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TEORIA

A nova razão do mundo e o “governo da alma” neoliberal

Francisco Alberto, de Maceió, AL*
Boitempo

A frase de Margareth Thatcher em uma entrevista é impactante: “A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma.” A frase reflete um ponto central: o neoliberalismo atual não é apenas um modelo de não intervenção estatal na economia, caracterizado pela retirada de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Não somente. 

Este texto visa introduzir o leitor à obra A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016). Pierre Dardot e Christian Laval abordam a construção do sujeito neoliberal a partir da consolidação do modelo neoliberal vigente. Compreender o capitalismo a partir de seus dispositivos de dominação ideológica é fundamental para entender a construção desse sujeito, que é pautado por uma nova razão do mundo. Esse nova razão passa por uma subjetivação neoliberal que não se restringe ao mercado em si, tampouco às atividades econômicas mais gerais, mas a todos os campos da vida social. 

Compreender o capitalismo a partir de seus dispositivos de dominação ideológica é fundamental para entender a construção desse sujeito, que é pautado por uma nova razão do mundo.

Para os autores, a atual fase do neoliberalismo não só não se resume a atividade econômica como também traz elementos distintos do próprio liberalismo clássico. Traduzido em uma nova forma de governança dos sujeitos, e pautada por uma nova relação entre Estado e economia, a nova razão neoliberal é uma razão de ser baseada na construção de uma subjetividade neoliberal introjetada em todos os atores sociais, calcada na noção de “empreendedor de si mesmo”, “responsável por si”, etc. É ancorada na governança de si e na extensão da concorrência capitalista a todos os domínios da vida social, rejeitando toda forma de solidariedade social entre os indivíduos. 

Descrevendo a nova racionalidade neoliberal, em termos foucaultianos, os autores estabelecem criticamente um dialogo que vai desde os teóricos liberais clássicos, passando por Spencer e utilitaristas (Stuart Mill) até a escola austríaca, abordando de forma detalhada como se criam as condições para o novo sujeito neoliberal. 

A esquerda radical e alternativa não pode contentar-se com denúncias e slogans, muitas vezes confusos, parciais ou atemporais. Assim, é errado dizer que estamos lidando com o “capitalismo”, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradições, que inevitavelmente levariam à ruína final. Eficácia política pressupõe uma análise precisa, documentada, circunstanciada e atualizada da situação. O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo,transformando profundamente as sociedades. (grifo meu) (p.9)

Alguns antecedentes à crise de 1929 são importantes para esclarecer a refundação intelectual do liberalismo. Os autores buscam em Herbert Spencer um dos antecessores intelectuais para essa refundação. A noção de liberalismo, nesse sentido, passaria por uma separação completa da noção fundacional de defesa absoluta do laissez faire. A defesa do laissez faire é ancorada no pressuposto básico do liberalismo clássico: o de que o mercado se autorregula. A lei da oferta e da demanda é o critério central do equilíbrio social. 

Contudo, surgem questionamentos a alguns elementos do liberalismo clássico por parte do colóquio Walter Lippmann (1938) e da Sociedade Mont-Pelerín (1947). Essas reuniões constituíram as sucessivas tentativas de dar resposta política ao que argumentavam como a falência do liberalismo clássico em manter um equilíbrio social. O primeiro agrupou tanto os ordoliberais (Willhem Hopke), defensores de uma redefinição do estado liberal associado a uma proposta de economia social de mercado, assim como conhecidos nomes da Escola Austríaca, como Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek. A Sociedade Mont-Pelerin funcionava já como um movimento intelectual coeso, tendo como figura central Mises, Hayek e Milton Friedman, dentre outros, na busca pela hegemonia da governança neoliberal. 

A redefinição do estado 

O questionamento central feito pelos defensores da reconstrução do liberalismo é dirigido ao liberalismo clássico mas também ao que se consideravam dois “totalitarismos”: a planificação econômica de transição socialista e o nazi-fascismo. Considerados “extremos” de uma mesma moeda, o “coletivismo”, o caminho proposto seria o de um novo liberalismo. Uma das perguntas feitas seria: qual seria a natureza da intervenção estatal nesse “novo liberalismo”? Não houve consenso entre os participantes dos colóquios mencionados, pois correntes de pensamento surgem como uma forma de dar respostas para além do liberalismo do século XIX, a exemplo do ordoliberalismo quanto do austroliberalismo. 

Aqui não veríamos mais uma visão do Estado como não interventor, mas uma redefinição da intervenção estatal aplicável a nova razão do mundo, que colocasse em xeque toda e qualquer forma de solidariedade social nos aspectos mais profundos da vida cotidiana, para alem do desmanche das políticas publicas. Essa redefinição abre portas para a convergência entre neoconservadorismo e neoliberalismo, e para um estado não só guardião da propriedade privada, como também dotado de dispositivos semelhantes aos de uma empresa, a partir de critérios de metas e eficiência. Essa redefinição, como vemos, não possui apenas a sua versão de direita, como também sua roupagem à esquerda (o blairismo via o New Labour), bebendo da fonte ordoliberal da economia social de mercado, a fim de administrar a crise do capital. 

Através desse movimento de refundação liberal, começa-se a aprofundar questionamentos já existentes à própria democracia, à noção do sufrágio universal, radicalizando-os em favor do predomínio absoluto do mercado nas subjetividades. O próprio modelo de democracia liberal construído a partir do liberalismo clássico do século XIX passa a ser visto como um modelo custoso. As noções de cidadania, participação popular e soberania passam a ser combatidas como um obstáculo a eficiência do estado em seus objetivos já redefinidos.         

Hayek, desse modo, defende uma modificação na natureza da intervenção estatal na economia, baseada em uma sociedade de direito privado (p.176). Nessa sociedade, o que estaria em jogo não é o debate sobre o livre mercado em si, mas sobre a preservação da ordem do mercado a partir do papel do estado em preservar, se necessário pela coerção, as regras de conduta “justas” para a preservação dessa ordem. A própria noção de social, para o neoliberal austríaco, é um obstáculo para a preservação dessa ordem natural. 

De fato, ninguém menos que o próprio Hayek, em entrevista dada em 1981 ao jornal chileno El Mercurio, reconhecerá as afinidades eletivas entre o neoliberalismo e o autoritarismo: “é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”. (YAZBEK;CASTELO BRANCO; CASARA, R.R.R., 31/08/2020)

Os dispositivos da nova razão: a necessidade de compreendê-los

Dardot e Laval caracterizam que ocorreu um erro de diagnostico durante as décadas de 1970 e 1980. Esse erro consiste em caracterizar o neoliberalismo apenas enquanto política econômica neoliberal, ancorada na defesa do livre mercado. Segundo essa caracterização, “o neoliberalismo seria interpretado como reabilitação pura e simples do laissez faire” (p. 15). 

O que temos é a radicalização das ideias neoliberais, onde por meio de sua concepção de homem, é possível entender o homem como egoísta e em busca de riscos dentro da lógica da concorrência; aqui a ética da competição é radicalizada sem o nome “social” ou alguma garantia que equivale a esse termo. A competição dos indivíduos num regime de livre mercado é estendida não só as relações econômicas, mas a todos os setores da vida social, inclusive as relações cotidianas. Engana-se quem previu a morte do liberalismo econômico após a crise de 29, pois o que há não é o fim do liberalismo, mas um aperfeiçoamento das técnicas de governança de estados e pessoas em favor da concorrência do mercado. 

O grande erro cometido por aqueles que anunciam a “morte do liberalismo” é confundir a representação ideológica que acompanha a implantação das políticas neoliberais  com a normatividade prática que caracteriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, o relativo descrédito que atinge hoje a ideologia do laissez-faire não impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine mais do que nunca enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, isto é, capaz de orientar internamente a prática efetiva dos governos, das empresas e, para além deles, de milhões de pessoas que não têm necessariamente consciência disso. (p.16)

Pelo contrário: a sociabilidade neoliberal passa a contar com dispositivos que vão alem da utopia de defesa da autorregulação do mercado. Dois pesos e duas medidas para a nova razão: um estado intervencionista para a manutenção do modelo de Estado empresarial, impopular para a classe trabalhadora e redefinido pelas relações de concorrência, do ponto de vista da classe dominante, com um forte ingrediente: a noção do empreendedor de si internalizada na vida cotidiana, e mesmo seduzindo parcelas da própria classe trabalhadora. 

Referências bibliográficas:

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo. Boitempo, 2016.
YAZBEK, André; CASTELO BRANCO, Felipe; CASARA, R.R.R. Vamos levar o neoliberalismo a sério? << https://revistacult.uol.com.br/home/vamos-levar-o-neoliberalismo-a-serio/>> Acessado em: 07/06/2021
*Cientista Social e mestrando em Educação pela Universidade Federal de Alagoas.