “filosofia da história” Hegel apresentou uma concepção teleológica e unilinear de desenvolvimento na qual os acontecimentos, em última instância, estão de certa forma predeterminados, na medida em as formas mais complexas e evoluídas já se encontram embrionariamente contidas nas formas mais simples e atrasadas. A evolução histórica das sociedades, independente dos percalços, sempre terminaria por realizar estas potencialidades presentes no homem desde o início, ao que Hegel chama de Idea. Para Hegel a Razão, com R maiúsculo, se realiza na história através dos homens, mas sua existência é anterior à sua realização humana:
[…] o mundo não está abandonado ao acaso e a acidentes externos, mas é controlado pela Providência. Eu já disse antes que não exijo a crença no princípio anunciado, mas penso que poderia apelar a esta crença em sua forma religiosa, a menos que a natureza da filosofia científica impeça, como regra geral, a aceitação de quaisquer pressuposições; ou, visto por outro ângulo, a menos que a própria ciência que desejamos desenvolver dê provas, senão da verdade, pelo menos da exatidão de nosso princípio. A verdade de que uma Providência, ou seja, uma Providência divina, preside aos acontecimentos do mundo corresponde ao nosso princípio, pois a Providência divina é a sabedoria dotada de infinito poder que realiza o seu objetivo, ou seja, o objetivo final, racional e absoluto do mundo. A Razão é o Pensamento determinando-se em absoluta liberdade (Hegel, 2001, p. 56).
Obviamente, a utilização desta concepção de Hegel vai permitir justificar todo tipo de acontecimentos em nome do Progresso: Desde a entrada de Cortez em Tenochtitlán até a dominação britânica na Índia e sua guerra para a imposição do consumo de ópio aos chineses, passando pelas guerras pelo controle da extração de petróleo no Oriente Médio, etc; o progresso histórico se apresenta de formas diversas, muitas vezes terríveis, mas sua marcha seria sempre para frente, e para melhor. O próprio Hegel vai apresentar o Estado liberal moderno, forma suprema de expressão da totalidade dos povos[2], como a realização máxima da Idéia e do Progresso e, em certo sentido o “fim da história”.
Embora geralmente não obtenha o devido crédito, a visão hegeliana do progresso encontra-se na base da maior parte das justificações contemporâneas do capitalismo e de suas contradições. Nos termos de Marx, poderíamos descrever as visões deste tipo como aquelas que consideram o desenvolvimento de forma unilateral, como “melhora” em termos absolutos na capacidade das forças produtivas humanas proverem condições materiais superiores para a nossa existência.
Sem dúvida Hegel e todos os “progressistas” não podem ser reduzidos a uma espécie de grupo religioso, dominados por uma visão mística da história e do progresso. Há um aspecto profundamente correto nesta visão. O homem, através do desenvolvimento de suas forças produtivas se liberta de um tipo específico de alienação, de limitação à sua auto-realização, que é a limitação imposta pelas condições materiais. Ninguém questiona que uma pessoa educada nas melhores escolas e com tempo livre para dedicar-se aos seus interesses terá muito mais condições para realizar algo importante do que alguém que vive toda a sua vida preso à necessidade de trabalhar incessantemente para obter do mínimo para sua sobrevivência.
Entretanto, o problema desta concepção não está no reconhecimento da relevância do desenvolvimento das condições materiais da existência humana, mas na mistificação resultante de sua apologia unilateral e acrítica.
Contra esta concepção hegeliana de desenvolvimento, que expressa de forma fiel a visão de mundo de uma burguesia um tanto progressista da época da ascenção do capitalismo como modo de produção, durante muito tempo foi levantado um tipo de resposta que poderia ser chamada de “romântica”, em especial por setores ligados à aristocracia proprietária de terras e mesmo aos pequenos proprietários ameaçados pela expansão desenfreada do capital. De formas muito diversas e em modalidades que vão de um certo “conservadorismo democrático” até o mais aberto reacionariasmo, este tipo de concepção romântica caracteriza-se pela crítica das mazelas do progresso, propondo como alternativa a ele algum tipo de volta a um passado, sendo este em geral idealizado.
Sem entrar em específico em nenhuma destas visões, é interessante notar que elas têm obtido um renovado interesse em nossa época. As recorrentes crises sociais e a catástrofe ambiental que cada vez mais parece se avizinhar e, principalmente, a gritante impotência de governos e corporações em tomar qualquer medida séria para evitá-la alimentam cotidianamente visões críticas de noções de progresso histórico de tipo hegeliano e produzem diferentes tipos de reações. Muitas destas reações terminam por retomar um certo utopismo romântico e a exacerbar elementos pré-capitalistas existentes em distintas formas sociais com o objetivo de apontá-las como alternativa aos desastres postos pelo capital. Apontam, portanto, o caráter destrutivo das relações capitalistas de produção e propõem colocar em seu lugar ou formas anteriores ou formas imaginárias de “equilíbrio” com a natureza (por exemplo, as propostas eco-capitalistas de exploração capitalista “sustentável” dos recursos naturais”), derivadas de concepções que ignoram as limitações materiais dadas em um momento concreto. O progresso capitalista não seria uma possibilidade inescapável, havendo inúmeras outras possibilidades (multilinearidade), tantas quantas nossa mente possa imaginar. Ou seja, em ambos os casos as alternativas derivariam de idealizações, seja do passado, sejam das possibilidades do futuro.
Estas visões dependem, muitas vezes, de uma negação ou recusa de qualquer desenvolvimento ou progresso. Por exemplo, é notória na literatura pós-moderna (como nos chamados estudos subalternos e “pós-coloniais”[3]) uma valorização da pobreza material e de relações pré-capitalistas tanto como explicação para os fenômenos quanto como projeto. No primeiro caso, nega-se a existência de qualquer progresso, de qualquer evolução com o advento das relações sociais capitalistas, com a indústria, etc, já que, diante de suas mazelas, a condição humana não teria melhorado, mas piorado. Por fim, a alternativa que este tipo de visão pode apresentar ao Progresso hegeliano, é a sua recusa, substituindo o desenvolvimento das condições materiais e suas mazelas pela ausência de ambas e um retorno a relações idealizadas de comunhão total ou parcial com a natureza.
Este tipo de visão reconhece, de forma correta, que o desenvolvimento das forças produtivas e das condições materiais da existência humana não ocorre da forma unilateral que imaginaria Hegel. Ou seja, não necessariamente todo progresso é para melhor, para realizar uma perfeição humana como desenhada por Deus no momento da criação. Mas perde-se nela um aspecto correto e fundamental que é a percepção de que a natureza, ou melhor, a ausência de sofisticação das forças produtivas e logo a escassez e a pobreza material resultante, também oprime o homem e impede sua auto-realização. Se nos diferenciamos dos animais na medida em que produzimos nossos meios de vida, qualquer retorno a um estado de “equilíbrio natural” (ainda que fosse possível) não resultaria em melhores possibilidades para a humanidade em qualquer campo.
Por fim, é interessante notar que, no final das contas, este tipo de recusa do desenvolvimento ou do progresso em suas variantes “romântica” ou pós-moderna, termina, de certa forma, fazendo uma concessão indevida à visão de Progresso de matriz hegeliana: A de que a libertação das limitações impostas à humanidade pela escassez e pela alienação da natureza só poderia vir acompanhada das mazelas postas pelo modo de produção vigente.
Uma noção de desenvolvimento em Marx?
Todos sabem que Marx é o pensador que mais teve suas ideias e posições deformadas e falseadas ao longo do tempo. Mas no que diz respeito ao tema do desenvolvimento, em seus diversos aspectos, não se tratou apenas de deformação. O fato é que a posição de Marx foi simplesmente desfeita, destruída por anos de substituição total ou parcial de suas formulações por diversas posições do pensamento burguês pré-Marx, realizada tanto por seus adversários quanto por muitos de seus epígonos no século XX, a ponto de ter praticamente desaparecido do debate[4].
Mas que concepção tão perigosa seria esta com a qual nem os defensores liberais do capital nem os dirigentes do comunismo oficial do século XX poderiam conviver?
Comecemos pelo início. Para Marx um primeiro pressuposto que precisa ser adotado ao analisar as sociedades humanas é o de que elas são formadas por indivíduos humanos viventes cuja organização corpórea impõe certas características e limitações, que seguem existindo a despeito do fato que tais sociedades se caracterizem pela produção e transformação de suas próprias condições de existência:
A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos viventes. Portanto o primeiro estado factualmente constatável é a organização corpórea destes indivíduos e, como conseqüência disso, seus comportamentos com relação ao resto da natureza. […].
Porém, o homem, em si mesmo, diferencia-se dos animais a partir do momento em que começa a produzir seus meios de vida, etapa esta condicionada pela sua organização corporal. Ao produzir os seus meios de vida o homem produzirá, indiretamente, sua própria vida material. […]
A maneira como os homens produzem seus meios de vida depende, acima de tudo, da própria natureza destes meios, com os quais se defrontam e que procuram reproduzir. Este modo de produção não deve ser unicamente considerado como reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se de um modo específico de atividade destes indivíduos, de um determinado modo de vida. E tal como manifestam este modo de vida, assim são. Por conseguinte, o que eles são coincide com suas produções, com o que produzem e com o modo que produzem. Portanto, o que os indivíduos são dependentes das condições materiais de suas produções. (Marx e Engels, 1982, pp. 26-27).
O modo de produção das condições de existência humana de que fala Marx pode ser caracterizado como uma combinação de dois aspectos fundamentais (embora não sejam os únicos): De um lado, a forma como os homens se relacionam com a natureza para produzir (tipos e formas de trabalho, meios e instrumentos de produção, técnicas, tecnologia, elementos auxiliares como tipos de energia utilizados, etc), que se convenciona chamar de forças produtivas; Por outro, as formas pelas quais os homens se relacionam entre si para realizar tal produção (relações de trabalho, relações de propriedade, formas de circulação e distribuição do que é produzido entre os homens). Em todas as sociedades humanas cuja reprodução se baseia no trabalho, a relação e o conflito entre estes dois aspectos expressa o que são suas características fundamentais:
Na produção geral de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção de vida material condiciona o desenvolvimento da vida social política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência (Marx, 1971, p. 28).
Entretanto, a evolução e mudança destes aspectos fundamentais das sociedades gera contradições. Características específicas postas pela evolução da técnica, por exemplo, podem entrar em conflito com determinadas relações de propriedade. O conflito, obviamente, não se dá entre as coisas. São as pessoas que percebem que o desenvolvimento de determinada característica da produção, ou a disseminação de determinada tecnologia ou forma de trabalho poderia favorecer a vida que levam. O mesmo resultado pode ser visto como ameaça por outras pessoas, cujos interesses estão mais voltados para a defesa de determinadas relações de propriedade ou de trabalho (um exemplo atual aqui são os conflitos em torno a tecnologias como o mp3, energia solar, über etc). Estas diferentes posições funcionais no processo de produção dão origem ao que Marx chama de classes sociais, e o conflito entre elas é a luta de classes, que para Marx é a principal força motriz da história:
Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura.
Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela sua consciência de si; É preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” (Marx, 1971, p. 28-29).
O mais importante a ser notado aqui é que, embora haja obviamente uma precedência lógica e histórica das forças produtivas em relação às relações de produção, não existe nestas considerações de Marx qualquer relação de determinação direta, apriorística, entre estas instâncias em qualquer sociedade específica. Cada modo de produção tem suas tendências internas, suas próprias contradições e possibilidades, mas isto não significa que em nenhum (ou qualquer) deles a síntese específica que ocorrerá entre estas contradições esteja dada de antemão. A síntese que ocorrerá será determinada pela luta viva entre os indivíduos que defendem cada uma de suas tendências contraditórias. Ou seja, a luta de classes é a luta pelo tipo de síntese que será realizado entre as características existentes dentro do modo de produção e reprodução da vida e esta luta, em qualquer momento dado, está sempre em aberto, no sentido de que existem sempre distintas possibilidades para o seu desenrolar.
Por outro lado, a síntese que pode ocorrer se limita às características do modo de produção existente e a distintas combinações possíveis de aspectos herdados do passado: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. (Marx, 2006, p. 15). É desta forma apenas, ao limitar as opções de síntese que nos deixam disponível, que Le mort saisit le vif[5].
O que fica claro, portanto, é que não há nem pode haver nestas considerações trans-históricas de Marx espaço para quaisquer “leis gerais de desenvolvimento” aplicáveis a todas as sociedades, ou muitos menos para uma “filosofia da história”, mas também não para uma “multilinearidade aberta”. A percepção das limitações que as condições materiais de nossa existência implica limitações para o desenvolvimento humano, mas sempre existem distintas possibilidades.
Desenvolvimento e progresso sob o capital
Marx, obviamente, não teve tempo de estudar e teorizar sobre as leis internas de todos os modos de produção, ou seja, sobre que tipo de historicidade se colocava como tendência a partir do conflito social existente em cada um deles entre os aspectos derivados de suas forças produtivas e de suas relações de produção. Embora não sejam poucas as referências em sua obra ao “modo de produção asiático”, às sociedades escravistas antigas e ao feudalismo, o único modo de produção estudado por Marx de forma minuciosa com o objetivo de descrever suas leis tendenciais foi o capitalismo.
O capital, a forma básica de funcionamento de nossa sociedade, é uma relação social de produção estabelecida entre homens com o objetivo central de valorizar o valor, a riqueza anteriormente apropriada por alguns homens na forma de trabalho cristalizado em coisas (seja moeda, mercadorias, ou meios de produção). Nesta relação, os proprietários das coisas de maior valor compram a força de trabalho dos não-proprietários e utilizam-na para produzir mais riqueza (“mais-trabalho”, ou mais-valor), na forma de mercadorias que são produzidas com o objetivo de serem trocadas.
A relação capitalista é antiga e precede o capitalismo como modo de produção. Em seus primórdios ela se restringe ao comércio e as finanças. É somente num período relativamente recente, com a invenção de máquinas e a utilização de novas formas de energia (vapor, eletricidade, etc) que este tipo de relação pode efetivamente concluir a “colonização” da produção.
De forma um tanto rude, poderíamos afirmar que este modo de produção apresenta como suas principais tendências: a) Que a produção não é realmente “livre” (como imaginam os liberais em seus devaneios), mas regulada pela lei do valor (o que, em suma, significa uma “ditadura” das taxas de lucro); b) Que o capital, em busca do mais-valor, precisa necessariamente se expandir, tendendo a acumular-se; c) Que isto significa que cada vez mais da produção social se concentra nas mãos dos capitalistas; d) Que a disputa entre os capitalistas pela apropriação do mais-valor resulta numa centralização da riqueza nas mãos de cada vez menos capitalistas; e) Que a forma que esta disputa ocorre implica que cada vez mais riqueza na forma de máquinas e matérias primas é utilizada para a produção por uma quantidade relativamente menor de trabalhadores, que são substituídos por máquinas; f) Por fim, decorre que cada vez a maior massa de mais-valor é criada e apropriada pelos capitalistas numa taxa menor diante da massa de valores investidos, dando origem às crises.
Obviamente, todas estas tendências têm contradições e produzem contra-tendências que podem inclusive anular ou reduzir seus efeitos em qualquer momento dado. Mas isto não significa que deixem de existir como explicação subjacente dos fenômenos deste tipo de sociedade. Além disso, é preciso notar que esta “lista” está incompleta, pois Marx não teve tempo de descer a certas especificidades como a questão do mercado mundial e do papel do Estado capitalista, fundamentais em nossa época.
Mesmo assim esta contribuição já nos permite inferir algo fundamental: A sociedade em que vivemos, a sociedade do capital, por ser guiada por certas leis, aponta como tendência de seu desenvolvimento num certo sentido específico, que se dá independente da vontade individual das pessoas envolvidas, mas em decorrência de suas decisões individuais motivadas por seus próprios interesses.
Isto nos permite entender, por exemplo, o problema de Yasuní: Mantido o tipo de produção fundado numa socialização da produção, mas na apropriação privada do excedente (mais-valor), a determinação do investimento (o que será produzido) ocorre pela taxa de lucros (pelo percentual que será apropriado pelos proprietários capitalistas). É só neste sentido específico, pressupondo uma necessidade de preservar tal relação de apropriação privada e sua lógica, e naturalizando-as, que o “combate à pobreza” tornaria o tipo de produção que é feito sob o capitalismo (e a destruição do parque) algo inescapável.
Existe, verdadeiramente, “progresso”?
A questão da existência de algum “progresso” não pode ser resumida a um problema de disponibilidade de recursos materiais. O capitalismo, como notou Marx, é caracterizado por crises de excesso: de um lado excesso de capitais sem possibilidades de se valorizar, excesso de mercadorias e de produtos que não se vendem, excesso de trabalhadores sem emprego e que não podem se sustentar. Frente a estas situações e a todas as demais mazelas do capital, é possível que se questione, como fazem os “românticos”, se há de fato algum progresso.
O verdadeiro progresso não está apenas na quantidade de mercadorias e de valores de uso criadas pelas forças produtivas superiores surgidas na época capitalista. Embora tenha um aspecto individualizante pela forma privada de apropriação do trabalho excedente, o capital também produziu uma grande socialização da existência humana, em especial no que diz respeito ao processo produtivo, mas também em outras áreas, como a ciência e a técnica[6]. Apoiado nesta socialização de suas atividades o homem sob o capital realizou potencialidades que nunca antes pudera imaginar. Este fato não depende da avaliação que se faça dos prós e contras do processo, é um progresso objetivo[7].
É esta ampliação da base de atuação humana, antes muito mais restrita, que representa o verdadeiro progresso que veio junto com o capitalismo. Reconhecer isto não significa mistificar o sistema, mas entender o ponto de partida para sua transformação, sem o qual ela não seria possível. Ademais, é necessário também compreender que a alternativa ao capital, para ter alguma chance de existir, precisa superá-lo neste aspecto fundamental, ou seja, dependerá de uma nova elevação do grau de socialização do homem e ampliação de sua base de atuação.
Não é o Progresso e a História que se realizam através da ação humana, mas o Homem que se realiza na história e no progresso que consegue construir
As conseqüências deletérias do desenvolvimento capitalista podem ser evitadas. A verdade, inclusive, é que esta questão não pode sequer ser tratada com seriedade por liberais ou reformistas, uma vez que isto significaria enfrentar algo que suas visões de mundo buscam preservar.
Vejamos o exemplo da América Latina. A economia latino-americana se caracteriza pela concentração das atividades primárias, na agricultura, na mineração e na exploração de petróleo, onde as taxas de lucro são mais altas (diante da concorrência com os capitais dos países centrais nos principais setores industriais). São, em geral, atividades onde a produtividade do trabalho (de forma grosseira, a quantidade de produto por hora de trabalho) é baixa e cresce lentamente, em comparação com as atividades industriais de ponta dos países industriais. A maior parte deste grande excedente produzido nestas atividades, em função das suas próprias características, é apropriada por uma reduzida “elite”, que mantém um padrão de consumo altíssimo, em especial de artigos importados. Outra parte é “dividida” com uma classe média que é numerosa, mas minoritária, e também tem um consumo relativamente alto.
Imaginemos, por um instante, que uma parte considerável dos investimentos fosse direcionada para outro tipo de atividades, para a indústria de meios de transporte (trens, navios, etc), para a indústria elétrica, para a construção de moradias e para a produção de energia (como a massificação de energia solar), setores onde a produtividade do trabalho é em média muito mais alta do que nas atividades primárias predominantes. Além disso, que uma parte considerável dos investimentos também fossem para produzir as máquinas que seriam utilizadas nestas indústrias, computadores para informatizá-las, etc.
Quais seriam as conseqüências disso? Em primeiro lugar, é claro que, como uma parte maior do que é produzido estaria sendo direcionado para fazer máquinas aumentariam nossa capacidade de produção, é claro que em algum tempo estaríamos produzindo mais, com a mesma quantidade de trabalho, do que antes. Mas haveria também outra conseqüência. Como estaríamos retirando parte de nossa capacidade produtiva de setores com altas taxas de lucro (cuja produção é direcionada para a exportação), a capacidade de consumir (produtos importados, p. ex.) se reduziria.
Mas este tipo de resposta, por mais tosca e simplória que pareça, é impensável sob o capital. Os seus proprietários, que decidem onde os recursos serão investidos, tem apenas o critério das taxas de lucro. Parece claro que com todas as tecnologias disponíveis atualmente, desde as criadas sob o capitalismo até aquelas que tem sua origem no contraponto posto pela experiência soviética, seria plenamente possível organizar a produção em escala mundial de forma a permitir o “combate à pobreza” em condições superiores às atuais, sem a necessidade de recorrer, por exemplo, a destruição das condições para a vida humana no planeta. Entretanto, sem romper com a naturalização das relações capitalistas não poderemos sequer imaginar esta alternativa. Seus limites são demasiado estreitos.
A grande decisão de nossa época, portanto, não é aceitar ou não a inevitabilidade de “progresso” que vai nos reduzir a algo que não queremos. A apropriação privada, que em todas as suas contradições também trouxe avanços, ameaça a nossas condições de existência e a civilização com suas crises e pode nos conduzir a grandes retrocessos. O caminho para o qual nos levará o “progresso” capitalista já podemos todos antever, ao menos em suas linhas gerais. E ele não é florido.
Ilustra o caso a forma que Karel Kosik, filósofo marxista tcheco que também foi um dos dirigentes da primavera de Praga, abordou a questão:
O que o homem realiza na história? O progresso da liberdade? O plano providencial? A marcha da necessidade? Na história o homem realiza a si mesmo. Não apenas o homem não sabe quem é, antes da história e independentemente da história; mas só na história o homem existe. O homem se realiza, isto é, se humaniza, na história. A escala em que se opera tal realização é tão ampla que o homem pode caracterizar o seu próprio agir como inumano, embora saiba que só o homem pode agir de modo inumano. Assim que o renascimento descobriu que o homem é criador de si mesmo e que pode ser aquilo que ele mesmo se faz, anjo ou besta, leão humano e urso humano, ou qualquer outra coisa, tornou-se logo evidente que a história humana constitui o desdobramento destas “possibilidades” no tempo. O sentido da história está na própria história: Na história o homem se explicita a si mesmo e este explicitamento histórico – que equivale à criação do homem e da humanidade – é o único sentido da história (Kosik, 1986, p. 215).
É das condições concretas existentes, das mesmas criadas pelo capital e pelos que nos antecederam, que precisamos retirar os elementos da transformação naquilo que buscamos nos tornar. Mas é certo que, dentro destes limites e considerando a possibilidade de uma ação coletiva, sempre existirá uma opção, com conseqüências distintas e imprevisíveis como tudo o que é novo.
Referências:
Hegel, G. (2004). A Razão na História. 2ª edição. São Paulo: Centauro.
Kosik, K. (1986). Dialética do concreto. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e terra.
Lukács G. (1979). Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
Marx, K. (1971). Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Editorial Estampa.
________. (2006). O dezoito brumário de Louis Bonaparte. 4ª edição. São Paulo: Centauro Editora.
Marx, K. e Friedrich Engels (1982). A ideologia Alemã (Feuerbach). 3a. Edição. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas.
Notas:
[1] Ver, por exemplo, os escritos de Igor Fuser (2013) “fundamentalismo ecológico no Equador”. Disponível em: http://goo.gl/1Tx5y9; e Fuser, I. (2015). Ecologismo e desenvolvimentismo nos conflitos do Tipnis (Bolívia) e do Yasuní (Equador): “contradições no seio do povo”? Cemarx, 2015, disponível em http://goo.gl/u0u1iV
[2] “Na história do mundo, os ‘indivíduos’ de quem devemos tratar são os povos, eles são totalidades que são Estados” (Hegel, 2004, p. 57).
[3] Sobre isto, ver a crítica de Chibber (2013). Postcolonial Theory and the Specter of Capital. New York: Verso.
[4] Algumas das principais destas interpretações do que seria desenvolvimento para Marx foram analisadas em De Paula, P. (2014). Duas teses sobre Marx e a noção de desenvolvimento. Revista Outubro, nº 22, segundo semestre de 2014. Disponível em: https://goo.gl/xDDJ5h.
[5] “Os mortos tolhem os vivos”.
[6] “As relações entre umas nações e outras dependem do estado de desenvolvimento em que se encontra cada uma delas no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e ao intercâmbio interno. Tal princípio é em geral reconhecido. Entretanto não apenas a relação de uma nação com outras, mas também toda a estrutura interna desta mesma nação, dependem do grau de desenvolvimento de sua produção e de seu intercâmbio interno e externo. O quanto as forças produtivas de uma nação estão desenvolvidas é mostrado de maneira clara pelo grau de desenvolvimento da divisão do trabalho. Na medida em que não se trata de simples extensão quantitativa de forças já conhecidas (arroteamento de terras, por exemplo), cada nova força produtiva tem como conseqüência um novo desenvolvimento da divisão do trabalho” (MARX e ENGELS, 1982, pp. 28-29).
[7] Ilustra esta posição a seguinte passagem do filósofo húngaro G. Lukács:
“Todas as linhas de desenvolvimento desse tipo possuem um caráter ontológico, ou seja, mostram em que direção, com que alterações de objetividades, de relações, etc, as categorias decisivas da economia vão superando cada vez mais sua originária ligação predominante com a natureza, assumindo de modo cada vez mais nítido um caráter predominantemente social. Naturalmente, nesse contexto, surgem também categorias de caráter social puro. É já o caso do valor; mas, por causa de sua inseparabilidade do valor-de-uso, o valor se liga de certo modo a uma base natural, ainda que socialmente transformada. Não há dúvida de que temos aqui um processo de desenvolvimento; e também se pode dizer que, no plano puramente ontológico, é um progresso o fato de que essa nova forma do ser social consiga, no curso do seu desenvolvimento, realizar-se cada vez mais a si mesma, ou seja, explicitar-se em categorias cada vez mais independentes e conservar as formas naturais apenas de um modo que as supera cada vez mais. Nessa constatação ontológica do progresso, não está contido nenhum juízo de valor subjetivo. Trata-se da constatação de um estado de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado posteriormente. (Pode-se aprovar, deplorar etc, o ‘recuo das barreiras naturais’)” (Lukács, 1979, p. 54).
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