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BRASIL

O que, afinal, diz o Artigo 142 da Constituição?

Bruno Alves*, de São Paulo, SP
Divulgação/Facebook

O bolsonarismo criou um mote de que seria possível uma intervenção militar com base no Artigo 142 da Constituição Federal. Esbravejam aos quatros que poderiam usar tal dispositivo supostamente constitucional, como forma de sobrepor o Executivo contra os demais Poderes. Isso é uma evidente farsa para dar uma roupagem pseudo-jurídica para um golpe, através de uma interpretação muito peculiar do Artigo 142. O único jurista que chegou a emprestar o seu nome para tal interpretação foi Ives Gandra, mas que recentemente desvencilhou-se de tal “interpretação” golpista e desonesta. 

Agora, às vésperas dos atos golpistas do dia 7 de Setembro, o argumento do uso do Artigo 142 da Constituição Federal tem sido usado exaustivamente. Mas o que de fato diz esse artigo?

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

    • 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

(…)

Na Constituição Federal não existe o “Poder Moderador”, como havia no Artigo 98 da Constituição de 1824. Ao contrário, na Constituição de 1988, no Artigo 2º, que é Cláusula Pétrea, consta que: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” No Artigo 60, §4º, está expresso que nada poderá alterar a separação dos Poderes. Portanto, qualquer interpretação que diga que o Poder Executivo poderia usar as forças armadas contra os demais Poderes, no mínimo está desprovida de honestidade intelectual. 

O Artigo 142 diz que as Forças Armadas destinam-se à “garantia dos poderes constitucionais”, “da lei e da ordem”. No  Artigo 142, no § 1º, está expresso que o uso das Forças Armadas será regulado por Lei Complementar. Tal Lei é a Lei Complementar nº97/1999, que no Artigo 15, regulamenta o emprego da chamada “Garantia da Lei e da Ordem”. Existem condições necessárias para tal emprego, por exemplo, devem ter sido esgotados os esforços das polícias regulares (polícia federal, civil e militar). O uso deve ocorrer de modo localizado e episódico. Portanto, deve haver uma ordem, de modo exato, determinando tanto no tempo quanto no espaço os limites de tal atuação.

A Constituição prevê em outros artigos o chamado “Sistema Constitucional das Crises”. Trata-se das figuras do “Estado de Defesa”, Artigo 136, que tem abrangência territorial restrita, e do “Estado de Sítio”, Artigo 137. Em qualquer das hipóteses a decisão será do Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.

Portanto, o uso que se pretende dar ao Artigo 142, da Constituição Federal, é absolutamente falso. A Constituição não possui apenas quatro linhas, ao contrário, são centenas de artigos, incisos e alíneas. O mínimo de coerência jurídica seria exigir a aplicação da Lei nº 1.079/1950:

Artigo 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

(…)

II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

(…)

Artigo 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:

(…)

5 – opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças;

6 – usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;

(…)

Atravessando o Rubicão

No Brasil de 2021 existe um setor da burguesia que pretende efetivamente acabar com a Constituição de 1988. Tal setor conta com o apoio de talvez uma parte dos militares. Recentemente o ministro Ricardo Lewandowski escreveu um brilhante artigo na Folha de S. Paulo [1], no qual aborda as consequências de uma aventura golpista. No artigo o ministro do STF afirma desde o título que: “Intervenção armada: crime inafiançável e imprescritível” e desenvolve como argumento o ilustrativo episódio em que Júlio César atravessou o rio Rubicão. As tropas em Roma não poderiam atravessar este rio, pois isto significaria que as tropas estariam sendo usadas para ameaçar um golpe, que de fato houve, dando início a uma ditadura.

A Inglaterra foi palco de  grandes acontecimentos que deram início ao Direito Constitucional, como entendido hoje. No ano de 1215 a Inglaterra era governada pelo Rei John, curiosamente retratado em diversas versões que tratam do personagem lendário de Robin Hood. Este Rei de fato foi alvo de vários levantes da nobreza local. O que resultou em um tratado, a chamada primeira “Magna Carta” [2]. A importância histórica desta Carta está no fato de que foi o primeiro documento escrito que limitou os poderes de um Rei. 

Séculos depois, em 1688, a Inglaterra também foi palco da “Revolução Gloriosa”, que resultou na declaração de Direitos “Bill of Rights” [3]. Nesta declaração, que surge como uma forma de Constituição decorrente daquela Revolução, existem diversas garantias. Uma das garantias é a proibição expressa de que se mantenha dentro das fronteiras do reino forças armadas, em tempos de paz, sem a autorização expressa do parlamento. Portanto, cria-se assim uma limitação também ao poder do soberano, em um sentido muito similar aquela limitação para as tropas romanas não atravessarem o Rubicão. Os civis têm o direito de não serem ameaçados pelas tropas, do seu próprio governo. Portanto, o governante não pode usar suas tropas contra seu próprio povo. Qualquer governante que ameace seu próprio povo com suas tropas é um facínora que não deveria estar no posto de governante.

O que se trata é de uma luta civilizatória. A civilização está ligada aos civis, portanto, em contraste com os militares. Os militares existem para a guerra. A ideia de civilização significa um avanço com relação aquilo que Hobbes chama de a guerra de todos contra todos. Maquiavel, no seu clássico “O Príncipe”, alerta para os perigos de se manter exércitos regulares em tempos de paz, que podem se aventurar  a tomar o poder contra os civis. 

A Constituição é só um pedaço de papel, como diria Lassale. O Direito reflete uma correlação de forças na luta de classes. Aqueles que esbravejam as mentiras e disparates golpistas mostram a fragilidade das democracias liberais em países semi-coloniais. As “instituições” da frágil democracia brasileira mostram-se limitadas diante do fascismo. O presidente genocida já deveria ter sido retirado do governo, existem motivos de sobra. Tanto por meio do Judiciário, no processo no TSE, que julga a impugnação da chapa, como por meio do Legislativo, mas Arthur Lira segue em silêncio. Apenas a classe trabalhadora em movimento pode garantir efetivamente a democracia. 

 

*Bruno Alves é advogado e ativista de Direitos Humanos.

NOTAS

[1] Artigo publicado na Folha de S. Paulo, no dia 29 de agosto de 2021. Cf.: https://www.conjur.com.br/2021-ago-29/lewandowski-intervencao-armada-crime-inafiancavel-imprescritivel

[2] https://www.orbilat.com/Languages/Latin/Texts/06_Medieval_period/Legal_Documents/Magna_Carta.html

[3] https://avalon.law.yale.edu/17th_century/england.asp