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BRASIL

Assassinato de Moïse revela como a “democracia racial” brasileira acolhe populações migrantes

Marcela Soares* e Samara Franco**, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução/ TV Globo

Há pouco mais de uma semana, o jovem de 24 anos Moise Mugenyi Kabagambe, congolês e refugiado no Brasil há 11 anos, foi assassinado brutalmente no quiosque Tropicália, na orla da praia da Barra da Tijuca. A violência promovida por cinco homens, após Moise ter cobrado sua remuneração por diárias trabalhadas, revela como a realidade de migrantes internacionais e refugiados/as racializados/as é a do desprezo e ódio étnico-racial, assim como de insegurança laboral.

Este trágico acontecimento elucida a dura realidade da força de trabalho migrante e/ou refugiada que migra para buscar sua sobrevivência, fugindo de conflitos territoriais, perseguições étnicas, culturais, religiosas e políticas, que quando chega ao Brasil se depara com uma dura atmosfera disseminada pelo ethos das nossas burguesias racistas, patriarcais e fascistizantes.1

Moise, antes de vir ao Brasil, onde chegou aos 11 anos. Reprodução/TV Globo

Os fluxos migratórios na sociedade burguesa possuem uma grande diversidade, no que se refere à divisão internacional do trabalho, em seu desenvolvimento desigual e combinado entre os países e regiões. Nesse sentido, abrange elementos circunscritos à origem-destino, às classes sociais e ao momento histórico do capitalismo. Existem particularidades de determinados contextos sócio-históricos, que indicam o direcionamento do fluxo de pessoas e como os distintos movimentos de expropriações2 – a exemplo das guerras, que é a realidade da República Democrática do Congo3 – expulsam enormes contingentes populacionais.

Além disso, há as permanentes reestruturações da produção, seja com o aumento da composição orgânica do capital (que resumida e superficialmente significa o aumento de máquinas ou a injeção de novas técnicas que reduzem o trabalho vivo) ou com a desterritorialização das cadeias produtivas, que ocasionam a falta de emprego e a ausência de possibilidades de sobrevivência. Sintetizando, vemos que os fluxos migratórios acompanham o modo de como as leis econômico-sociais do capital se irradiam em determinadas particularidades regionais e históricas.

A maior parte dos/as trabalhadores/as, quando migram diante das situações supracitadas, torna-se mais suscetível a uma situação de trabalho mais precarizada.4 Essas pessoas só saem de seus países ou região de origem para locais onde há oferta de ocupação e de, supostamente, melhores condições de vida, porque vivem ou a ausência do trabalho ou um cenário de conflitos/guerras ou perseguições políticas ou étnico-raciais e culturais.

Atualmente, a contemporânea recepção aos/às migrantes internos ou internacionais no Brasil causa estranheza em algumas pessoas devido às construções de mitos da imagem do nosso país, onde supostamente existem apenas brasileiros/as hospitaleiros/as e cordiais. A verdade é que essa recepção calorosa depende da origem, da raça/etnia e da classe social do/a migrante. E esse mito de “povo hospitaleiro” é correlato a outro mito, que é o da “democracia racial”.

E esse mito de “povo hospitaleiro” é correlato a outro mito, que é o da “democracia racial”.

A verdadeira história da nossa formação econômico-social requer o resgate sem mistificações sobre a implementação do trabalho livre junto às políticas de incentivo à imigração que tiveram o propósito de embranquecer o nosso país e garantir o extermínio de negros/as, indígenas, “híbridos” como os planaltinos e nordestinos/as, no plano dos eugenistas.5 Portanto, uma camada social composta por migrantes e refugiados/as, que longe de suas pátrias – alguns indocumentados/as, é alvo de variadas agressões e grande parte é condicionada a vender sua força de trabalho em condições de máxima degradância.

Abrimos esse parênteses histórico, para destacarmos que o grau de violência, – visto no caso de Moise,6 mas também de diversos migrantes internacionais como haitianos/as, senegaleses/as, venezuelanos/as, bolivianos/as e peruanos/as – não pode ser considerada apenas como uma expressão contemporânea xenófoba da extrema-direita, mas devem ser destacados os processos estruturais da racialização e, por sua vez, de uma suposta hierarquização étnico-racial cultural, que alicerça o tecido social capitalista mundial e apresenta particularidades marcantes na formação econômico-social brasileira.

É evidente que em uma conjuntura internacional de crise estrutural do capital, que promove o avanço de posturas reacionárias e de bandeiras anti-imigração, pioram as possibilidades de progresso de políticas migratórias mais amplas e “legitimam” as agressões morais e físicas a essas pessoas.

Desde o golpe jurídico-parlamentar7 e alavancado com o triunfo de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, houve uma reorientação das políticas imigratórias em uma direção mais restritiva, por passarem a assumir a xenofobia e o racismo como uma prática legítima.8

Logo, observamos que, com o pujante levante da extrema-direita, associado às ideologias xenófobas e racistas, há um forte apoio dos aparatos coercitivos e ideológicos do Estado burguês, que promovem uma barbárie crescente, em que a violência se ancora nos discursos odiosos. Sua intensificação exprime ideias conservadoras e raivosas a diferentes grupos sociais, dentre eles, refugiados/as, sobretudo negros e negras.

Moise, jovem negro, congolês, refugiado no Brasil desde 2011 foi vítima dessa violência engendrada no interior de um sistema racista que com requintes crueldade explana a indiferença da sociedade por corpos negros violados.

Temos que reconhecer que apesar da tradição migratória no Brasil, não existe acolhida a muitos migrantes africanos que buscam no Brasil proteção e segurança. Segundo o Comitê Internacional para os Refugiados (CONARE), a comunidade congolesa refugiada no Brasil se configura atualmente como a terceira nacionalidade com maior número de pessoas reconhecidas como refugiadas no país9, entretanto, apesar de estarem em grande número, em um país onde acreditavam ser acolhedor, vivenciam cotidianamente a discriminação e a insegurança, encontrando outra realidade, muito mais cruel, e que carrega a herança escravocrata permeando as vidas negras.

O novo local de morada escolhido pela família é inseguro, apesar de uma das mais modernas legislações atinentes ao refúgio

O estarrecedor caso do jovem Moise traz a reflexão que o novo local de morada escolhido pela família é inseguro, apesar de desenvolver uma das mais modernas legislações atinentes ao refúgio (Lei 9.474;97), além de ser o primeiro país da América Latina a elaborar e sancionar um documento com esse teor.

Ademais, tal fato expõe que as possíveis redes construídas por refugiados/as, seja de familiares, parcerias, amizades ou proximidades culturais, não os/as protegem desse sistema desumanizador que explora, expropria, tortura e mata nessa “rota de fuga” e que deveria ser uma rede de proteção frente as mazelas sociais e as perseguições sofridas nos seus Estados de origem.

 

* Assistente social, professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF e militante da Resistência.
** Assistente social, mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela UFF e doutoranda em Serviço Social pela UERJ.

 

NOTAS


1  Ver sobre esta discussão: SOARES, Marcela; CABRAL, Bruna; FRANCO, Samara. Refugiar-se para sobreviver: expropriações de direitos. In: PEREIRA, Larissa Dahmer; BARBOZA, Douglas Ribeiro. Políticas regressivas e ataques aos direitos sociais no Brasil. Belo Horizonte: Editora Navegando, 2020.

2  Como os ocasionados pelos conflitos pela terra ou pelos impactos dos chamados desastres ambientais, que desterram populações ribeirinhas, povos originários e comunidades quilombolas.

3  Sobre os conflitos, a extração de coltan e o uso de formas contemporâneas de escravização, na República Democrática do Congo, mineral fundamental para a cadeia produtiva de celulares e computadores, veja o texto: PIRINA, Giorgio. Degradação do trabalho no capitalismo de plataformas. O caso do coltan. In:HADDAD, Carlos H. B. et al (orgs.). Discussões interdisciplinares sobre a escravidão contemporânea. Belo Horizonte/MG: Carlos Henrique Borlido Haddad, 2021.

4  Informações da Secretaria de Inspeção do Trabalho, compiladas pelo Frei Xavier Plassat da Comissão Pastoral da Terra, apresentam que dos locais onde mais migrantes internacionais foram resgatados/as da escravidão contemporânea, entre o período de 2010 a 2018, foi o estado de São Paulo, seguido de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Roraima. A origem dessas pessoas, majoritariamente, é da Bolívia, seguida do Paraguai, China,Venezuela, Haiti e Peru, nos mais diversos setores econômicos, com destaque para as confecções, construção civil, pecuária, lavoura e setor de alimentação (restaurantes).

5  Sobre o mito do brasileiro cordial, ver MOURA, Clóvis. O racismo como arma ideológica de dominação Fundação Maurício Grabois, edição 34, ago/set/out, p. 28-38, 1994.p.7.

6  Sobre as condições de trabalho dos congoleses no Rio de Janeiro, recomendamos: Figueira, Ricardo Rezende; Masengu; Sarah. Mbuyamba. A inserção de imigrantes congoleses nas relações de trabalho no Rio de Janeiro. Brasiliana: Journal for Brazilian Studies. Vol. 9, n. 1, 2020.

7  Sobre o Golpe jurídico-parlamentar, Ver ARCARY, Valério. Dois anos depois: dez argumentos para compreender o golpe jurídico-parlamentar, EOL, 15 de maio de 2018. Disponível em:https://esquerdaonline.com.br/2018/05/15/dois-anos-depois-dez-argumentos-para-compreender-o-golpe-juridico-parlamentar/ Acesso em 20 mai. 2021. DEMIER, Felipe. Crônicas do caminho do caos. Democracia blindada, golpe e fascismo no Brasil atual. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.

8  Ver VILLEN, Patrícia. Impactos da crise na migração internacional no Brasil. In: BAPTISTA, D. M. T.; MAGALHÃES, L. F. A. (orgs.). Migrações em expansão no mundo em crise. – São Paulo: EDUC: PIPEq, 2020.

9  Ver a matéria “Um breve olhar sobre as migrações congolesas”. Disponível em: https://migramundo.com/um-breve-olhar-sobre-as-migracoes-congolesas/. MigraMundo, 20 de julho de 2020. Acesso em:01 fev. 2022.