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BRASIL

Mais Médicos: A necessária responsabilização do CFM e demais entidades médicas! Sem anistia!

Pedro Henrique Antunes da Costa, de Brasília (DF)

O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma nota2 se posicionando contra o retorno do Programa Mais Médicos (Medida Provisória nº 1.165, de 21/03/2023). Segundo a entidade, tal rechaço se deve ao compromisso “com a defesa da saúde, da vida e da assistência médica de qualidade para todos os brasileiros”. Para além das retóricas presentes na nota, que se confrontam com a conduta da entidade – como veremos a seguir em alguns exemplos –, tal posicionamento deve nos atentar para o debate sobre o que temos considerado quando gritamos e exigimos Sem anistia! Ou seja, para refletirmos sobre a necessidade de que a luta pela não anistia não se reduz a indivíduos e atores da política institucional (sobretudo, do legislativo e executivo), se estendendo, no caso, também a entidades como o CFM, por conta de sua atuação no governo Bolsonaro e, em especial, durante a pandemia.

Por exemplo, dentre as várias manifestações de apoio ou de comemoração aos atos bolsonaristas em Brasília no segundo domingo do ano (8 de janeiro), gostaríamos de nos valer das postagens da presidenta interina do CFM, Rosylane Nascimento das Mercês. Por mais que o CFM tenha publicado uma nota de repúdio aos atos golpistas, posterior à divulgação do apoio e comemoração de sua presidenta interina, tal incidente deve fomentar o debate acerca do papel de associações médicas, como o próprio CFM, no governo Bolsonaro, e a necessidade de que sejam devidamente responsabilizadas.

Para maiores informações sobre o histórico da relação simbiótica entre o governo Bolsonaro e o CFM, é bastante esclarecedora a matéria de Beatriz Jucá, de 15 de outubro de 2021, intitulada “Como o Conselho de Medicina silenciou diante do negacionismo de Bolsonaro e abraçou a cloroquina”3. Inclusive, vamos além, entendendo que o CFM não apenas se silenciou diante do negacionismo de Bolsonaro, mas o respaldou. Mais: o negacionismo de Bolsonaro foi o negacionismo do CFM, e vice-versa, até porque o governo Bolsonaro foi um governo para e do CFM e o CFM foi um conselho para o governo Bolsonaro, a despeito da medicina, seus valores e princípios. Tudo isso foi expresso em vários momentos por ministros do governo ou mesmo representantes do CFM, bem como pelo próprio Bolsonaro, como em seu discurso na 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), no dia 26 de setembro de 2021: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina (CFM)”.

Podemos ir além, sinalizando que tal simbiose também se deu com outras associações dentro da categoria médica, como, por exemplo, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Igualmente contrária ao conjunto das evidências nacionais e internacionais que orientam a organização de políticas e do processo de cuidado no campo da saúde mental, álcool e outras por meio da atenção psicossocial, com base em dispositivos não asilares-manicomiais e de caráter territorial-comunitário4, a ABP intensificou sua saga manicomial e privatista durante o governo Bolsonaro, sendo um dos principais atores no processo de Contrarreforma Psiquiátrica. As violências e mortes nas instituições manicomiais -, de pessoas majoritariamente pobres e negras -, nas suas novas-velhas formas, indo desde os manicômios tradicionais, hospitais psiquiátricos até as Comunidades Terapêuticas, cairão na conta de quem as defendeu, chancelou ou, mesmo, foram os responsáveis diretos pela sua inserção e repasse de verba – pública – nas políticas do campo?

Damos este exemplo – e poderíamos mencionar outros – com o intuito de questionar a função social da medicina hegemônica em nossa concretude histórica, e nela, no nosso atual estágio de desenvolvimento, na qual elevam-se hordas bolsonaristas, demonstrando que este se trata de um fenômeno que só poderá ser compreendido e combatido desde sua complexidade. Nesse sentido, há de se questionar os ingredientes negacionistas, irracionalistas que compõem o caldo bolsonarista, chancelando uma ofensiva (ainda mais ofensiva) do capital contra os direitos da classe trabalhadora que, por sua vez, anda de mãos dadas com uma ofensiva conservadora. Ora, isto também não se expressa na/pela medicina hegemônica – aliado ao seu caráter corporativista, privatista, elitista etc. –, ao passo que é corroborado e reforçado por ela, tal como evidencia a conduta de sua principal entidade? No caso específico da repulsa ao Programa Mais Médicos, todos estes elementos se plasmam de maneira ainda recrudescida ao ódio de classe, xenofobia e racismo, indo contra todas as evidências científicas sobre os impactos positivos de tal programa na saúde dos(as) brasileiros(as).

Não dá, portanto, para minimizar ou desresponsabilizar uma entidade, como o CFM, que tem como objetivos “fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil” e “defender a boa prática médica e, ao mesmo tempo, garantir a defesa da saúde da sociedade, adotando uma política de saúde digna e competente”5. O que fazer quando quem deveria fiscalizar e normatizar a profissão, as fazem por vias antiéticas, de desrespeito à ciência, aos valores da própria categoria? Quando quem deve garantir a defesa da saúde da sociedade e adotar uma política de saúde digna e competente, chancela um genocídio? Mais, quando fere o seu próprio Código de Ética que, por exemplo, veda ao médico: “Causar dano ao paciente, seja por ação ou omissão”; “Divulgar tratamento não reconhecido cientificamente por órgão competente”6.

Não sendo suficiente, é fundamental mencionar o encontro organizado pelo CFM com o então presidente Bolsonaro no dia 27 de julho de 2022 que, na verdade, se tratou de um comício no qual, mais uma vez, o CFM demonstrou todo o seu apoio ao governo Bolsonaro, mesmo com as falas mesmas fala por parte dele minimizando os impactos da pandemia, ridicularizando medidas embasadas na ciência e se vangloriando de não ter sido vacinado. Vários pronunciamentos e notas de repúdio foram feitas contra tal episódio, por associações e organizações médicas. Segundo a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia, “[o] CFM não nos representa!”, o que foi reforçado pela Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, “[a] diretoria do CFM NÃO REPRESENTA os médicos e as médicas do Brasil”, dentre outras associações que também se posicionaram contrariamente ao evento e à postura do CFM. Por fim, um abaixo-assinado foi criado na internet com o título “Este Conselho Federal de Medicina não nos representa”, obtendo mais de 30 mil assinaturas.

Contudo, apesar de tais iniciativas de rechaço por associações e entidades médicas, é necessário indagar: será que o CFM não representa mesmo a categoria médica, ao menos a hegemonia médica? Mais do que isso, a pergunta que talvez seja mais necessária no momento é: o CFM será responsabilizado pela sua conduta durante o governo Bolsonaro?

Não só acreditamos que o CFM deve, sim, ser responsabilizado, junto de outras entidades médicas – e de quaisquer categorias profissionais – e de todas as pessoas que arquitetaram a monstruosidade que foi o governo Bolsonaro, o genocídio perpetrado por ele e os crimes cometidos. Que não somente Rosylane arque com as consequências de seu endosso aos atos golpistas do dia 8 de janeiro, como a instituição a qual ela presidia no momento de tal endosso seja responsabilizada nas devidas instâncias, com todo o amparo legal e respaldo científico, não necessariamente pelo ato de sua presidenta interina, mas pela continuidade de seus atos durante o governo Bolsonaro. Para que no presente não sejam repetidos os erros do passado, exigimos:

Sem Anistia ao CFM e demais entidades médicas!

1 Professor de Psicologia na Universidade de Brasília

2 https://portal.cfm.org.br/wp-content/uploads/2023/03/mais-medicos_nota-1.pdf

3 https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-15/como-o-conselho-de-medicina-silenciou-diante-do-negacionismo-de-bolsonaro-e-abracou-a-cloroquina.html

4 https://iris.paho.org/handle/10665.2/56614

5 https://portal.cfm.org.br/institucional/

6 https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/codigo%20de%20etica%20medica.pdf