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BRASIL

Roberto Leher: o orçamento das universidades federais e a perigosa combinação de neoliberalismo e neofascismo

Roberto Leher, do Rio de Janeiro, RJ
Arquivo / Luiz Felipe Albuquerque

O exame acurado da situação orçamentária das universidades federais e do aparato de ciência e tecnologia (C&T), sob o governo Bolsonaro, permite uma conclusão: é propósito de seu governo desconstituir as universidades, as instituições científicas federais e as políticas de fomento ao setor. A continuidade dessas políticas destrutivas pode provocar consequências duradouras. O sufocamento orçamentário combinado com as novas mudanças na Constituição Federal – como a reforma administrativa – pode demandar um longo, penoso e incerto processo de recriação das instituições universitárias e de C&T. A defesa do patrimônio cultural, universitário e científico do país exige, inequivocamente, a luta pela interdição do mandato presidencial: os crimes contra o futuro da ciência compõem o rol de muitos outros crimes de responsabilidade (1)

Longe de ser um consenso entre os opositores do governo Bolsonaro, o presente artigo propugna que o combate às suas políticas devastadoras somente pode ter efetividade se a estratégia de luta combinar as agendas da ‘guerra cultural’ – especificamente, a agenda neofascista – com outra, mais ampla e que possui maior organicidade com o bloco no poder, a agenda do neoliberalismo extremo. O tema é complexo, visto que os nexos entre o bolsonarismo e a agenda do bloco são opacos e plenos de incongruências e conflitos, levando muitos analistas a atribuir um exagerado, quase que absoluto, grau de autonomia do governo frente aos setores dominantes. 

Na perspectiva do estudo aqui esboçado, tal leitura desconsidera importantes vasos comunicantes entre o bloco no poder e o governo Bolsonaro, sobretudo no âmbito do Estado e da economia. Um inventário das notas, cartas e declarações das entidades empresariais permite vislumbrar o alcance dessas conexões. As duas agendas se interpenetram, mas, nem por isso, perdem suas particularidades e suas autonomias relativas. Ou seja, nem todos os neoliberais extremos são necessariamente adeptos do neofascismo, mas, dialeticamente, não podem prescindir da autocracia burguesa e, por isso, abrem a ‘caixa de Pandora’ em que viceja o neofascismo; inversamente, os neofascistas podem manejar agendas com relativa autonomia frente ao bloco no poder estabelecido, mas não podem se descolar inteiramente de sua agenda. 

No caso do Brasil de hoje o ‘andar de cima’ não possui uma representação governamental própria. A relação entre as frações burguesas que compõem o bloco no poder e o “bolsonarismo” é, simultaneamente, de afinidade e de conflito. A aproximação ideológica do “centrão” – e suas representações econômicas –, acabou se tornando mais orgânica e possibilitou a participação do agrupamento no governo e a vitória robusta de um deputado a ele vinculado como presidente da Câmara, ampliando sua base propriamente política constituída por segmentos das Forças Armadas, polícias e afins, igrejas diversas, entre os mais organizados. O andar de cima apoiou o candidato no segundo turno das eleições de 2018 e na defesa das chamadas ‘reformas’ constitucionais, no ataque aos direitos e à autoorganização dos trabalhadores e na efetivação das privatizações. Os conflitos tornam-se mais explícitos quando o governo não entrega as benesses prometidas, não toma medidas para estancar as perdas econômicas advindas da pandemia ou quando o intento presidencial de autonomia vis-à-vis ao bloco no poder assume proporções ameaçadoras. O movimento do bolsonarismo não é guiado inteiramente pelo cabresto dos operadores do bloco no poder (como tampouco ocorreu com Mussolini e Hitler) e, consequentemente, a relação é, sempre, marcada por forte grau de incerteza política.   

Em decorrência dessa complexidade, muitas análises e posicionamentos institucionais acabam focalizando as ações do governo Bolsonaro como se estas decorressem apenas dos aspectos mórbidos que caracterizam sua gestão. De certo modo, um pensamento que é relativamente confortável, pois não se confronta com o bloco no poder. Entretanto, é uma apreciação ineficaz, pois desconsidera que os cortes orçamentários que inviabilizam as universidades públicas, a ciência e a cultura são indissociáveis das contrarreformas do Estado de cariz neoliberal extremo. 

Embora conhecido, é necessário lembrar que, no contexto do agravamento da crise econômica em 2013, os setores dominantes inicialmente buscaram manejar a crise “dentro da ordem”, logrando a nomeação de Joaquim Levy como ministro da Fazenda em 2015; coerentemente, o ministro indicado pelo ‘andar de cima’ promoveu duríssimo corte no orçamento social da União que afetou drasticamente as universidades. Entretanto, por diversos motivos, a agenda do ministro não se efetivou com a radicalidade esperada (foi Levy quem demandou o estudo do Banco Mundial “Um ajuste Justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, V.1, Síntese, Novembro de 2017” que propugna o fim da gratuidade do ensino superior público brasileiro) (2) e, por isso, o bloco no poder não hesitou em construir um forte consenso entre os possuidores de bens para romper as últimas amarras para o pleno desenvolvimento das contrarreformas, empreendendo o golpe de 2016. 

Imagens dos cortes orçamentários

O sufocamento orçamentário das universidades e da área de ciência e tecnologia não está desvinculado do movimento liderado pelo ‘andar de cima’ de destruição da Constituição de 1988 como etapa a ser vencida para implementação de uma nova ordem econômica e política que se caracteriza pela autocracia e pela dissolução dos direitos sociais. A destruição do serviço público não pode ser concebida como obra solitária do presidente Bolsonaro, fruto de sua postura expressamente antidemocrática e de sua ignorância sobre o valor das universidades e da ciência em geral. Duas proposições, mescladas em distintas proporções, apenas eclipsam o entendimento e a transformação da situação vigente:

  1. Os cortes decorrem da incompreensão do presidente da República sobre a relevância das universidades, especialmente no contexto da pandemia, e do valor da ciência e da inovação para o desenvolvimento econômico e, por isso, os que defendem a ciência devem centrar sua argumentação na exemplificação das grandes contribuições que as universidades prestam ao país, como se isso fosse sensibilizar o entorno presidencial, e (menos frequentemente)
  2. Os cortes decorrem da política de austeridade, motivadas pela crise fiscal, denotando um processo conjuntural passível de ser superado com pressão sobre o parlamento e o governo para corrigir “excessos” de cortes nas leis orçamentárias: essa lógica naturaliza (e tecnicaliza) a perda orçamentária. Em 2021, o governo Bolsonaro bloqueou cerca de 40% do orçamento que, entretanto, já era 21% menor do que o de 2020. Assim, a pressão pela revisão do bloqueio desfoca o problema do corte. O governo “cede” na liberação gradual do bloqueio e preserva o corte de brutais 21% e, enquanto isso, as contrarreformas avançam.

Embora o presidente despreze as universidades por serem obstáculos aos seus intentos de ‘reforma’ cultural e fazer avançar o neofascismo, os cortes são justificados pela presidência pela suposta crise fiscal (repassar verbas para as universidades ou pagar o auxílio emergencial?) (3). As duas imagens esboçadas retiram da cena o apoio do ‘andar de cima’ às chamadas reformas que, afinal, emolduram os cortes de gastos obrigatórios nos marcos da EC no 95/2016. As reformas constitucionais já realizadas e pretendidas comprovam que a temporalidade não é da pequena conjuntura econômica, ao contrário: a mudança constitucional projeta o futuro de longo prazo das instituições. De certo modo, as proposições apresentadas realizam uma estranha dissociação entre as juras de amor à ciência e à educação realizadas por economistas vinculados aos bancos e aos grandes grupos econômicos, a exemplo da recente Carta dos 500 Economistas, e o posicionamento dos mesmos sujeitos, por meio de suas entidades representativas, que anunciam disposição de apoio ao governo Bolsonaro se o seu governo acelerar a tramitação das ditas reformas (PEC 186, 188, 109, 32) (4). Entre o CPF e o CNPJ é prudente mirar a representação de classe que, a rigor, prevalece na atuação dos sujeitos sociais. 

Periodização dos cortes dos recursos para as universidades federais e para a área de C&T

Para compreender a destruição absoluta do orçamento e dos recursos efetivamente disponibilizados para as universidades federais e para C&T é necessário, inicialmente, elaborar uma periodização para que os cortes não sejam entendidos como “mais do mesmo”, uma simples continuidade entre Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, ou como exclusiva consequência do golpe de 2016 ou mesmo inaugurada no governo Bolsonaro. No caso das Federais, o período compreendido entre 2007 e 2013, período de expansão do sistema, foi de elevação de recursos na ordem de 250%. A inflexão se deu em 2014. A periodização é imperiosa, pois, como demonstra o estudo, não é possível indiferenciar os cortes entre 2014 e 2021: existem particularidades que são cruciais para a análise do desmanche dos recursos das universidades federais e de toda área de ciência e tecnologia. 

A periodização utilizada no texto adota como critérios: 

a) se os cortes foram principalmente por meio de contingenciamentos ou por redução na lei orçamentária; 

b) se os cortes vieram acompanhados de medidas explicitamente hostis à liberdade de cátedra e à autonomia universitária e, ainda, 

c) se os cortes compõem um novo arcabouço constitucional capaz de impor coercitivamente alterações no orçamento da União. 

Inicialmente, cabe observar a evolução recente dos gastos da União para a educação (Gráfico 1) e para C&T (Gráfico 2) e, desse modo, extrair elementos que fundamentem a proposta de periodização. Os números abaixo, coligidos por Amaral (2021a) (5), contribuem para a compreensão desse processo.

 

Elaborado por Amaral, 2021a

Elaborado por Amaral, 2021a

a) Período de contingenciamentos (2014-2016) 

Como é possível verificar nos Gráficos 1 e 2, a primeira grande queda orçamentária ocorreu entre 2014-2016. Com o agravamento da crise em 2013, o governo Dilma manteve a correção inflacionária dos orçamentos (o que é imprescindível e democrático) mas, pressionada pelo andar de cima, realizou enormes cortes por meio do contingenciamento dos repasses previstos na Lei Orçamentária Anual – LOA. Alguns aspectos do Gráfico 1 contribuem para o dimensionamento do problema. Entre 2014 e 2015 os recursos liquidados do MEC caíram cerca de 12%. A mesma tendência pode ser observada no Gráfico 2: no caso da área de C&T as verbas liquidadas em 2015 foram 32% inferiores as do ano anterior. 

É significativo observar que as universidades foram atingidas de modo especialmente severo, acima das perdas do MEC em geral. Os recursos de investimentos das universidades (Gráfico 4) quase que desapareceram nas Federais (queda de 68% e, o que é extremamente grave, os recursos ainda disponíveis ficaram sob controle do MEC que liberou os recursos com metodologia de ‘balcão’, gota à gota, caso a caso). A queda das verbas de custeio (Gráfico 3) (15%) impôs uma perda superior a R$ 1 bilhão em um orçamento que já era apenas suficiente para cobrir as contas. Considerando o processo de expansão de novos campi e de estudantes a partir de 2008 e, também, o peso crescente do custo da força de trabalho terceirizada e a elevação do custo da energia, em 2014 muitas das grandes universidades já acumulavam déficits importantes. A perda de recursos de custeio provocou drástico aprofundamento da crise financeira em diversas instituições. Os cortes posteriores, por conseguinte, agravaram uma situação que, em 2015, já assumia extrema gravidade.

b) Queda orçamentária decorrente da EC 95, materializada na LOA, aprofunda o sufocamento financeiros das instituições – 2017-2018.

Como pode ser visto nos Gráficos 1, 2, 3 e 4, a EC no 95/2016 restringiu drasticamente o orçamento da educação, da ciência e da cultura. De fato, a partir de 2017 (primeiro ano de aplicação da EC 95), a queda não decorre apenas do contingenciamento, mas fundamentalmente dos cortes na LOA. Desde então, ocorre redução nominal do orçamento. Os recursos liquidados da função educação (Gráfico 1) de 2018 foram 17% inferiores aos de 2016. Nas universidades federais os cortes foram ainda mais acentuados:

Elaborado por Amaral, 2021a

Em 2016, as verbas de Outras Despesas Correntes (custeio em geral) das 63 Universidades Federais foram de apenas R$ 8 bilhões (13% inferiores às de 2014, em virtude dos contingenciamentos). Os recursos executados em 2016 são a base de cálculo dos orçamentos subsequentes, conforme a EC 95. Desde então, a redução dos recursos passa a ser propriamente orçamentária. O orçamento liquidado de 2018 (R$ 7,5 bilhões) é 7,5% menor do que o de 2016 e, como pode ser visto no Gráfico 3, marca um processo cumulativo de quedas. 

A EC 95 se converteu em uma “lei de ferro” utilizada pelo bloco no poder para finalmente reduzir orçamentariamente as despesas obrigatórias, como o custo dos servidores, aposentadorias, manutenção vegetativa do aparato estatal etc. Com isso, as universidades tiveram de efetivar demissões em massa de terceirizados, em detrimento da manutenção, e estagnar ou mesmo reduzir as políticas e ações de assistência estudantil, inclusive no contexto de pandemia em que tais políticas são mais necessárias do que nunca, visto a devastação dos empregos e das condições de vida da maioria do povo, assolado pela pobreza e pela fome, o que alcança as famílias de centenas de milhares de estudantes universitários brasileiros. 

O quadro é ainda mais grave nas verbas de investimentos: 

Elaborado por Amaral, 2021a

O Gráfico 4 comprova que o grande corte nos investimentos foi iniciado no governo Dilma que, em 2014, por meio de pesado contingenciamento, reduziu o montante já exíguo de R$ 2,8 bilhões (para as 63 universidades federais, enquanto as privadas receberam, em 2015, astronômicos R$ 24,4 bilhões por meio do Fies, em 2015) para pouco mais de R$ 900 milhões em 2015, um corte de 68%. O rigor da análise não pode omitir que a grande queda na ‘execução’ orçamentária rebaixou o padrão orçamentário, abrindo caminho para a efetivação da EC 95. De fato, após os cortes de 2014-2015 foi estabelecido um novo patamar orçamentário (ver Gráficos 3 e 4): a redução agora orçamentária seguiu sendo aprofundada. O orçamento de investimento (capital) de 2020, cerca de R$ 200 milhões, corresponde a apenas 30% do efetivamente liberado em 2016 e a indescritíveis 8% do orçamento de capital de 2014 (Gráfico 4). Esses valores, no período considerado, estão materializados no orçamento da União, não decorrendo fundamentalmente dos contingenciamentos. 

c) Combinação da EC 95 com a guerra cultural e com as novas contrarreformas constitucionais: (2019- )

A partir da posse de Bolsonaro, em 2019, o neoliberalismo extremo assume plenamente suas feições autocráticas. O governo empreende uma série de atos hostis à autonomia universitária, prioriza a nomeação de reitores que não foram legitimados por suas comunidades (6) e mobiliza o MEC para atuar como uma das trincheiras da ‘guerra cultural’. Em poucos meses já está evidente que as declarações de Bolsonaro contra a liberdade de cátedra não seriam proclamatórias (7). Além das iniciativas inequivocamente ofensivas à autonomia científica das instituições, da mobilização do aparato do Estado para coibir a liberdade de cátedra, os operadores da área econômica, em fina confluência com a agenda do bloco no poder, encaminham uma série de Propostas de Emenda Constitucional que radicaliza, ao extremo, a contrarreforma do Estado. A EC 95 segue sendo o fundamento dos cortes orçamentários, mas as demais PEC objetivam avançar, especificamente, sobre os gastos obrigatórios, principalmente os gastos com pessoal. É essa peculiar combinação de neoliberalismo extremo com os dispositivos da ‘guerra cultural’ que particulariza o terceiro período da redução orçamentária das universidades e da área de ciência e tecnologia em geral.

Vistos em conjunto, os três períodos indicados permitem compreender que o objetivo da agenda neoliberal de reduzir drasticamente os gastos sociais é como um fio condutor das decisões orçamentárias e financeiras. A queda de 40% nos recursos de custeio, entre 2014 e 2020, em valores constantes, é de suma gravidade, pois, como visto, em 2014, as universidades de maior porte já estavam sem cobrir a conta de 2 a 4 meses, dependendo das receitas próprias e do perfil de gastos das instituições. 

O atual grau de sufocamento orçamentário das universidades é potencializado por igual processo de estrangulamento orçamentário da área de ciência e tecnologia, o que leva ao sucateamento de equipamentos, a não aquisição de insumos e de novos equipamentos em áreas sensíveis.  A situação do desmanche é magnificada pelo fato de que o custo das terceirizações cresceu fortemente a partir da segunda década do século: indevidamente, o grosso dos recursos de custeio é para pagar pessoal outrora vinculado ao serviço público, especialmente limpeza, segurança, infraestrutura geral, biotérios etc. A outra grande conta das maiores universidades é a energia. Em 2013, a tarifa (R$/MWh – IPCA/ ANEEL) (8) foi de R$ 300,2; em 2020, R$ 575,1, um acréscimo de 92%. O custo draconiano da energia para as universidades no Brasil é um dos indicadores mais explícitos sobre a ausência efetiva de prioridade para a pesquisa, pois estas instituições seguem as mesmas tarifas das residências, diferente de outros ramos da economia que possuem tarifas diferenciadas mais favoráveis. 

O que já era uma política nefasta (contingenciamentos em nome do ajuste fiscal), assumiu a forma de políticas de destruição das universidades. O gráfico 4 comprova que nenhuma edificação pode ser concluída, nenhum novo alojamento pode ser erigido, nenhuma infraestrutura acadêmica pode ser melhorada, nenhuma melhoria das estações e subestações de energia pode ser realizada. 

É a explicita materialização de uma política que objetiva interditar o futuro das instituições: não é equívoco, não é ajuste fiscal episódico, não é falta de reconhecimento do valor das universidades para os povos. O negacionismo reinante assume toda sua morbidade com a implementação deliberada do desmanche das universidades públicas como um dos pilares da nação. E o andar de cima está conivente com tal política.

Conclusões

O exame dos números permite concluir que a erosão dos recursos das Federais contém momentos distintos: a primeira queda rebaixou o patamar dos recursos liberados (mas não na LOA) por meio do grande contingenciamento de 2014/2015, guiado pela lógica do ajuste fiscal, abrindo um severo precedente, pois foi visto como algo puramente conjuntural e poucos setores se dispuseram a combatê-lo. A queda entre 2014 e 2015 foi de 15% nas verbas de custeio e de 68% nas verbas de investimentos. O fato é que o rebaixamento do repasse criou um padrão a partir do qual a EC 95 pode ser implantada.

A segunda grande queda ocorreu após o golpe de 2016, com a EC 95, em que o orçamento de custeio da LOA foi reduzido, resultando na queda de 27% e o orçamento de capital despencou, provocando uma queda de 70%. A novidade mais nefasta foi a alteração da própria LOA. Se, sob o ponto de vista prático, o contingenciamento de x% tem consequências semelhantes à redução dos recursos na LOA de x%, é evidente que, politicamente, a diferença é de imensa grandeza. A queda orçamentária na LOA é estrutural. Os princípios que regem a elaboração do orçamento, como a de que o orçamento do ano seguinte não será menor do que no ano anterior e, no caso das Instituições Federais de Ensino, ao menos irá repor a inflação, foram rompidos expondo a incrível vulnerabilidade do financiamento das Federais.

Somente um grande alheamento da análise da correlação de forças e da agenda das grandes frações burguesas pode desvincular tanto a primeira, como a segunda grande queda, dos agentes econômicos. Foram os setores dominantes, o dito mercado, que operou em prol do ajuste fiscal no governo Dilma Rousseff, movimento que culminou com a ida de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda. E foram os mesmos setores dominantes que forjaram as condições para a efetivação do golpe de 2016 e, com ele, implantar a EC-95. E são os mesmos setores dominantes que pressionam a chamada agenda das reformas no governo Bolsonaro, expressas sobretudo, pela PC 109, 188, 186 e 32. 

O governo Bolsonaro combina cortes na LOA e ações estratégicas de guerra cultural, conformando um terceiro momento. É certo que o ‘bolsonarismo’, ao empreender a guerra cultural contra as universidades, as instituições científicas, ao campo da cultura em geral, direciona com especial rigor a agenda econômica neoliberal contra as referidas áreas. E o faz motivado mais pela agenda política do que pela agenda estritamente econômica. Desse modo, o bolsonarismo é um elemento específico, particular, da insustentável situação econômica dessas instituições. 

Examinando o quadro de total insolvência das instituições universitárias, da área de ciência e tecnologia e do setor de cultura, é evidente que uma terceira grande queda orçamentária, agora definitiva para a completa refuncionalização dessas instituições, está sendo urdida. Se a análise mirar os setores dominantes, é possível concluir que, apesar das declarações de apreço a tais instituições, já foi forjado um consenso de que uma nova geração de reformas terá de ser efetivada. O argumento é conhecido. A EC 95, ao partir o orçamento federal em duas partes, gastos financeiros e gastos primários, submetendo apenas as despesas primárias ao ‘novo regime fiscal’, introduziu o elemento catalizador das novas contrarreformas. Os analistas do andar de cima mostram os dados que comprovam que, se não houver cortes substantivos nas despesas obrigatórias, o país entrará em colapso, pois não há mais recursos para investimentos etc. As despesas obrigatórias, no entanto, são especialmente as estabelecidas por dispositivos constitucionais e, por isso, concluem, ou as ditas reformas avançam ou o caos irá prevalecer. 

No contexto atual alguns analistas, usualmente porta vozes do mercado, a exemplo de Miriam Leitão, chamam a atenção para os riscos políticos de avanço do bolsonarismo nas entranhas do Estado caso a reforma administrativa, tal como se encontra na PEC 32, for aprovada (9). Muitos destes analistas, preconizam que é possível depurar do desmonte do Estado os elementos autocráticos que estão subjacentes. Está fora de questão que a alternativa é aguardar os confrontos no andar de cima entre as avaliações dos CPF e a dos CNPJ. Embora todas as dissidências na base de apoio a Bolsonaro sejam positivas, não é possível compatibilizar a dita agenda das reformas com a democracia. A reversão do estrangulamento orçamentário das universidades e da área de C&T tem como premissas o fim do governo Bolsonaro e o fortalecimento das lutas antifascistas. Entretanto, ao mesmo tempo, exige a derrota da agenda neoliberal, notadamente de seus pontos mais candentes, como as mencionadas EC 95 e PEC em andamento no Congresso Nacional. 

Não há como deixar de destacar um desdobramento cru dessa situação. A extrema direita bolsonarista e, por motivos diferentes, o bloco no poder, são agentes da extinção da universidade pública como instituição capaz de produzir conhecimento novo e de assegurar ambientes de formação humana sofisticados em termos científicos, tecnológicos, filosóficos, culturais e artísticos. Com a inviabilização das universidades públicas, especialmente com a dita reforma administrativa, todos os fundamentos do sistema nacional de ciência e tecnologia estarão desmanchados, um processo que, para ser revertido com a reversão das políticas neoliberais autocráticas, levaria anos, décadas, gerações. 

No bojo das lutas pelo afastamento de Bolsonaro/ Mourão, em 2021, é necessário trabalhar a agenda tática emergencial. Recompor, ao padrão de 2016, as verbas de custeio das Federais para R$ 8 bilhões, um acréscimo, imediato, de R$ 2,5 bilhões, é a medida basilar. Para efetivar melhorias emergenciais (2021), é imperioso o acréscimo de R$ 1 bilhão nos recursos de capital. Para garantir a assistência estudantil emergencial, as verbas do PNAES deveriam ter um aporte extra mínimo de R$ 2 bilhões. É crucial redimensionar, emergencialmente, as verbas do Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF) e a realização de concursos para as unidades hospitalares, tendo em vista a atual pandemia e os cuidados que serão necessários para a população em virtude do período pandêmico. A transição para o pós-Bolsonaro requer, ainda, o fim da lista tríplice e a definição de que as normas que regem o processo de escolha das/os reitores devem ser elaboradas pelas próprias instituições no gozo da autonomia universitária.

Para construir a resistência e erigir bases para o futuro das universidades é preciso realizar um balanço criterioso do modelo de financiamento das universidades brasileiras, buscando harmonizá-lo com o preceito da autonomia universitária e do imperioso reposicionamento destas instituições no rol da projeção de futuro da nação. O modelo de financiamento desvinculado de lei específica está fadado ao fracasso, pois torna as instituições vulneráveis às ingerências governamentais, seja as ideologicamente motivadas, como na presente ‘guerra cultural’, seja pelos agentes do mercado. Este tema será o foco de um novo texto, objetivando sistematizar algumas proposições sobre a agenda do futuro próximo. Por agora, o objetivo primeiro é impedir as contrarreformas constitucionais, especialmente a PEC 109 e a PEC 32 da dita reforma administrativa. 

*Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

NOTAS

(1) Eduardo Sombini. Bolsonaro comete crimes de responsabilidade em série, diz Rafael Mafei, FSP, Ilustríssima Conversa, 26/6/21, https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/06/bolsonaro-comete-crimes-de-responsabilidade-em-serie-diz-rafael-mafei.shtml?_ga=2.114467588.200578312.1624797861-125210654.1624797861&_mather=9be634ca495a3a1b
(2) Roberto Leher. Banco Mundial: ajuste regressivo e antidemocrático. Correio da Cidadania, 28/11/2017, https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12966-banco-mundial-ajuste-regressivo-e-antidemocratico
(3)  “O governo federal não cria recursos, ele recolhe recursos. O presidente teve que escolher as áreas prioritárias e as áreas que escolhemos, e ele me convenceu disso, foi colocar comida no prato dos brasileiros através do auxílio emergencial”, explicou [Milton] Ribeiro. Portal G1, 07/06/21, https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2021/06/07/em-visita-ao-es-ministro-da-educacao-fala-sobre-cortes-no-orcamento-do-mec-para-unidades-de-ensino.ghtml
(4) Roberto Leher. Um jantar à luz da autocracia burguesa. Carta Maior, 13/04/2021, https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Um-jantar-a-luz-da-autocracia-burguesa/4/50353
(5) Nelson Cardoso Amaral. Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução. A Terra é Redonda, 8/4/21, disponível em https://aterraeredonda.com.br/dois-anos-de-desgoverno-os-numeros-da-desconstrucao
(6) Roberto Leher. DEMOCRACIA E AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA – Medida Provisória da escolha de reitores é parte da guerra cultural em curso. O Globo, Ciência & Matemática Claudio Landim, 27/01/2020, https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/democracia-e-autonomia-universitaria.html
(7) Leher, Roberto. APONTAMENTOS PARA ANÁLISE DA CORRELAÇÃO DE FORÇAS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA: EM PROL DA FRENTE DEMOCRÁTICA. Educação & Sociedade [online]. 2019, v. 40 [Acessado 24 de Junho 2021], e0219831. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019219831>. Epub 09 Dez 2019. ISSN 1678-4626. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019219831.
(8) https://www.aneel.gov.br/relatorio-evolucao-tarifas-residenciais
(9) Míriam Leitão. Reformas para o projeto autoritário, O Globo, 22/6/21, https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/reformas-para-o-projeto-autoritario.html