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Carnaval de Salvador 2018 e masculinidade: olhar a ‘popa da bunda’, mas sem assédio

Por: Henrique Oliveira, de Salvador, BA

O Carnaval de Salvador se aproxima e, como sabemos, é uma das maiores festas populares do mundo, chegando a reunir milhares de pessoas nas ruas da cidade, com blocos e fantasias durante sete dias. Em todo o Carnaval, existe uma disputa em torno de qual será a música símbolo, a mais tocada, o hit carnavalesco do ano. E, para esse ano de 2018, a música que vem sendo apontada como a ‘música do Carnaval’, é “Elas Gostam” (Popa da Bunda) do coletivo Attoxxa, que foi regravada juntamente com o cantor Márcio Victor da banda de pagode Psirico. A música ‘Popa da bunda’ fala sobre mulheres que usam o short curto e bem justo no corpo, que são vistas como vulgares e sofrem demais julgamentos morais de cunho machista. Mas que elas gostam de usar, e que o cara não quer nem saber, porque ele só quer olhar a popa da bunda.

Campanha por um Carnaval sem Assédio, na Bahia

Numa matéria no jornal Correio da Bahia, um dos integrantes do grupo Attoxxa disse que a música foi criada como uma resposta aos homens que estavam invadindo os espaços das mulheres no show, que estavam ‘metendo a mão’, quer dizer, assediando as mulheres fisicamente, e que as mulheres iriam usar as roupas que elas quisessem, um posicionamento fundamental do grupo para a conscientização do público masculino. A banda ainda diz se preocupar em suas letras em acolher o público feminino, LGBT e negro, como um posicionamento político de combate as discriminações.

A música ‘Popa da bunda’ é dotada de um conteúdo bem sensual, e infelizmente na nossa sociedade, que ainda é dominada pelos valores machistas, a sensualidade, a liberdade sexual feminina são lidas como brecha para que os homens possam assediá-las fisicamente. Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2016, divulgou que 30% dos brasileiros concordam com a culpabilização da mulher que foi estuprada por causa, por exemplo, das roupas com qual a mesma estava vestida.

Aqui nesse texto pretendo dialogar sobre a masculinidade e a relação de gênero, a partir da música ‘Popa da bunda’, no sentido de causar uma reflexão sobre as práticas e a responsabilização social de nós homens pela violência contra as mulheres.

No Carnaval de 2016, um levantamento feito pelo Observatório da Discriminação Racial, LGBT, e Violência Contra a Mulher contabilizou que, somente nos primeiros cinco dias da festa, entre quarta-feira e domingo, tinham sido registradas 461 denúncias feitas por mulheres, envolvendo assédios, lesões corporais e até estupros. As denúncias feitas por mulheres lideraram o ranking do monitoramento feito pelo observatório, superando os caso de vulnerabilidade social e discriminação contra LGBT.

Em 2015, um homem foi condenado a sete anos de prisão por estupro, após uma denúncia de beijo forçado no Carnaval de Salvador que ocorreu em 2008. Segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público, o homem foi preso ‘após agarrar a mulher pelo pescoço, dando uma gravata, e após imobilizá-la, beijou a sua boca várias vezes sem consentimento’.

E por causa dessa condenação, o Bahia Meio Dia, jornal baiano da Rede Bahia, afiliada a Rede Globo, chegou ao cúmulo de realizar uma enquete, perguntando aos telespectadores se o ‘Beijo forçado no Carnaval deve ser proibido’. Mas, desde quando beijo forçado no Carnaval ou em outro lugar qualquer era permitido até então, para que ele passasse a ser proibido?

E falar de assédio no Carnaval e violência contra a mulher é necessariamente falar sobre a formação da masculinidade, sobre os valores que formam e que informam o que é ser homem na nossa sociedade.

Pois, segundo o artigo Masculinidade e violência: formação da identidade masculina e compreensão da violência praticada pelo homem, desde criança, nós do sexo masculino já passamos por um processo de interiorização da masculinidade, que implica na negação de sentimentos e afetos considerados femininos. E esses sentimentos reprimidos são canalizados na forma de ira contra si mesmo, as mulheres e outros homens.

A violência contra a mulher é resultado direto das relações de poder hierarquizadas entre os sexos. É o mecanismo através do qual também o homem se afirma quanto tal, diferente da mulher, ou melhor, confirma a sua masculinidade em oposição à feminilidade. O modelo de masculinidade hegemônica impõe restrições emocionais e expressivas aos homens que a exercem em regime cotidiano a vigilância de seus sentimentos, bloqueando canais de expressão. As frustrações são canalizadas em ações violentas contra as mulheres, e outros homens ou em comportamentos autodestrutivo, como uso abusivo de álcool e outras drogas, ou suicídio.

O sentido da violência de gênero praticado pelo homem é a reafirmação da sua preponderância na sociedade: demarcando a sua dominação sobre as mulheres, sua superioridade sobre outros homens e virilidade.

Existem alguns motivos e causadores da violência masculina, entre eles o Prestígio, que envolve uma série de atitudes como demonstrações de força, de potência sexual e intransigência moral. O prestígio masculino compõe uma personalidade autoritária e predisposta à violência. O homem que busca possuir prestígio deve exercer cotidianamente a sua autoridade, não admitindo desvios da sua vontade, em que a aceitação e tolerância são vistas como sinal de fraqueza.

A Preponderância Sexual é outro valor cultivado pela masculinidade que levam os homens a serem violentos, que se baseia numa noção de dominação, de poder, de subordinação, que coloca em evidência os atentados sexuais contra a mulher. A violência gerada pela Preponderância Sexual pode ser o estupro, os assédios, e se relacionam com elementos como a pornografia e a prostituição.

Campanha Não é Não! se espalha pelos principais Carnavais do País

A violência sexual é parte da dominação de gênero, do homem sobre a mulher. E para a masculinidade hegemônica, o homem deve ter a seu dispor, como um reflexo do seu poder as mulheres, que além de subordina las, deve realizar diversas formas de controle da sexualidade. Em 2016 o Brasil registrou 12 assassinatos e 135 estupros por dia.

E a Preponderância Sexual é o fator chave para entendermos os assédios e demais violências sexuais e físicas contra as mulheres causadas pelos homens no Carnaval. No Carnaval de 2016, a nutricionista Ludmylla Souza foi agredida por dois homens, que saíram de um bloco no circuito Barra – Ondina, depois que rejeitou um assédio. Segundo Ludmylla, ela estava passando batom, quando dois homens que saíram do bloco ‘Eu Vou’ meteram a mão e a borraram, depois ficou agarrando a sua irmã pela cintura. Nesse momento, ela resolveu intervir pedindo para ele sair. O homem ainda disse que ela era ignorante, e que se não soubesse brincar ficasse em casa. Foi empurrada em cima de uma caixa de isopor em após levantar, o outro homem jogou um copo de acrílico no seu rosto. Ludmylla levou oito pontos na sobrancelha e chegou a desmaiar no posto de atendimento por ter perdido sangue.

A Ambev teve que trocar uma peça publicitária da Skol para o Carnaval de 2015, chamada ‘Viva Redondo’, após a reclamação de muitos internautas sobre um cartaz que dizia ‘deixei o não em casa’. Os internautas disseram que a campanha era uma apologia ao estupro e a violência contra a mulher, pois tinha um claro viés de permissividade durante os festejos, o que poderia resultar em assédios.

No artigo Masculinidade e Violência no Brasil: Contribuições para a reflexão no campo da saúde é argumentado que a identidade masculina viril e suas características têm contribuído para o aumento da criminalidade e vitimização envolvendo a população jovem masculina.

E para embasar esse argumento, foram utilizados dados de mortalidades por causas externas e de mortalidades por agressões no Brasil, mais precisamente nas capitais, entre os anos de 1991 e 2000. Nesse período, aconteceram 1,118,651 mortes por causas externas, das quais 926,616, 82% delas as vítimas foram homens. Na faixa etária de 15 a 19 anos, a mortalidade dos homens por causa externa é 6,3 vezes maior, se comparada com a de mulheres, e na faixa etária dos 20 a 24 anos, essa taxa é 10 vezes maior.

Os dados do SUS do ano 2000 demonstraram que o Brasil teve 34.132 internações hospitalares por agressão, correspondendo a 54% de todas as hospitalizações por causas externas. A maioria das internações foi de pessoas jovens e do sexo masculino. E as principais causas de agressão que levaram a internação foram armas de fogo 33%, objeto cortante e perfurante 26% e força física 14%.

As duas principais causas externas de mortalidade masculina são homicídios e acidente de carro. E segundo o artigo, essas duas principais causas estão diretamente ligadas aos grandes símbolos da masculinidade no mundo atual, armas de fogo e carros, que exercem uma forte atração sobre os jovens. Os carros simbolizam o poder de locomoção, velocidade, liberdade e status social, signos de sucesso e sedução. As armas têm o poder de submeter o outro a seus desejos e interesses, o poder de decidir sobre a vida e a morte. Esses objetos são introduzidos desde cedo na vida do menino, na forma de brinquedo e passam a fazer parte do universo masculino.

A masculinidade hegemônica, além de ser um instrumento de dominação sobre as mulheres, também é um dispositivo que expõe nós homens a violência.

No Carnaval de 2017, a Secretaria Estadual de Política para as Mulheres (SPM) colocou um trio sem cordas chamado ‘Respeita as minas’, puxado pelas cantoras Larissa Luz, MC Carol e Tássia Reis, com a intenção de levar para o festejo a combate ao Machismo e a violência de gênero. Nesse ano de 2018, o trio ‘Respeita as minas’ terá como atrações as cantoras Larissa Luz, Pitty e Karina Buhr.

E não podemos nos esquecer que, infelizmente, Salvador é a cidade mais violenta para as mulheres na região Nordeste, liderando os números de violência física, emocional e sexual. E enfatizo que depois que uma mulher diz não, qualquer tipo de atitude masculina se torna um assédio. Tocar no corpo feminino, beijar, abraçar, seja qual gesto for nesse Carnaval, só deve ser feito após permissão, o consentimento da mulher. Nós até podemos olhar a popa da bunda, mas sem assédio!

*Henrique Oliveira é graduado em História, mestrando em História Social pela UFBA, colaborador da Revista Rever e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.

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