Ana Lúcia Marchiori*, de São Paulo (SP)
Após o golpe parlamentar de 2016, os grandes empresários tiveram oportunidade para impor uma agenda que retira direitos históricos dos trabalhadores. Indiferentes a qualquer legitimidade democrática, avançaram para a implementação de uma receita que iniciou com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 55), conhecida como PEC do fim do mundo, que congelou os investimentos em saúde e educação e todas as áreas sociais por vinte anos.
Mesmo diante da sua inconstitucionalidade, estudo produzido pelo próprio Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal aponta que a proposta fere diversos preceitos constitucionais, o que demonstra a quebra do pacto democrático que se introduziu com a PEC 55 e seguiu adiante com a contrarreforma trabalhista.
O parecer enfatiza que “expressamente estabelece o art. 60, § 4º, da CF: Art. 60, no seu § 4º:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
…IV – os direitos e garantias individuais”
A Reforma Trabalhista – Lei 13.467/2017, em vigor desde 11/11/2017, alterou a Lei 6.019/74 e passou a regulamentar a prestação de serviços a terceiros pelas empresas. Ou seja, a Reforma Trabalhista sistematizou a terceirização no nosso país.
O texto da contrarreforma foi severamente criticado por vários juristas e em especial por entidades sindicais, pelo movimento feminista e o movimento negro organizados. Segundo Claudio Dedecca, professor de Economia Social e do Trabalho da Unicamp, em artigo publicado no jornal O Globo, a contrarreforma trabalhista é uma “colcha de retalhos produzida pelo Congresso reconhece explicitamente como objetivo relevante a redução do custo do trabalho, com a flexibilização do contrato de trabalho e sua respectiva remuneração. Ela desconhece as implicações quanto à geração de empregos, pois se sustentou exclusivamente em manifestações discursivas, não tendo sido subsidiada por um estudo próprio sobre o tema”.
O texto, repleto de inconsistências e erros gramaticais, adotou em 14/11/2017 uma Medida Provisória, de n. 808, com validade de 60 dias prorrogável por igual tempo (artigo 62 da CF). A MP 808, a “reforma da reforma trabalhista”, modificou os seguintes pontos:
• jornada de trabalho 12 x 36;
• dano extrapatrimonial (moral);
• empregada gestante e lactante (condições insalubres);
• autônomo exclusivo;
• trabalho intermitente;
• incidência de encargos trabalhista e previdenciário;
• cobrança e distribuição da gorjeta;
• representação em local de trabalho;
• negociado sobre o legislado no enquadramento do grau de insalubridade; e
• arrecadação/contribuição previdenciária
A Medida Provisória 808/17, que alterou pontos da Reforma Trabalhista, configurada na Lei 13.467/17, recebeu 967 (novecentos e sessenta e sete) emendas na comissão mista, cujo colegiado aguarda instalação com a eleição da mesa diretora dos trabalhos: 651 deputados apresentaram alterações à medida provisória e 316 senadores propuseram mudanças no texto.
Uma obra totalmente irregular, começou com uma contrarreforma, foi obrigado a fazer a reforma da reforma e ainda foram apontadas 967 (novecentos e sessenta e sete) necessidades de reparos.
Como até o momento não foi sequer instalada a comissão para votação das 967 emendas e no dia 23 de abril terminou o prazo de validade da MP 808, a reforma da reforma desaba, junto com as 85 (oitenta e cinco) modificações na Lei nº 13.467/17. Um tema que cai com a MP 808 é o afastamento do trabalho de local insalubre da gestante e lactante e as mulheres. Como sempre, somos as mais atingidas.
PRIORIDADES DO CONGRESSO
O Congresso Nacional deveria votar 22 Medidas Provisórias a partir de fevereiro de 2018, destas 12 ainda aguardam para instalação de comissões mistas, entre elas esta a MP 808/2017, a MP 814/2017 que trata da privatização da Eletrobrás; a MP 813/2017 que permite o saque do PIS/Pasep aos 60 anos; MP815/2017 que autoriza repasse para o Fundo de Participação dos Municípios aplicarem em saúde e educação.
No entanto, os senhores e senhoras deputados e deputadas, senadores e senadoras se apressaram em instalar as comissões mistas da MP 805/2017, que adia reajustes salariais e aumenta a contribuição previdenciária de servidores federais de 11% para 14%; da MP 798/2017 e da MP 804/2017, que tratam do prazo de adesão para o Refis. E já há duas MPs em análise pelas comissões mistas que podem ir a votação nos plenários da Câmara e Senado Federal: a MP 800/2017, que aumenta o prazo para as concessionárias de rodovias fazerem os investimentos, e a MP 801/2017, que dispensa os estados de exigências para renegociar suas dívidas com a União.
Analisando as reformas ou, mais corretamente, as contrarreformas, percebe-se que as propostas não têm o condão de reformar nada, mas sim destruir as bases do estado democrático instituído no processo de redemocratização pós-ditadura civil, militar e empresarial de 1964 a 1985, traduzida nos direitos sociais constantes na Constituição Federal de 1988.
As contrarreformas são uma face de um projeto ideológico de transformação radical da sociedade brasileira, no plano econômico, social e político.
Uma política de superexploração capitalista, com rebaixamento dos salários, destruição de direitos do trabalho, privatização de empresas estratégicas, destruição dos serviços públicos e do Estado.
O que estamos vendo é o caos nas contas públicas, os estados não têm dinheiro para pagamento de salário dos servidores públicos, a segurança pública vive se não a maior crise sem dúvida a pior de muitos anos.
A imposição deste projeto tem implicado em um conflito com o regime democrático e constitucional, conflito que se tem tornado cada vez mais evidente ao longo do Governo Temer, que se necessário, usa do poder da força como foi o Decreto de 24 de maio de 2017, autorizando o emprego das Forças Armadas para garantia da Lei e da Ordem contra os protestos no Distrito Federal.
Ou ainda o Decreto 9288, de 16 de fevereiro de 2018, que decreta a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018, tendo como interventor o exército. O que demonstra que estão em risco mais que os direitos trabalhistas, estão em risco garantias e as liberdades democráticas que são essenciais inclusive para a organização da classe trabalhadora.
Por isto, não queremos só alertar para o perigo do fim da validade da Medida Provisória 808, denominada no meio jurídico como reforma da reforma trabalhista.
Para entender o impacto que isto significa e já fazendo uma curta avaliação deste breve período de implantação da contrarreforma trabalhista, segundo dados do Superior Tribunal do Trabalho – TST, comparando o mês de dezembro de 2017 com dezembro de 2016, as ações trabalhistas caíram pela metade.
Só na cidade de São Paulo, maior centro industrial do país, a quantidade de trabalhadores que deixaram de buscar seus direitos no judiciário caiu 70%.
Considerando que a Justiça do Trabalho é uma “justiça” dos desempregados, pois a ampla maioria daqueles que se socorriam na justiça, faziam após a dispensa do trabalho, quando teriam até dois anos para reclamar direitos. Podemos dizer que os desvalidos de toda forma de sobrevivência estão sendo impedidos de clamar por justiça.
O juiz e colunista do Esquerda Online – professor Jorge Luiz Souto Maior, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da USP, em vários artigos publicados, vem denunciando o golpe contra os trabalhadores. De forma sempre brilhante, Souto Maior estabeleceu a relação entre o “governo que chegou ao poder apenas porque firmou o compromisso de satisfazer os interesses do grande capital e que a cada instante de instabilidade provocada pela Lava Jato buscou justificativa para se manter no poder reafirmando seu compromisso em realizar as ditas “reformas impopulares”, reformas trabalhista e previdenciária e o congelamento de gastos sociais (“PEC do fim do mundo”).”.
Concluindo que “a “reforma” trabalhista não foi nada além do que o aproveitamento de uma oportunidade, dada pelas crises política e econômica, para possibilitar ao poder econômico aumentar sua taxa de lucro por meio de uma maior exploração do trabalho sem contrapartida social.”
RESISTÊNCIA
A resistência tem sido intensa, através de entidades representativas dos trabalhadores ou instituições como o Ministério Público do Trabalho que organizou um Fórum de caráter nacional, com a participação de todas as centrais, Anamatra, Abrat, que foi o embrião do dia Nacional de Paralisação organizado pelas centrais sindicais.
Como também as greves, mesmos isoladas para garantir a não aplicação da contrarreforma, como foi o caso de Chery do Brasil, trabalhadores em uma greve heroica para manter os direitos já conquistados em acordos coletivos anteriores.
Resistir é preciso, e diante de uma conjuntura desfavorável para classe trabalhadora, muitas vezes resistir é o que resta a fazer.
A CLASSE TRABALHADORA E A LUTA CONTRA A REFORMA
Conforme apontou o ilustre magistrado Souto Maior, o interesse com a contrarreforma trabalhista é atender o grande capital. A estrutura do pensamento de Evgueni Bronislavovich Pachukanis, que parte da mesma estrutura crítica de Marx sobre a economia política, qualquer norma de direito é a forma da relação jurídica socialmente dominante das relações sociais capitalistas e através da relação de troca, torna o próprio trabalho humano em mercadoria.
Afastando pela negativa a possibilidade de transformação social através do direito, nesta esteira a resistência é muito importante, mas, não podemos perder de vista o que Pachukanis estabeleceu como um critério praticamente definitivo de apreciação do direito segundo os pressupostos do marxismo.
Vinculando que o direito e o modo de produção capitalista não estão limitados à prevalência dos interesses da classe dominante nos comandos jurídicos, como supunha a crítica do direito pré-pachukaniana, mas se liga ao próprio fenômeno jurídico enquanto tal. Como se pudéssemos ter um interesse de classe dissociado do conteúdo jurídico.
Há uma miríade teórica sobre o Direito, desde juristas importantes como é o caso do próprio Jorge Souto Maior já citado e até setores da esquerda marxista, que não coadunam com a teoria marxista do Direito a partir da forma de uma específica relação social: a relação de troca de mercadorias de Pachukanis.
O principal marxista que polemizou com Pachukanis foi Piotr Stuchka, autoridade governamental máxima sob o sistema soviético em estados controlados pelos bolcheviques eleito por Lenin como Comissionário do Povo para a Justiça.
Um importante documento histórico que norteia a reflexão teórica sobre este tema é a Carta de Engels em 1890 para Josef Bloch, assinalando que: “a base econômica – material condiciona, em geral, o Direito, enquanto fenômeno superestrutural, é mister destacar-se, porém, que o Direito, por sua vez, também exerce seu efeito sobre a base histórico-real, podendo modificá-la, ainda que apenas dentro de certos limites.”
Da onde se conclui que o resultado da luta de classes, constituições, teorias, religião, determinam a sua forma. Compartilhamos o pensamento de Stuchka na analise da contrarreforma trabalhista, em que talvez devêssemos destacar mais o fato de o interesse da classe dominante ser o conteúdo fundamental, a característica essencial de todo o direito, ou do conteúdo do texto da lei 13.467/2017.
Por isto mesmo, partindo de uma base teórica diferente de alguns juristas e de outros setores da esquerda, concluímos que não devemos menosprezar a resistência no âmbito jurídico, mas seguindo a teoria marxista de Stutchka em que “O Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado ( o Estado)”, só a classe trabalhadora em luta poderá fazer frente no combate a contrarreforma trabalhista.
Embora haja uma farta argumentação jurídica que a contrarreforma é inaplicável pelos seus próprios fundamentos, não será apenas via luta institucional do meio jurídico que vamos alcançar a vitória, tanto é assim que apesar de até o momento, não terem os defensores da contrarreforma, conseguido impor decisões da aplicação da Lei 13.467/2017, o que na prática tem prevalecido é o efeito psicológico, o efeito neutralizador, o mesmo efeito torturante de calar, com a diminuição drástica das ações trabalhistas.
A contrarreforma praticamente está impedindo o trabalhador de buscar a justiça para reivindicar seus direitos, sendo que a maioria das ações ajuizadas versavam sobre verbas rescisórias, ou seja, direito que não há controvérsia, pois, a lei estabelece como direito dos trabalhadores, entre eles o direito de receber pelo trabalho realizado.
A Lei 13.467/2017 dificulta o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho, já que quem ganha mais que R$ 880 não tem direito à gratuidade. E, não concedida a gratuidade, poderá haver além de despesas com perícia, também a condenação do reclamante nos honorários de sucumbência em favor da parte vencedora, cujo valor será fixado pelo juiz, considerados o tempo de trabalho e o grau de complexidade da demanda.
Passou a ter direito ao acesso a justiça, quem pode pagar. A Lei 13.467/2017 viola o direito constitucional do trabalhador: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. É preciso lutar para ter direito e direito de lutar.
* Ana Lucia Marchiori é advogada de presos e perseguidos políticos, Diretora do Sindicato dos Advogados de São Paulo e Membro do CASC- Comitê de Assessoramento da Sociedade Civil à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
FOTO: Trabalhadora grávida, em posto de gasolina. Crédito: Sindicato dos Frentistas de Ribeirão Preto e Região
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