Pular para o conteúdo
BRASIL

O rol de procedimentos da ANS e o desmonte do SUS

Lígia Maria* da Coletiva SUS-DF**
Reprodução/TV Globo

Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomou o julgamento sobre o rol de procedimentos previsto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O julgamento começou em 16 setembro de 2021, com voto favorável ao rol taxativo pelo relator Luis Felipe Salomão, que é especialista em Direito Comercial. Entretanto, houve suspensão por um pedido de vista da ministra Nancy Andrighi. O julgamento foi retomado dia 23 de fevereiro, quando houve novo pedido de vista, sem previsão para retorno do debate.

A lista de cobertura prevista pela ANS é atualizada a cada dois anos, período durante o qual novos serviços não podem ser incorporados, à revelia dos avanços tecnológicos e científicos.

Trata-se de decisão sobre se o rol de procedimentos, ou seja, a lista de serviços que devem ser cobertos pelos planos de saúde, é taxativa (os planos de saúde devem cobrir apenas os serviços listados pela ANS, sem a obrigação de cobrir mais nada) ou exemplificativa (é possível aos planos de saúde extrapolar os itens previstos pela ANS de acordo com as necessidades assistenciais dos pacientes). Vale salientar que, além de precificar os valores da cobertura-base dos planos de saúde, o rol é responsável – ou ao menos deveria ser – por assegurar que os pacientes da saúde suplementar não fiquem reféns da cadeia de produtos e serviços de saúde, garantindo que os procedimentos sejam cientificamente respaldados. A lista de cobertura prevista pela ANS é atualizada a cada dois anos, período durante o qual novos serviços não podem ser incorporados, à revelia dos avanços tecnológicos e científicos. 

O argumento em torno da taxatividade é de que, sem a definição estrita do que deve ser coberto pelos planos de saúde, a estes fica livre a cobrança de custos imprevisíveis para os consumidores – ou seja, seria uma questão de proteção ao consumidor. Já em relação à defesa do rol exemplificativo, argumenta-se que não cabe à ANS nem aos planos de saúde limitar o acesso dos contratantes aos serviços, mas ofertá-los de acordo com o que for prescrito cientificamente pelo profissional responsável pela assistência – portanto, neste caso, a questão é de garantia do direito à saúde. 

O cerne desse debate deve ser, essencialmente, o impacto que a definição tem sobre o SUS e a política de saúde pública. A rede privada de saúde tem espaço aberto na execução da política pública enquanto braço suplementar, o que está previsto tanto na Constituição Federal quanto nas Leis Orgânicas da Saúde e outras legislações de apoio. Toda a regulamentação da saúde privada é desenhada, ou ao menos há a tentativa de que seja, para proteger o sistema público de ser utilizado como acessório dessas empresas – o que encontra inúmeras fragilidades. 

Historicamente, há tentativas de intervenção sobre isso, com interferências sobre a Lei 9.656/1998, que regulamenta os planos de saúde, sempre no sentido de aumento de custos para os pacientes e lucro para as prestadoras – como, por exemplo, em 2006, quando houve a tentativa de impor aumento de 100% sobre as taxas dos planos de saúde com base no avanço da idade do contratante -, o que gera o efeito contrário do que se pretende com a legislação e, assim, permite que o SUS seja útil ao setor privado. 

A ANS é foco de um intenso lobby, cujas lideranças enriqueceram mais de 100% durante a pandemia e integraram a lista de bilionários da Forbes, enquanto o País sofria o acúmulo do luto pela alta estatística de mortos pela COVID-19 e da crise econômica, social e política

É nesse caminho que a Medida Provisória nº 1.067/2021, editada por Jair Bolsonaro, altera a Lei dos Planos de Saúde, estreitando o papel da ANS no estabelecimento da cobertura dos planos de saúde, diminuindo a autonomia dos profissionais e prejudicando a assistência em saúde para uma ampla parcela de pessoas que usufrui da saúde privada. Dizer isto não é, sob nenhum pretexto, afirmar qualquer defesa em torno da rede privada da saúde, mas estabelecer o trajeto à compreensão de como esse cenário afeta o SUS e a garantia de saúde para 80% da população que dele depende exclusivamente em termos de assistência.

A ANS é foco de um intenso lobby, cujas lideranças enriqueceram mais de 100% durante a pandemia e integraram a lista de bilionários da Forbes, enquanto o País sofria o acúmulo do luto pela alta estatística de mortos pela COVID-19 e da crise econômica, social e política. As justificativas sobre a necessidade de equilíbrio financeiro para as operadoras de saúde é apenas uma roupagem técnica para aumentar os lucros do empresariado à custa de menor cobertura e grande dispêndio financeiro para os contratantes – o que também significa maior subsídio do setor público, que sustenta grande parte da rede privada com aplicação direta e, também, com isenção tributária. 

O rol taxativo abre caminho para que o SUS seja acionado no lugar dos planos de saúde para prestar atendimentos fora da lista da ANS, sem o devido ressarcimento, uma vez que a saúde privada só retorna os custos ao SUS daqueles serviços previstos no rol ou em contrato e, por alguma razão, prestados pela saúde pública aos clientes da rede privada. Já é frequente que planos de saúde neguem aos seus contratantes procedimentos oferecidos pelo SUS, sob alegação de que não constam no rol. 

A maior parte desses procedimentos se classifica no nível secundário de atenção à saúde: serviços especializados e, sobretudo, procedimentos de apoio diagnóstico e terapêutico, setor que representa um grande gargalo na saúde pública, imensamente impactado pelo sucateamento e pelas medidas de privatização e terceirização em estados e municípios. No dia 22 de fevereiro, parte disso foi objeto de mobilização de setores organizados de alguns segmentos da saúde, como pacientes com doenças crônicas, deficiências e câncer, junto aos seus familiares; uma vez que serão muito prejudicados pela restrição da oferta de serviços pelos planos de saúde que pagam. O quadro é, ainda, agravado pelos impactos da EC95 e, por último, pela retirada do aporte complementar de financiamento demandado pela pandemia, como se esta estivesse findada e suas consequências não gerassem impactos em longo prazo para rede de saúde, já que a escassez do financiamento gerada por essas medidas deixa o SUS sem condições de arcar com o aumento da demanda. 

Portanto, a trajetória percorrida pela saúde privada rumo à definição do rol de procedimentos é amparada por um histórico extenso de reforço à lógica de promoção da doença para venda de uma cura que nem ao menos chega aos seus compradores, lançando-os em um cenário caótico de carência de assistência promovido pela predação de recursos da saúde pública pela rede privada, agravando a situação da população exclusivamente SUS dependente e o contexto de trabalho dos servidores públicos da saúde, que, em meio à falta de estrutura, deparam-se com o aumento da demanda. 

O rol de procedimentos é um instrumento de orientação, mas não pode limitar o acesso das pessoas à saúde e, tampouco, ser mais um apetrecho de precarização do trabalho em saúde sob a retirada da autonomia profissional e piores condições de trabalho, de sobrecarga do serviço público, de retirada de custeio e investimento do SUS em direção ao subsídio à rede privada e de reforço do cenário de desmonte e sucateamento historicamente vivenciado pela política pública de saúde e agravado pelas medidas mais recentes de austeridade.  

 

*Lígia Maria é enfermeira residente em Saúde da Família e Comunidade da ESCS DF e mestranda em Saúde Coletiva pela UnB. 

**A Coletiva SUS é um coletivo em defesa da saúde pública, universal, integral e equitativa no DF. Acesse o perfil no Instagram: @coletiva.sus

 

REFERÊNCIAS

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.067-de-2-de-setembro-de-2021-342648719

https://www.susconecta.org.br/cns-defende-cobertura-de-procedimentos-mesmo-fora-do-rol-dos-planos-de-saude/

https://www.conjur.com.br/2022-fev-23/stj-volta-julgar-cobertura-tratamentos-planos-saude