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MUNDO

O Chile, depois do rechaço da Nova Constituição, é um “estado de exceção constitucional”

Por Raul Devia Ilabaca*, do Chile
Raul Devia Ilabaca

No Chile, se deparou no domingo, dia 4 de setembro de 2022, frente a uma encruzilhada histórica entre aprovar ou rechaçar o texto constitucional oriundo da Convenção Constitucional, que havia trabalhado durante um ano em um novo texto constitucional. Nesse dia, ocorreu um plebiscito com características únicas (já que, pela primeira vez se determinou que haveria inscrição automática no registro eleitoral, ou seja, todos e todas maiores de 18 anos estavam inscritos para participar nas eleições do país), que mudou a vontade de comparecer às urnas, pela ameaça de multa equivalente a U$200.

Isso fez com a participação eleitoral subisse dos 50% do eleitorado nas últimas eleições (aproximadamente 8 milhões de votos) para 85%, mais de 13 milhões de votos, o que, para muitos, determinou o resultado do plebiscito. Foi um rotundo rechaço à proposta constitucional que os setores progressistas, de esquerda e o próprio governo impulsionavam para terminar com a constituição da ditadura e de Pinochet, dando como resultados 62% de votos pelo rechaço e 38% para a opção de aprovação, um golpe muito duro para os que pretendíamos enterrar a herança da ditadura.

São muitas as variáveis que influenciaram para que este resultado se desse, acima inclusive do que apontavam as pesquisas. Todos prevíamos um resultado apertado, mas a realidade foi oposta e contra nossa posição. Um desse fatores foi o que se expressou no parágrafo anterior, 5 milhões de votos a mais, provindos daqueles que durante anos não quiseram participar e que agora foram obrigados a se manifestar nas urnas. Há nisso uma coincidência numérica entre a diferença de votos entre uma e outra alternativa, mas não foi só isso, evidentemente. Foi também, e sem dúvidas, a campanha de desprestigio da Convenção e dos convencionais por parte da direita durante todo o processo, sua campanha começou no próprio 4 de julho de 2021, quando começaram os trabalhos dos e das constituintes, e a isso devem ser somados erros e manifestações de alguns constituintes eleitos na Lista del Pueblo e de Independentes, que foram amplamente divulgados nos meios de imprensa que pertencem aos setores empresariais mais ricos do Chile.

Mas há razões políticas que devemos analisar profundamente, pois foi nos os setores populares das cidades periféricas e onde vivem os e as trabalhadoras, onde mais votos obteve o Rechaço, os setores proletários mais empobrecidos, que não participavam das eleições e que agora foram votar obrigados, que deram um duro castigo e um banho de realidade no governo e seus s partidos; ao governo de Boric, pois este negou as ajudas econômicas necessárias para o momento econômico que vive o Chile, alta inflação, salários de fome, retirada de auxílios estatais (Bônus em dinheiro para famílias vulneráveis, renda familiar de emergência universal e laboral (auxilio em dinheiro às pessoas com necessidades especiais, retirada dos fundos de previdência privada (AFPs, etc…), crise econômica, pandemia, tudo isso foi relacionado e se assemelhou à diminuição da popularidade de Boric e de seu governo, ao voto Rechaço e foi outra coincidência. Boric tem 37% de aprovação e 63% de rechaço, os mesmos que o resultado do plebiscito, ainda mais que o texto não apresentava soluções diretas e concretas para a população mais necessitada do país, em relação às determinações constitucionais que assegurarão que o estado, por meio da nacionalização dos bens comum, como a mineração do cobre e do lítio, a agua e a eletricidade, com administração pública por meio de empresas estatais, garantirá que se disponha dos recursos econômicos necessários para assegurar uma vida digna aos habitantes do território nacional. Com isso, podemos vislumbrar as causas profundas do Rechaço, localizada nesses fatos.

A isso devemos agregar que as campanhas eleitorais do Rechaço e Aprovo foram diametralmente opostas, não por chamar a aprovar ou rechaçar, mas que, devido a que uma tinha um caráter simples, efetivo e multimilionária, baseada em “rechaçar por uma que nos una, com amor”, pois beneficiava os indígenas, pela plurinacionalidade, aos imigrantes e aos presos políticos, pelos direitos sociais incorporados ao catálogo de direitos humanos, feminista, pelos direitos sexuais e reprodutivos, incluído o direito ao aborto, e deixava em desvantagem o gênero masculino. Tudo isso apoiado por inumeráveis fake news: que seriam expropriados os fundos previdenciários de capitalização individual das contas das A.F.P, (o que teve uma forte influência na dramática reversão em quatro dias (!!!) nas intenções de voto para o plebiscito1), que seriam expropriadas as casas, já que não se explicitava o direito de propriedade delas, que o estado determinaria a educação de seus filhos, negando o direito a escolher livremente a educação deles, que se terminaria a liberdade de crenças religiosas, todas essas notícias falsas, repetidas pelos meios televisivos e radiofônicos, pertencentes exclusivamente às 7 famílias mais s poderosas do país, cumpriu seu objetivo.

Também foi importante o apoio econômico dessas famílias mais ricas com contribuições multimilionárias: o que foi declarado alcançou 1 bilhão e meio de pesos chilenos (23; Por outro lado, a campanha do Aprovo foi dividida pelos distintos comandos, com visões diversas: uns queriam aprovar para reformar o texto, uma concessão da socialdemocracia aos setores de direita para aprovassem, outros queriam que ficasse tal e qual tinha sido aprovado pela Convenção e outros o aprovavam sem ilusões, e alguns da esquerda radical chamaram à abstenção ou a votar nulo, com um governo que antes de começar a campanha assinalou que estariam preparados para qualquer cenário, se ganhasse o Aprovo ou o Rechaço, explicam politicamente esta derrota eleitoral que fortaleceu a direita e aos setores conservadores.

Assumido este cenário, a discussão é como continua este processo em que se encontra o governo de Boric; com relação a como continua o processo, estava definido que se ganhasse a opção Rechaço se manteria vigente a constituição de 1980, que o Chile, no plebiscito de entrada, definiu por 80% da votação que não queria que se mantivesse vigente. Então, se retornaria a decisão ao poder constituído, o Parlamento, onde, assume-se que devem dar continuidade a este processo constituinte e que isso significa realizar um novo acordo para formar a constituição e é nesse sentido que se encontram os partidos com representação parlamentar: como se dará, com que características, não se sabe, somente sabemos que mais uma vez estão nos deixando de fora daquela definição, como o fizeram em 15 de novembro de 2019, quando decidiram nos conduzir pelo caminho eleitoral, chamando a sucessivas eleições, 7 no total, tirando da luta nas ruas aqueles que se mobilizavam e os convidando a participar democraticamente por meio dessas eleições, deixando de lado a exigência de Fora Piñera, por meio de um longo e tedioso de conchavos de cúpula que mantém o pais em um beco sem saída.

O que se discute atualmente é de que forma se reprime o povo mapuche no Walmapu e, para isso, Boric contribui, no Sul do Chile, ratificando sua decisão de um estado de exceção nessa região, mas também com um “Estado de Exceção constitucional”, em todo o país, pois a constituição que segue vigendo é uma de que muito poucos gostam, mas que deve ser modificada e não sabemos como, nem quando ou quem o fará.

A dois meses daquela dolorosa derrota, o poder constituído, no parlamento e sua mesa de negociações descartaram completamente o plebiscito de entrada, que definiu democraticamente um processo com uma Convenção 100% eleita, paritária, com assentos reservados aos povos indígenas e chapas de independentes. As definições da mesa de negociações atual são 12 consensos básicos que enquadram o futuro trabalho constitucional, com uma comissão ad – hoc, de 14 especialistas eleitos expertos eleitos pelo Parlamento, que serão “os comissários” que protegerão o até então desconhecido órgão constituinte, para que respeite os limites impostos pelo poder constituído e seus 12 consensos básicos decididos por ele e perante ele.

Com relação a se haverá ou não nova Convenção e as características desta, as notícias apontam que a direita propôs que somente 50 pessoas fossem eleitas como são eleitos os senadores, por circunscrição e o oficialismo deve responder e já há vozes do oficialismo no sentido de flexibilizar a determinação que sejam 100% eleitas e inclusive já estariam a favor de uma comissão especial de especialistas não eleitos.

Agora, o governo de Boric encontra-se encurralado em sua própria indefinição: não cumpre suas promessas eleitorais, mantém por longo tempo um estado de exceção no Walmapu, nega a liberdade aos presos políticos, que agora não reconhece mais e de fato não governa, mas se entregou absolutamente aos que governaram durante os 30 anos, ou seja, a socialdemocracia e a direita e seus acordos políticos para manter o modelo econômico, realiza mudanças ministeriais, entregando o Ministério do Interior e a Secretaria-geral do governo para o Partido Socialista e o Partido pela Democracia, ingressando diretamente no “Comitê Político do governo” e fortalecendo o conglomerado autodenominado “Socialismo Democrático”, que, junto com a direita no Parlamento impõem a votação de um tratado internacional de comercio denominado TPP11, que a Frente Ampla e o Partido Comunista rechaçaram. Boric expressamente disse que não era parte de seu programa, mas sua Ministra do interior, Carolina Toha (PPD), e seu Ministro da Fazenda, Mario Marcel (PS), propuseram que o governa promova e que não dificulte sua tramitação no Parlamento, o que significa um forte choque dentro do governo entre as coalizões oficialistas que apoiam este Governo.

Por nosso lado, sem dúvida, formos golpeados pelo resultado do plebiscito, assim como nos golpeia cada dia a atuação deste governo de Boric. Frente a isso, começamos um trabalho de unidade nos territórios daqueles que defendem um processo constituinte com os mínimos princípios democráticos definidos no plebiscito de entrada: Convenção constitucional, 100% eleita, com paridade de gênero, com assentos reservados para os povos originários e com a participação de independentes em chapas próprias, exigindo dom Governo, dos partidos políticos e dos parlamentares que a nova Constituição seja feita com os trabalhadores e com as trabalhadoras deste país; E exigindo que o governo pelo menos cumpra seu programa, passando rapidamente à denúncia, cada vez que não o cumpra e que cada vez mais fortemente gire à direita, retornando aos 30 anos de governos da velha concertação, que nos levaram à explosão social de 18 de outubro de 2019.

Também devemos nos organizar em torno das lutas necessárias para defender a vida, como é um reajuste dos salários do setor público e do salário- mínimo acima da inflação anual de 12,8%; terminar com o Estado repressivo do Walmapu e libertar os presos políticos da explosão social e os mapuches, não mais repressão ao movimento estudantil por suas reivindicações de anos nos liceus mais emblemáticos de Santiago e forjar a mais ampla unidade, organização e luta na construção de uma alternativa pela esquerda perante o giro à direita realizado pelo pacto de governo Apruebo Dignidad, (Frente Ampla e Partido Comunista), em sua aliança com o Socialismo Democrático (Partido Socialista, Partido Radical; Partido Por la Democracia e Partido Liberal).

*Advogado/ativista social chileno

https://www.latercera.com/la-tercera-sabado/noticia/nueva-constitucion-oficialismo-flexibiliza-su-postura-y-pierde-fuerza-el-organo-100-electo/DI65z’V22WHBBCJFNHMKKOW3NJDA/

1 https://www.ciperchile.cl/2022/09/05/los-cuatro-dias-clave-que-llevaron-al-rechazo-al-tope-de-las-encuestas-y-los-cinco-meses-de-campana-para-mantener-esa-ventaja/

3 Os dados das contribuições oficiais às campanhas revelam uma brutal desigualdade: enquanto o Aprovo recebeu 22% do total das doações declaradas, o Rechaço ficou com os restantes 78% (https://www.chvnoticias.cl/convencion-constitucional/apruebo-rechazo-servel-financimiento-campana-plebiscito-de-salida_20220902/)

En espanõl: Chile tras el rechazo de la nueva constitucion es un “estado de excepcion constitucional”

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