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TEORIA

A Dívida Pública enquanto um problema estrutural e sem-solução do Sistema Capitalista

Em primeiro lugar impõem-se um esclarecimento sobre o título do artigo. Na verdade, a dívida pública federal é um grande problema para a população, que é de fato quem acaba pagando a dívida. A dívida pública se caracteriza, ainda, em um grande limitador para o desenvolvimento econômico e social do Brasil e principalmente um entrave para superar aquela que provavelmente seja a maior de nossas mazelas – a miséria – que somos condenados a conviver cotidianamente, ainda que, nos últimos nove meses do novo governo, a partir do retorno de vários programas de inclusão social, milhares de famílias já tenham deixado a condição de extrema pobreza.

Marco Antonio Monteiro Coutinho, de Niterói (RJ)
Auditoria Cidadão da Dívida

Para o sistema do capital e seu “instrumento” principal, o sistema capitalista, o mecanismo cruel da dívida pública que é, na verdade, uma grande solução para os capitalistas, na medida que é o sistema da dívida pública que garante a remuneração de seus capitais ociosos, livre de risco ou “risk-free”, como preferem chamar os nobres capitalistas, seus agentes e demais beneficiários desse mecanismo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Ou seja, o mecanismo da dívida pública é, além de cruel, extremamente injusto e totalmente ilegítimo; se caracterizando como uma verdadeira “besta do Apocalipse moderno”, uma espécie de versão econômica de “Apocalypse Now”, filme do aclamado diretor Francis Ford Coppola, produzido na década de setenta, que mostrou os horrores da Guerra do Vietnam, ainda que muitos não tenham percebido, assim como o sistema da dívida pública que passa ao largo para a maioria das vidas que ele destrói ou sentencia a ser eternamente a mercadoria mais cobiçada do sistema capitalista, a mercadoria força de trabalho, a única que tem capacidade de produzir mais-valor através do trabalho (abstrato) incorporado às mercadorias, mas que não enxergamos depois que são disponibilizadas para venda em seus diversos mercados. No entanto, a expropriação do trabalho assalariado é muito concreto para materializar o maior fetiche da sociedade capitalista, o mecanismo de produção, reprodução e acumulação de capitais, que é, este sim, o principal objetivo do capitalista.

Mas, como um sistema, um mecanismo, que favorece apenas 1% de grandes capitalistas e investidores e é tão pernicioso para 99% da população trabalhadora, consegue se perpetuar sem praticamente nenhuma discussão séria nos meios de comunicação tradicionais, ou seja, na grande mídia capitalista? Cabe destacar que ao denominarmos o sistema da dívida pública como cruel, pernicioso e imoral, não incorremos em nenhum exagero, pois somente no ano de 2022 pagamos em juros da dívida pública federal a cifra absurda de R$ 561 BILHÕES, de acordo com o Relatório Mensal da Dívida (RMD) de julho de 2023!

Os valores são impressionantes quando comparados com gastos, que são na realidade investimentos de recursos públicos em diversos programas sociais para beneficiar milhões de famílias, como o programa federal “Bolsa Família” que beneficia 21,3 milhões de famílias em todo país e cujo total de recursos anual é de R$ 169,2 bilhões, que representa 3,3 vezes menos que o pagamento de juros com a dívida pública que beneficia somente a elite financeira do país. Por que programas de inclusão social, tão comuns em países mais desenvolvidos, incomoda tantos milhões de brasileirxs? Os mesmos que nada falam ou reclamam do sistema da dívida que drena anualmente mais de MEIO TRILHÃO de reais em pagamento de juros para beneficiar, pasmem, quinhentos grandes investidores de acordo com informação oficial do Governo Federal. Todos esses dados referentes à dívida pública federal estão disponíveis no site do Tesouro Nacional para todxs os brasileirxs!

“Podem participar diretamente dos leilões, apresentando propostas, as instituições regularmente registradas no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), correspondendo a aproximadamente 500 participantes potenciais.”

A resposta para explicar o silêncio macabro da grande mídia e a rejeição de milhões de brasileiros em relação a coisa pública é muito óbvia e simples, mas a grande maioria da população não tem elementos e informação disponível e de fácil acesso para perceber algo tão claro.

Acredito que seja mais fácil para essas pessoas não pensarem nestes absurdos do sistema capitalista. É mais fácil, cômodo e dói bem menos não pensar e enxergar que o sistema que tanto defendem e idolatram transfere para uma burguesia medíocre e gananciosa a cifra imoral de mais de R$ 5,5 TRILHÕES a cada dez anos! Para termos a noção mais realista da dimensão desses recursos, poderíamos comparar com o PIB (Produto Interno Bruto), que é a soma de todas as mercadorias, prestação de serviços e produtos agrícolas produzidos em um país. O PIB do Brasil em 2022 foi de R$ 9,9 TRILHÕES, ou seja, pagamos de nossos salários o equivalente a mais da metade de toda nossa produção de um ano para pagar juros para menos de 1% de milionários e bilionários com juros da dívida pública! Se computarmos as isenções, benefícios fiscais e as reduções no imposto de renda com o artifício do abatimento contábil com a depreciação, esse valor é bem maior! Realmente, pensar nas atrocidades do capitalismo faz muito mal, mas se não fizermos nada, se não tivermos capacidade de nos indignar e coragem para mudar essas aberrações, o boleto bancário que nossos filhos e netos terão que pagar certamente será bem mais amargo e doloroso! O grande psicanalista, poeta e escritor, e também um reconhecido militante de esquerda, Hélio Pellegrino, defendia – usando minhas palavras -, que sair da zona de conforto é muito difícil, muito desafiador, pois temos a tendência de nos auto proteger, de manter o “status quo”, de manter a situação atual. Exatamente por tudo isso essas pessoas são chamadas de conservadoras, pois querem conservar o que tem, mesmo sendo tão ruim, pois o desconhecido nos causa muito medo, nos é muito assustador. Ser crítico ao sistema capitalista exige tempo, dedicação, exige mexer em valores que nos foram passados pelo senso comum produzido pelos donos do poder econômico, pela grande mídia capitalista, por aqueles que querem que tudo continue como está. Muitos optam em ficar limitados à contemplação, esquecendo-se que seu líder espiritual em diversas ocasiões teve que partir para a ação, partir pra cima e enfrentar o problema!

A grande mídia capitalista não tem o menor interesse de falar no assunto, pois os grandes grupos econômicos que atuam na comunicação e na grande mídia são grandes investidores, defensores e beneficiários desse sistema tão perverso, mas que garante que seus recursos ociosos e em busca de investimentos com taxas de retorno mais atraentes tenham um porto seguro enquanto não conseguem projetos de investimentos mais rentáveis.

Mas como podemos observar na citação abaixo, esta lógica não é recente, na década de trinta do século passado, o sistema capitalista já utilizava este mecanismo para proteger seus capitais ociosos e garantir excelentes retornos livres de risco para os grandes capitalistas e investidores.

“Os banqueiros, quando possuíam reservas excessivas na década de 1930, encontravam uma área ampla e lucrativa para investimentos em títulos governamentais, e os controles governamentais ofereciam não só liquidez ao sistema bancário, mas também segurança e estabilidade” (História do Pensamento Econômico. Oser, Jacob e Blanchfield, William. Editora Atlas. 1987.)

É exatamente por isso e somente isso, que um assunto tão grave e prejudicial para a totalidade da população não é matéria nem mesmo de informação e muito menos de discussão em nenhum canal de TV; e que nunca veremos um debate sobre a questão da dívida. A grande mídia é sócia da dívida pública, é uma de suas maiores investidoras e beneficiárias, e por isso jamais abrirá espaço para críticas a este sistema.

É preciso ficar claro para a “esquerda” que a dívida pública não tem solução, pois não é um problema para os donos do capital, para os donos do poder econômico e, dessa forma, para os donos do poder político. A dívida pública é uma solução extremamente generosa e insubstituível para garantir remuneração livre de risco para seus capitais. Nós, que acreditamos e lutamos por um sistema econômico e social que favoreça a maioria, não temos o direito de achar ou acreditar que a dívida tenha solução! Não podemos esquecer, como já alertava Karl Marx, o maior crítico do sistema capitalista: quem domina a dimensão ideológica, domina a dimensão econômica e consequentemente a dimensão política!

É no Congresso Nacional que os capitalistas, que financiam seus representantes de plantão, garantem todas as leis e projetos que lhes beneficiam. Infelizmente e por conta da estratégia de massificação da grande mídia em torno da disputa pelo executivo, a população foca na eleição do presidente e a maioria não escolhe seus deputados federais e senadores com o rigor que deveria ter. Uma grande parcela nem lembra em quem votou para deputado federal ou senador! E é justamente lá, no Congresso Nacional, que nossos maiores problemas se materializam através de leis que favorecem os grandes capitalistas e rentistas.

A dívida pública é elemento fundamental para manutenção e sobrevivência do sistema capitalista. Isto significa que este “sistema cruel” de produzir dívida e concentrar renda em poder de poucos só termina com o fim do capitalismo.

A dívida pública é elemento fundamental para manutenção e sobrevivência do sistema capitalista. Isto significa que este “sistema cruel” de produzir dívida e concentrar renda em poder de poucos só termina com o fim do capitalismo.

E também precisa ficar claro e termos consciência que este momento histórico acontecerá, mas também precisamos entender que o sistema capitalista tem muitas formas de postergar este momento. Marx, em sua obra magna “O Capital” que tem como subtítulo “Crítica da economia política”, deixou bem claro e muito bem embasada sua teoria da “Tendência declinante da Taxa de Lucro” das empresas capitalistas (Livro 3. Seção III. Cap. 13 a 15). Mas também alertou que se tratava de uma lei de tendência, pois o sistema capitalista tem alguns mecanismos para reverter este quadro, esta tendência, que Marx chamou de “Contratendências” ou “Causas contra-arrestantes”. E é isto que temos visto acontecer em praticamente todas as crises econômicas cíclicas desse sistema. Mas também temos percebido com muita clareza que essas crises já não são apenas cíclicas, elas já se configuram como uma grave crise estrutural do capital e de seu sistema capitalista de reprodução e acumulação de capitais, do sistema do capital, como defendia o grande pensador húngaro István Mészáros.

Para Mészáros, o sistema do capital é viabilizado pelo que ele chamou de “sistema sociometabólico do capital” que tem seu núcleo, sua configuração, formada a partir do tripé “trabalho assalariado”, “capital” e “Estado”. Mészáros defendia em sua tese que a superação do capital só seria possível com a eliminação do conjunto desses três elementos que dá vida a esse sistema; não sendo possível eliminar apenas um ou dois polos desse “sistema sociometabólico do capital”. Para a eliminação ou destruição do sistema do capital é condição necessária a eliminação dos três pilares que sustentam este sistema tão nocivo para a população: (i) a exploração da força de trabalho assalariada para produção de excedente visando produzir mais-valor para a obtenção de lucros, reprodução e acumulação de capitais; (ii) o próprio capital em si, seu elemento fundamental, e que a cada dia se expande de forma cada vez mais autônoma e destrutiva, caracterizando dessa forma sua total incontrolabilidade em relação ao próprio sistema social que acabará se auto fagocitando e colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade; e (iii) o fenecimento do “Estado”, a instituição opressora por natureza que garante este sistema bárbaro de exploração do homem pelo homem e que é a materialização do principal aparelho de repressão das massas, para garantir tanto a continuidade da exploração da força de trabalho assalariada, escamoteada em “trabalho livre” e sua instituição maior “o capital”, que em suas diversas formas de manifestação, cumpre o papel principal de se expandir de forma cada vez mais ampliada e nociva.

Percebe-se com clareza a dificuldade crescente desse sistema em produzir os excedentes econômicos a partir da produção de mais-valor (mais-valia) com a exploração de nossa força de trabalho. Percebe-se, nos últimos trinta anos, um crescente aumento do capital fictício em detrimento do capital mercantil, comercial e industrial, isto é, da reprodução e acumulação de capital a partir da economia real.

Assim como outros sistemas e seus modos de produção foram superados por sistemas superiores, como o “comunismo primitivo”, o “escravismo” e o “feudalismo”; assim também será com o sistema capitalista. Não podemos esquecer que o capitalista é o capital encarnado, mas é também seu coveiro!

Fonte de dados:
Bolsa Família inclui um milhão de famílias e bate recorde de valor médio: R$ 672,45
https://www.tesouro.fazenda.gov.br/web/stn/por-dentro-das-contas-da-divida
Relatório Mensal da Dívida (RMD)
PIB cresce 2,9% em 2022 e fecha o ano em R$ 9,9 trilhões
Marco Antonio Monteiro Coutinho é economista, funcionário aposentado do Banco do Brasil e filiado ao PSOL Niterói. Foi professor de cursos nas áreas de Economia política e Finanças corporativas no Corecon RJ – Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.