Pular para o conteúdo
CULTURA

Franck Gaudichaud, Chile 1970-1973, Mil Dias que Abalaram o Mundo

Thomas Posado, tradução de Waldo Mermelstein

A curta experiência do governo de Unidade Popular, coalizão de esquerda que governou o Chile sob a liderança de Salvador Allende de 1970 a 1973, é um episódio importante da história latino-americana. Encerra uma longa década de múltiplas mobilizações sociais e políticas progressistas e abre um período de ditaduras militares que combinam terrorismo de Estado e neoliberalismo. Este livro de Franck Gaudichaud detalha a mobilização pela base, ou seja, na escala das ações coletivas em empresas ou bairros operários e não em instituições, dentro desse processo político, para melhor compreendê-lo. O objetivo limita-se apenas ao governo da Unidade Popular e à ação coletiva de seus apoiadores; as ações da oposição, como as da ditadura de Pinochet, que sucedeu à Unidade Popular, não se enquadram no âmbito desta obra. A abordagem do autor combina as ferramentas da pesquisa histórica e o método sociológico da investigação oral para reconstituir as contradições da Unidade Popular do ponto de vista da luta de classes, rompendo com as abordagens institucionalistas tradicionais.

Este livro, baseado em uma tese de doutorado em ciência política, começa com uma introdução acadêmica que estabelece o quadro epistemológico. O contexto é então descrito através da situação da classe trabalhadora, das orientações dos diferentes componentes da esquerda social e política chilena e do programa da Unidade Popular. O autor descreve mais particularmente os vários instrumentos de auto-organização que as classes populares criam: os Comandos Comunais nos bairros operários, mas especialmente os Cordões Industriais nas empresas, que em seu auge reuniam entre 20.000 e 30.000 trabalhadores na capital, Santiago, e entre 40.000 e 60.000 em todo o país. A maioria das manifestações ocorre por iniciativa desses organismos. A auto-organização das classes dominadas foi catalisada pela resistência às ofensivas da oposição de direita, como a greve dos caminhoneiros de outubro de 1972. Nessa fase de radicalização foi quando o maior número de pessoas participou nos coletivos de auto-organização.

O autor não retrata, no entanto, uma visão idealizada dos cordões industriais. Longe de descrever “sovietes” à chilena, Franck Gaudichaud demonstra, com investigações documentadas, que eles atuam apenas em conjunturas específicas e defensivas. Os cordões industriais são eleitos por uma forma de sistema misto, entre a democracia direta que reivindicam e indicações de membros dos partidos de esquerda. Esses órgãos se desenvolvem durante os mil dias de Unidade Popular e aproveitam essa nova estrutura de oportunidade política. Uma das principais limitações dos Cordões Industriais é a sua falta, até ao fim da Unidade Popular, de coordenação em nível nacional.

As radicalizações da oposição levaram a uma acentuação das diferenciações no interior da esquerda chilena e mesmo a confrontos esporádicos entre o movimento operário e o governo de Salvador Allende. De um lado, o polo gradualista, formado pelo líder da Unidade Popular (Allende), uma ala do Partido Socialista (PS) e o Partido Comunista Chileno (PCC), quer reformar o Chile por etapas, respeitando a legalidade institucional. Essa corrente direcionará o processo político para uma “Revolução de cima”, segundo o historiador Peter Winn1. Seus apoiadores querem consolidar as bases da mudança social antes de avançar. Para isso, querem conter os avanços da auto-organização popular, condenando a ocupação de empresas não planejada pelo governo. Ao mesmo tempo, este polo multiplica as iniciativas de conciliação com os democratas-cristãos para obter uma maioria parlamentar, com os patrões das pequenas e médias empresas para alargar a base social do governo e com o exército para que este preserve a estabilidade do país. Por outro lado, o polo rupturista, constituído pelo Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), a ala esquerda do PS e os cristãos de esquerda do Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU) e da Esquerda Cristã (IC), deseja continuar os avanços sem conciliação, a fim de mobilizar as classes populares chilenas. Essa estratégia implica o fortalecimento dos mecanismos de participação na base e a preparação para o inevitável confronto com a oposição, armando-se, se necessário, em uma “Revolução pela base sacrificada por Allende”2. Essa descrição dual da esquerda não é maniqueísta. O autor destaca a heterogeneidade e as fragilidades de ambos. Assim, são enfatizados os limites do MIR, como a defasagem entre o partido e o movimento social ou certos traços de verticalismo. O papel do Partido Comunista também é questionado por sua desconfiança em relação ao movimento social. Ambos os partidos, contrários quanto às opções políticas a seguir, por outro lado concordam com a subordinação dos Cordões Industriais à central sindical.

O autor conclui suas considerações sobre a tragédia final da Unidade Popular, nas últimas semanas que antecederam o golpe de Estado de Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Segundo o historiador Luis Corvalán Márquez, “a esquerda já estava derrotada e a contrarrevolução estava em marcha” (p. 270). A investigação de Franck Gaudichaud mostra que os Cordões Industriais foram desmobilizados nas últimas semanas de agosto de 1973, tanto pela repressão do governo quanto pela divisão da esquerda. O Exército continua as operações de busca e apreensão provocativas nas empresas dos Cordões Industriais, onde poucas armas são encontradas, exceto cassetetes, coquetéis molotov, bastões e armas de fogo de baixo calibre. A revolução pacífica está desarmada: nenhum partido de esquerda, nem os do polo gradualista, nem os do polo rupturista, nenhum Cordão Industrial tem qualquer preparação substancial para resistir ao rolo compressor armado dos golpistas pinochetistas. A repressão foi brutal e imediata: noventa trabalhadores foram mortos a tiros apenas no Cordão Industrial Vicuña Mackenna, em Santiago.

Esses mil dias de Unidade Popular são um período-chave na América Latina e seu fim trágico teve repercussões globais. Este livro, refazendo fielmente sua história, deve, sem dúvida, tornar-se uma referência essencial sobre o assunto. A principal vantagem deste estudo é o de poder dar vida a uma experiência passada sem descurar um método científico rigoroso. Recomenda-se a leitura de Chile 1970-1973 Mil Dias que Abalaram o Mundo, rico em lições para todos aqueles que desejam repensar a democracia e a mudança social.

Originalmente publicado em Franck Gaudichaud, Chili 1970-1973, Mille jours qui ébranlèrent le monde
Notas
1 Peter Winn, Weavers of revolution: the Yarur workers and Chile’s road to socialism, Nova York, Oxford University Press, 1986.
2. Ibidem.