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TEORIA

O drama dos revolucionários em um tempo sem revolução

Henrique Canary, do portal Esquerda Online

A nona onda, 1850. De Ivan Aivazóvski

Ao
Comitê Central
do futuro
ofuscante,
sobre a malta
dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.
Vladímir Maiakóvski, A Plenos Pulmões

Um angústia envolve o coração dos revolucionários: a ausência de revoluções. Já se vão quase 50 anos sem uma revolução socialista vitoriosa, mais de 30 do fim da União Soviética, mais de 15 de uma crise econômica que não encontra saída e pelo menos 10 de ascenso ininterrupto do fascismo em todo o mundo. E não parece que as coisas vão melhorar em curto ou médio prazo: a Europa, dividida pela guerra e em franca decadência, se encontra em meio a uma transição política que deve fortalecer a extrema-direita no próximo período; os países da América Latina lutam para evitar que o fascismo chegue (e, em alguns casos, volte) ao poder; nos Estados Unidos, a provável vitória de Trump parece apontar para um novo ciclo de governos autoritários, negacionistas e xenofóbicos em todo o globo; na Faixa de Gaza, uma operação genocida visa eliminar o povo palestino do mapa e empurrar os sobreviventes para a desértica península do Sinai, no Egito, onde Israel pretende que definhem até a morte e sejam esquecidos para sempre.

Todos esses fatores poderiam, teoricamente, apontar para um paralelo com a situação vivida pelo mundo no início do século 20, quando também a crise do sistema de dominação imperialista atingiu uma espécie de auge jamais imaginado, o que acarretou a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 e no triunfo da Revolução Russa em 1917. Mas isso não é verdade. Não estamos às vésperas de uma nova onda revolucionária mundial. O início do século 20 se caracterizou, por um lado, pela crise aguda do sistema (coisa que vemos hoje), mas por outro, pelo avanço irrefreável do movimento, da organização e da consciência proletária em todo o mundo. Foi a época de fortalecimento dos grandes partidos social-democratas europeus, germens do que seria o futuro movimento comunista internacional.

Nosso século, pelo menos até agora, não é o dos comoventes ascensos revolucionários nos quais milhões de homens e mulheres se lançam sem travas ao assalto revolucionário dos céus. É o tempo da crise do socialismo, da confusão da esquerda, da desmoralização da vanguarda, da perda (na maioria das vezes sem resistência) de direitos, do sofrimento psíquico e da fragilidade subjetiva dos militantes.

Mas a nós coube viver outro tempo. Parecemos estar em um limbo histórico, aquele “claro-escuro” de que falava Gramsci para se referir ao momento em que o velho já morreu, mas o novo ainda não nasceu – o instante em que despertam os monstros. Nosso século, pelo menos até agora, não é o dos comoventes ascensos revolucionários nos quais milhões de homens e mulheres se lançam sem travas ao assalto revolucionário dos céus. É o tempo da crise do socialismo, da confusão da esquerda, da desmoralização da vanguarda, da perda (na maioria das vezes sem resistência) de direitos, do sofrimento psíquico e da fragilidade subjetiva dos militantes. Tempos cínicos, de uma rotina aflitiva e de um retrocesso avassalador.

Ao invés das utopias, no horizonte se desenham as distopias. Hollywood está cheia delas. Quem orienta a nossa cultura não é Star Trek nem 2001, uma odisséia no espaço, mas Matrix, Walking Dead e 1984. O outro resultado da crise das utopias é o fortalecimento da nostalgia, ou da “retrotopia”, como definiu o filósofo polonês Zygmunt Bauman. Se não há nada de bom no futuro, vamos fazer renascer o passado: a grande nação, o povo escolhido, a família unicelular e patriarcal, a religião, a raça superior, o pai dos povos.

São essas as condições que toda uma geração de ativistas e lutadores socialistas enfrenta. É essa a realidade que a juventude radicalizada encontra quando começa a militar pela causa do socialismo. Claro que essa ordem de coisas incide de maneira degenerativa não apenas sobre os indivíduos, mas também sobre as organizações de esquerda, principalmente aquelas que se reivindicam parte da tradição revolucionária e anticapitalista. Como manter-se firme na luta em tais condições?

Como reagem os revolucionários?

Olhemos ao redor. A primeira, mais básica e mais comum reação é o abandono da luta. Alguns se mantém simpáticos à causa, eventualmente colaboram com as organizações nas quais militaram e até vão a protestos, mas já não se dispõem a ser parte ativa de uma corrente política. São as saídas individuais de todo o tipo: família, trabalho, carreira, interesses pessoais. Não se pode condenar. É preciso entender. Até certo ponto, é inevitável que o tempo e as provas do presente selecionem uma camada de militantes que serão revolucionários para a vida toda e descarte uma outra parte que abandonará a luta. Isso sempre aconteceu. O problema que enfrentamos é que essa segunda parte é cada vez maior e seu crescimento exponencial ameaça esvaziar de vez as organizações revolucionárias. Não se deixa de militar apenas por razões de fundo, históricas. Há também o simples cansaço e o regime insalubre de certas organizações. Mas em última instância, pode-se afirmar que essas pressões seriam muito menores se vivêssemos um outro tempo, um tempo de revoluções. O regime das organizações poderia ser muito ruim (como é hoje em geral), mas operaria em condições muito mais favoráveis, de íntima ligação entre as organizações e as massas em ascenso, exatamente como era no passado. Ao invés disso, temos uma crise estrutural do nosso tempo alimentando uma crise subjetiva. E o contrário: uma crise subjetiva que retroalimenta uma decadência geral. O resultado é a desmoralização e o abandono das fileiras da luta.

Uma outra reação é o giro esquerdista, sectário e ultimatista das organizações revolucionárias. Se a realidade que nos cerca é dura e cruel, criemos a nossa própria e vivamos nela! Assim, para nós, nada terá mudado. A classe trabalhadora segue sedenta de uma revolução, mas é “desviada”, “traída” pelas “direções”, pelos “reformistas” e “burocratas”. O inferno são os outros, como dizia Sartre. No mundo dessas organizações, não existem classes. Só os revolucionários (cercados em uma fortaleza sitiada, porém inexpurgável chamada “O Partido”) e seus inimigos. Não há correlação de forças (ou há, mas é sempre favorável) nem derrotas. O proletariado caminha sempre em linha reta rumo à vitória final. Trata-se de um tipo particular de reação psicológica à derrota histórica, uma espécie de negação, semelhante àquela que encontramos no luto freudiano: não houve o fim da URSS, não houve o neoliberalismo, não houve a reestruturação produtiva, não há fascismo. Em compensação, há reformistas. E eles estão por toda a parte!

A terceira reação é o abandono da própria estratégia da revolução, mesmo que em perspectiva histórica. Se está difícil chegar aonde queremos, mudemos não apenas o caminho, mas o próprio destino! É a adaptação aos aparatos do Estado, ao sindicalismo rasteiro, à democracia burguesa, à luta meramente parlamentar. Não nos enganemos: os reformistas de fato existem e são muito mais numerosos do que os revolucionários. E não poderia ser diferente. O fim da URSS caiu como uma bomba sobre inúmeras organizações que antes sustentavam uma estratégia revolucionária, mas que depois aderiram ao programa de reformas nos marcos do capitalismo. Se adaptaram à confortável “cadeira de couro”, como dizia o trotskista norte-americano James Cannon. Os reformistas não apenas existem, como dirigem importantes organizações políticas, estão à frente de governos, ministérios, prefeituras, ocupam cadeiras parlamentares e aplicam uma política de conciliação de classes que, ao invés de significar uma trincheira de defesa em tempos de retrocesso, pode levar a derrotas desmoralizantes.

A quarta reação é a permanência na luta, mas a negação das formas organizativas e estratégias características do período anterior: nega-se a forma partido; a classe trabalhadora não é mais o sujeito da transformação social; o socialismo não é mais o fim perseguido; as lutas específicas são encaradas como se fossem separadas do movimento geral das classes, da sociedade e do capitalismo. É a negação da universalidade do movimento proletário em benefício da particularidade de determinadas pautas, consideradas decisivas por certos sujeitos. É também uma reação de máximo individualismo. Para quê uma organização de revolucionários profissionais que façam propaganda, agitação e organização se eu posso ter meu próprio canal no Youtube e perfil no Instagram? Por que lutar por direitos universais que ninguém mais quer se posso lutar unicamente pela minha própria comunidade? Por que um programa anticapitalista para mudar o país e o mundo se tenho um programa específico da causa que eu considero a mais importante de todas? Não estarei melhor sozinho? Sem amarras? Sem a disciplina e o controle coletivo que caracterizam uma organização de tipo leninista?

Essas são algumas das reações – talvez não todas – que encontramos entre ativistas e organizações revolucionárias.

O que fazer em um tempo sem revolução?

Não é fácil responder a essa pergunta. É a primeira vez na história do capitalismo moderno que vivemos um período tão longo sem revoluções. É algo novo. Precisamos aprender a lidar. Mas é possível elaborar uma primeira resposta.

Não basta dizer que revoluções podem acontecer “a qualquer momento” e que portanto é preciso estar preparado. Isso é verdade, mas é uma verdade abstrata que não nos ajuda em nada. Já faz 50 anos que esperamos esse “a qualquer momento”. Então, é possível que o período que vivemos se consolide como uma uma longa transição para uma nova fase do capitalismo. Quão longa? Impossível dizer. Talvez longa o suficiente para que tenhamos que falar de gerações, e não de anos. Para qual fase? Também não sabemos. Muita coisa está transitando: o sistema mundial de Estados, o mercado mundial, as relações de trabalho, a tecnologia. O mundo que veremos daqui a algumas décadas pode ser – e provavelmente será – muito diferente do mundo como o conhecemos hoje. Talvez seja até irreconhecível.

Então, estamos nos engajando em uma obra cujo significado transcende a nossa própria existência, a nossa própria vida. “Ora, toda geração não faz mais do que entregar o mundo à geração seguinte. Isso é assim por definição”. É verdade. Mas agora talvez seja mais do que isso. Vivemos tempos sombrios e ninguém pode negar isso, mas as revoluções virão porque as contradições estão se agudizando. Em perspectiva histórica (não política, quer dizer, não imediata), as massas se levantarão porque acabaram com os direitos, a consciência e a organização coletiva, mas não aboliram as próprias classes sociais, e a transformação é uma característica inescapável da sociedade de classes. Aliás, é uma característica da própria matéria, e a sociedade nada mais é do que matéria altamente organizada. A história segue. Visto hoje, Fukuyama não passa de uma piada de mau gosto. Os anos 1990 foram os anos do otimismo sem esperança. Hoje, não temos razão para otimismo, o que significa que estamos livres para ter esperança. E isso é bom porque a esperança é uma força muito mais profunda e poderosa do que o otimismo.

Em que consiste, portanto, a nossa tarefa histórica? Em transmitir às novas gerações um instrumento, uma tradição, uma cultura política. A palavra “cultura”, aliás, é muito importante aqui. Vem do latim “culturae”, que significa “cultivar”. Cultura é aquilo que precisa ser cultivado, preservado, lembrado. É o triunfo da memória sobre o esquecimento.

Mas não basta lembrar enquanto se espera o tempo passar, nem vale entregar ao futuro qualquer coisa. Todo agricultor sabe que cultivo é cuidado, método, exatidão. É preciso entregar às gerações que virão uma organização específica, uma tradição particular, um programa bem definido, uma visão de mundo que não se confunde com qualquer outra: a organização de tipo leninista, o marxismo como teoria, a revolução socialista como estratégia

Mas não basta lembrar enquanto se espera o tempo passar, nem vale entregar ao futuro qualquer coisa. Todo agricultor sabe que cultivo é cuidado, método, exatidão. É preciso entregar às gerações que virão uma organização específica, uma tradição particular, um programa bem definido, uma visão de mundo que não se confunde com qualquer outra: a organização de tipo leninista, o marxismo como teoria, a revolução socialista como estratégia – para que nossos descendentes não precisem recomeçar do zero, não tenham que reinventar a roda e reaprender tudo o que foi inventado e descoberto por seus antepassados. Tal é a obra com que todos nós, revolucionários sem revolução, somos convocados a contribuir.

Em 1835, quando tinha 17 anos, Marx escreveu uma redação para o exame final do ginásio. Nela, o futuro filósofo e então candidato a poeta romântico dissertava sobre os dilemas de um jovem diante da escolha de sua profissão e dizia: “Se escolhermos uma profissão onde possamos trabalhar pelo bem da humanidade, não nos curvaremos perante suas dificuldades porque será um sacrifício em nome de todos. Não sentiremos uma alegria limitada, egoísta e pobre. Ao contrário, nossa felicidade pertencerá a milhões. Nossos atos terão uma existência silenciosa, porém eterna, e sobre nossas cinzas os mais nobres homens derramarão lágrimas sinceras”. É pouco provável que qualquer um de nós tenha uma vida epopeica como Marx, Trótski ou Rosa Luxemburgo. Somos outra coisa, mais modesta, mas muito importante. Somos revolucionários profissionais, um pouco estropiados pelas duras condições em que nos coube viver e militar, mas conscientes das necessidades impostas por nosso tempo histórico. Somos o vínculo entre gerações, entre eras revolucionárias, um interregno, uma pausa que não pedimos nem nunca desejamos, mas que se impôs. À futura distância histórica, nossa longa angústia aparecerá ao pesquisador social como um átimo, um suspiro, uma interrupção totalmente desprezível na corrente do tempo. E ele rirá de nossa ansiedade infantil. Não estava certo Marx? Não nos elevamos sobre o reino animal no dia em que, resistindo ao impulso imediato do ataque contra o animal feroz, decidimos parar, planejar, produzir armas e preparar melhor a caçada? Viver fora de seu próprio tempo, em função das gerações futuras – não é isso a essência do que é ser (verbo) humano?