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Moïse: A precarização do trabalho também mata!

Foto de Moise. Ele usa uma camisa preta com detalhes brancos, e um boné. É um jovem negro. Está sorrindo e com as duas mãos apontando para cima, com os indicadores.

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

Os protestos em razão do recente assassinato do trabalhador congolês Moise Mugenyi Kabagambe, em um Quiosque da orla da região mais elitizada da cidade do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca, nos remete não somente para a crueldade, racismo, xenofobia deste triste episódio, mas também ao trabalho precário e a superexploração de mão de obra negra no Brasil, visto que, segundo se tem notícia, testemunhos e filmagens, a discussão que teve como desfecho sua morte começou a partir de sua cobrança ao empregador de remuneração de dois dias de trabalho. Trabalho intermitente? Informal? Precarizado, sem dúvida.

E este terrível fato, de cunho intrinsecamente racista e xenófobo, se entrelaça também com a discussão, atualmente em pauta, sobre revisão ou revogação da reforma trabalhista de 2017, pois foi um efetivo marco de redução de direitos e, pior ainda, a criação de mecanismos legais para se aniquilar o que o Direito do Trabalho possui de protetivo e necessário á garantia do trabalho digno, em um país no qual mais da metade da mão de obra, mesmo antes da referida reforma, já estava fora dos parâmetros legais da CLT e da própria Constituição Federal, inclusive nos trabalhos voltados ao comércio e turismo, como o que desempenhava o congolês covardemente assassinado.

Antes, porém, de adentrar no tema principal deste texto, cumpre rememorar, ainda que em breves linhas, que o Direito do Trabalho no Brasil, no passado longínquo da década de 60, já vinha sendo objeto de um grande retrocesso, quando em 1966, dois anos após o golpe militar a Ditadura extinguiu, na prática, o regime de estabilidade decenal consolidado e, em seu lugar, introduziu o regime de FGTS, dito “alternativo”, o que sabidamente trouxe para as relações trabalhistas um novo marco jurídico, baseado na imposição da “opção” pelo novo regime, quando da admissão do empregado, como se este pudesse realmente escolher livremente tal alternativa.

E assim, a estabilidade no emprego foi gradativamente acabando, como a suprimiram os militares, através de seus decretos e “leis” e igualmente desejaram os patrões, doravante satisfeitos, pois as empresas passaram somente a admitir aquele que fizesse a “escolha”, podendo ainda faze-la retroativa, negociar parte do período anterior, enfim, aceitasse ficar sem a garantia maior de seu emprego.

Nesta breve retrospectiva, outro retrocesso foi a legalização da terceirização no serviço público, que cresceu no país na década de 60, quando a administração pública ainda fazia uso, em grande escala, da CLT para contratações, e, também após o golpe de 64, tivemos a edição do Decreto-lei 200/1967, que com seu discurso de planejamento, colocou em prática uma reforma trabalhista que está na raiz do crescimento da terceirização, começando pelas chamadas “ atividades-meio”, como limpeza, segurança, manutenção, etc, o que acabou servindo de grande fonte de inspiração (e redução de custos) para todas as atividades econômicas, especialmente em alguns ramos da indústria, comércio, bancos, até mesmo no judiciário, guardadas as proporções, este fenômeno ganhou força e peso. E teve também uma lei de 1970 (n. 5.465) que ainda especificava as atividades que preferencialmente deveriam ser terceirizadas, de maneira que a terceirização e suas mazelas vem de longe.

Passados mais de 50 anos do golpe militar de 64, e apesar da Constituição Federal de 1988 haver garantido uma importante destaque para os direitos trabalhistas, amargamos, contudo, um crescimento desenfreado da terceirização e aviltamento das condições de trabalho na década de 90 e seguintes, sendo que, recentemente, o ano de 2017 marcou no Brasil o advento de mais uma reforma trabalhista, a mais profunda, que veio também na esteira de um golpe, não tipicamente militar, mas desta vez o golpe parlamentar- judicial de 2016, que, (com o apoio também da cúpula militar), resultou na deposição da Presidente Dilma Rousseff e, como consequência, a aprovação pelo Congresso Nacional e sanção do Presidente da República da Lei 13.467/2017, que alterou cerca de 100 artigos da CLT mais de 200 dispositivos, aproximadamente, que mexeram em temas que vão de implantação de banco de horas á homologação de rescisões fora dos sindicatos de trabalhadores, além de no mesmo ano ser aprovada uma nova legislação sobre terceirização, a Lei 13.429/2017,que revirou novamente este assunto e legalizou este tipo contratação que, como acima rememorei, vinha há muito tempo sendo utilizado tanto pelo setor público, através de legislação trabalhista do regime militar, e também pelo setor privado, embora não houvesse até agora uma positivação de tão largo alcance, que, na prática, legalizou tudo aquilo que combatíamos nos Tribunais.

Pois bem, afora centenas de detalhes que não poderei me ocupar neste texto, entendo que o principal da reforma trabalhista está colocado em quatro principais mudanças, em essência, quais sejam: 1- A nova lei de terceirização; 2- A previsão do negociado sobre o legislado; 3- O fim do ultratividade das normas coletivas; 4- a flexibilização de jornadas de trabalho. Os demais itens, ainda que cada dispositivo tenha o seu valor e reflexo, são para mim decorrentes e consequências deste núcleo de mudanças principais. Dito de outra forma, entendo que mudanças como, por exemplo, a previsão de acordo individual para banco de horas até 6 meses (Art. 59, parag. 5); a compensação de jornada no mesmo mês, via acordo individual (art. 59, parag. 6); possibilidade de acordo individual para tratativa de trabalho de 12 x 36 ( art. 59-A); horário de almoço de apenas 30 minutos; trabalho intermitente; homologação de rescisões fora dos sindicatos e tantas outras mudanças na CLT, são partes de um todo, cuja “coluna vertebral” constitui, centralmente, a introdução da previsão do negociado sobre o legislado, o que, em consequência, afasta o conceito de proteção ao empregado, um dos princípios fundantes, historicamente, do Direito do Trabalho nacional e internacional, passando a prevalecer simplesmente o que for acordado, dentro de uma relação que, bem sabemos, não é (e nunca foi!)de igualdade de condições entre patrão e empregado, respectivamente contratante e contratado, ou a suposta liberdade de negociação entre desiguais economicamente.

A verdade é que, sem a previsão do negociado sobre o legislado, todos estes dispositivos que foram introduzidos favoravelmente ao patronato perdem força, ficam vulneráveis ante os princípios de proteção ao hipossuficiente do Direito do Trabalho, tendo a legislação acima do acordado, bem como o princípio da aplicação da norma mais favorável, e, por este motivo, esta “reforma” foi e continua sendo fundamental e indispensável, do ponto de vista dos empregadores. O nível de negociação individual, em prejuízo dos empregados, que se atingiu por meio da Lei 13.467/2017, só pode ser viabilizado e sustentado pela previsão da prevalência do negociado. O mesmo digo em relação a nova lei de terceirização, pois, a partir desta reforma, a empresa que terceiriza adquiriu inegável força legal e autoridade, deixando para traz a importante diferenciação entre atividade finalística e de meio, cuja jurisprudência já havia consolidado o entendimento de proibir esta prática nas atividades principais das empresas, conforme havia assentado a Súmula 331, item III, do TST. Em verdade, a nova lei forneceu um verdadeiro estatuto e blindagem a quem terceiriza no Brasil, que, mesmo sem legislação própria, já vinha cometendo os maiores abusos, e, doravante, sente-se mais a vontade para superexplorar a mão de obra, terceirizar serviços de divisões inteiras de industrias, pagando 1/ 4 da mão de obra que antes ativava-se naquela área produtiva.

Assim, caminhando já para conclusão deste texto – que é também um protesto contra o assassinato de Moise, devemos lutar pela revogação da reforma trabalhista e 2017,de maneira a, pelo menos, extirparmos a previsão do negociado sobre o legislado, assim como toda a permissividade da nova referida nova de terceirização, a fim de que possamos avançar nos direitos de proteção aos trabalhadores, em consonância, com o preceito de valorização social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da Constituição da República), o qual, dentro do sistema jurídico preconizado pela OIT, não pode ser tratado como mercadoria (Declaração de Filadélfia, da Organização Internacional do Trabalho, item I, a), além dos próprios postulados da Declaração Universal do Direito Humanos.

Moise, cujos ancestrais morriam sob tortura que lhes eram impostas pelos colonizadores belgas, acabou tendo o mesmo destino em terras brasileiras, onde o valor da vida humana e do trabalho estão sendo cada vez mais vilipendiados, sob a politica do atual governo bolsonarista de extrema-direita, motivo pelo qual, devemos fazer dos protestos contra o seu assassinato, além da defesa dos direitos humanos, mais um motivo para revogarmos a reforma trabalhista de 2017, a mesma que precarizou ainda mais o trabalho pelo qual morreu por cobrar o pagamento dois dias de salário.