Novembro de 2015: Dois homens armados dispararam tiros contra a Marcha das Mulheres Negras, causando pânico a poucos metros do Congresso Nacional, em Brasília. As vidas das mais de 10 mil participantes do ato estavam em risco. Punição contra os atiradores: nenhuma.
Julho de 2021: Um grupo de pessoas pôs fogo na estátua que representa um bandeirante. Os bandeirantes eram protótipos de milicianos que no Brasil colonial matavam, estupravam e escravizavam mulheres indígenas e também mulheres negras. Punição contra os suspeitos de organizador o ato: prisão sem julgamento.
Para o sistema penal brasileiro, um monte de pedra que faz homenagem a assassinos e violadores merece mais proteção que a vida das descendentes das vítimas dos homenageados.
Para o sistema penal brasileiro, um monte de pedra que faz homenagem a assassinos e violadores merece mais proteção que a vida das descendentes das vítimas dos homenageados. Para o “cidadão de bem”, quem atira contra mulheres negras não fez nada demais e quem queimou a estátua de Borba Gato é terrorista. Seria apenas mais um dos vários exemplos de hipocrisia e preconceito em nosso país. Mas não é só isso. Como dizia um folclórico candidato a Presidência da República: sinais, fortes sinais.
No último domingo, no Rio de Janeiro, uma pessoa que estava criticando o ato em favor de Bolsonaro foi agredida e teve que ser levada ao hospital com uma fratura exposta. Nas redes sociais dos bolsonaristas, foram postadas imagens mostrando como os “cidadãos de bem” são ordeiros e nenhuma vidraça de banco foi quebrada nas manifestações em defesa do Presidente.
No dia 29 de maio, durante um ato contra o governo, uma pessoa que não tinha nada a ver com a manifestação tomou um tiro da polícia e perdeu um olho. Ufa, era só o olho de um trabalhador e não uma estátua. Então tudo bem, não é?
No ano passado, quando um policial militar da Bahia atirou contra os colegas entoando bordões bolsonaristas, os “cidadãos de bem” deram apoio e não chamaram ele de terrorista. Afinal, nenhuma vidraça foi quebrada.
Quando um bando lançou coquetéis molotov dentro da sede do grupo de humoristas “Porta dos Fundos”, os “cidadãos de bem” também não acharam que era terrorismo. Nenhum monumento homenageando um estuprador, escravocrata ou assassino em massa foi prejudicado. Segue o baile.
Também não foi nada demais quando o senador Cid Gomes tomou um tiro durante um motim de policiais no Ceará que foi estimulado por bolsonaristas. O dia em que o deputado federal Jean Wyllys foi obrigado a sair do país depois de sofrer ameaças de morte? Foi um grande dia. E a agressão sofrida ao vivo pelo jornalista Glenn Greenwald? Outro grande dia.
De um lado estão aqueles que podem ameaçar, dar tiros, incitar motins, agredir, jogar bombas e cometer atentados impunimente. Do outro, estão aqueles que não têm o direito a reagir. Aqueles cujas vidas têm menos valor que uma estátua ou uma vidraça. O “cidadão de bem” pode tudo. Para quem protesta contra a desigualdade, aplica-se a lei. Em alguns casos, a lei do cão.
A extremista Sara Winter tentou organizar uma milícia em Brasília, ameaçou dar socos em um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e ainda soltou fogos de artifícios simulando tiros em frente à corte. Cidadã de bem. Não queimou nenhuma estátua. Responde o processo em liberdade. Assim como o deputado Daniel Silveira, que fez um vídeo dizendo que queria dar uma surra em um ministro do STF “com um gato morto até ele miar”. Cidadão de bem. Não quebrou nenhuma vidraça. Está solto.
Para essa gente, ameaças contra estudiosos e jornalistas não são coisas para se preocupar. Um policial fardado gravando um vídeo incitando a violência contra a oposição ao governo não é motivo para punição. Afinal, nenhum “patrimônio” foi atingido. São apenas vidas humanas. Como aquelas mais de 550 mil que se foram em função do descaso do Presidente com a Covid-19.
A gente já sabia o que ia acontecer. O assassinato de Mestre Moa por um bolsonarista em 2018 era um sinal. Os mais de 50 atentados violentos de bolsonaristas nas últimas eleições presidenciais também. Antes disso, houve a “comemoração” do assassinato de Marielle Franco, o atentado a bomba no Instituto Lula e o atentado a tiros contra a caravana do ex-presidente no Paraná.
Mas para os “cidadãos de bem”, nada disso é terrorismo. O que realmente ameaçou a democracia foi quando um grupo queimou a estátua que representa o agente de um genocídio. Já quando um Presidente da República ameaça cancelar as eleições, aí é jogar dentro “das quatro linhas da Constituição”.
De um lado estão aqueles que podem ameaçar, dar tiros, incitar motins, agredir, jogar bombas e cometer atentados impunimente. Do outro, estão aqueles que não têm o direito a reagir. Aqueles cujas vidas têm menos valor que uma estátua ou uma vidraça. O “cidadão de bem” pode tudo. Para quem protesta contra a desigualdade, aplica-se a lei. Em alguns casos, a lei do cão.
O Estado Democrático de Direito está inconsciente, na UTI e sem oxigênio. Só falta um bando de malucos desligar os aparelhos. E eles já sabem que não serão punidos. Sinais. Fortes sinais.
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