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MUNDO

Equador: um balanço necessário

David Cavalcante*, de Recife, PE

Passados algumas semanas do domingo 11 de abril, quando ocorreu o 2º turno das eleições presidenciais no Equador, creio ser importante uma avaliação do resultado final, após a apuração que revelou uma virada do candidato banqueiro, Guillermo Lasso, apoiado pelas velhas oligarquias agroexportadoras e que tem relações com a Opus Dei, em detrimento do candidato de esquerda Andrés Arauz, candidato da “União pela Esperança-UNES”, apoiado por Rafael Correa. A maioria das pesquisas indicava uma vitória de Arauz sob o neoliberal e multimilionário Lasso, representante do capital financeiro.

O resultado final do 2º turno foi contraditório com o 1º turno, em dois aspectos: primeiro, considerando as eleições parlamentares para a unicameral Assembleia Nacional, com 137 deputados, o perfil político-ideológico foi de derrota da direita e do governo neoliberal de Moreno, onde os partidos que apoiaram Lasso, o CREO e o PSC, somente obtiveram 12 e 19 parlamentares respectivamente, e a UNES obteve 48 cadeiras, seguida do partido de base indígena Pachakutik, com 27 assentos, e a Esquerda Democrática com 18 vagas. Os demais partidos ficaram abaixo de 4 parlamentares, ou seja, considerando o perfil programático dos parlamentares de esquerda e centro-esquerda, há uma nova composição à esquerda, com 67% dos parlamentares. 

Segundo, que não se pode entender as eleições do 1º turno sem deixar de compreender sua relação com a derrota de Moreno e seu acordo com o FMI, a partir das jornadas de mobilizações indígenas e populares de outubro/19, com características de semi-insurreição em várias regiões do país, lideradas pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador-CONAIE, e que teve a adesão da maioria das organizações nacionais sindicais, indígenas e populares do país, apoiados pelos movimentos feministas, ambientais e de juventude de todas as matizes, inclusive das lideranças e coletivos relacionados com o movimento denominado “Revolução Cidadã”, liderado pelo ex-Presidente Rafael Correa. 

Dois fatores operaram para a derrota de Andrés Arauz, o primeiro foi uma forte campanha de criminalização de Rafael Correia e de boa parte das lideranças vinculadas a seu movimento político, estimulada pelo governo de Moreno com a cumplicidade de setores da Justiça e do Ministério Público, com forte peso da grande mídia empresarial, que teve muito eco nas classes médias urbanas, com reflexo real na capacidade de organização política de Revolução Cidadã e muitas das quais estão presas, exiladas e impossibilitadas de exercer seus direitos políticos plenamente, a exemplo do próprio ex-Presidente. 

Tal criminalização do correísmo foi bastante utilizada na campanha, tanto pela direita quanto por setores da esquerda, a exemplo da campanha de Yaku Perez e seus aliados, ao ponto de que o candidato de Pachakutik, ao questionar a lisura do resultado do 1º turno fez um pacto público com Guillermo Lasso, à frente das câmeras e de toda a imprensa, para tentar recontagem em algumas províncias, fato que foi habilmente usado pelo candidato da direita para passar uma falsa mensagem de que este seria um “homem de bem” solidário e democrata com a causa indígena. 

O “homem de bem”, o banqueiro que não era pior que um ditador, como o próprio Yaku afirmou em outro momento nas eleições anteriores, soube obviamente usar daquele momento de celebração à inocência. De público, concordou com a recontagem, mas obvio e ululante sabotou qualquer possibilidade de acordo de recontagem que pudesse ameaçar sua própria passagem para o 2º turno. 

Este fato pode ser considerado decisivo, pois Yaku Perez ao pactuar com o banqueiro durante dias pela grande imprensa possibilitou que Lasso galvanizasse grande parte das bases eleitorais de Pachakutik, com um perfil “fake” que não tinha conseguido ter no 1º turno, e que historicamente não condiz com sua vida política de especulador financeiro e megaempresário, inclusive tendo, durante as manifestações de Outubro19, bradado aos berros pela imprensa, que o governo pusesse ordem no país, ou seja, que o Governo de Moreno fizesse exatamente o que fez, ordenasse a brutal repressão, e alvejasse os manifestantes com armas letais, gerando pelo menos 8 mortes e 1.340 feridos, nos 11 dias de protestos sociais. 

Yaku Perez, apesar de que tinha todo o direito de requerer recontagem, não podia, justamente por ter vínculos com uma parte dos movimentos sociais indígenas, de ajudar a limpar o nome de Lasso perante a opinião pública e perante a base indígena, que foram as maiores vítimas do pacote de dolarização do então Ministro de Jamil Mahuad, o Sr. Guillermo Lasso, e dos diversos planos perpetrados pelos grandes capitalistas daquele país. 

Por outro lado, não fosse suficiente o pacto público com Lasso, Yaku Perez e a direção de Pachakutik, cometeram o maior e decisivo erro: chamar o voto nulo no 2º turno. Na verdade e na prática um voto anti-Arauz e anti-Correa. A decisão pelo voto nulo teve grande impacto na votação do 2º turno. Grande parte dos setores e das bases eleitorais indígenas, que já estavam embevecidos pelo anti-correísmo, acabaram votando em Guilherme Lasso, com apoio de lideranças locais. 

Os votos nulos alcançaram um pouco mais de 1,7 milhões de votos, de um total de 10,8 milhões de votantes, ou seja, mais de 16% da votação foi de votos nulos, sendo que a diferença de Lasso para Arauz foi de um pouco mais de 419 mil votos. Não há dúvidas de que a posição pelo voto nulo chamada por Yaku Perez, Pachakutik, e principalmente pela maioria da direção da Conaie (embora o Presidente Jaime Vargas tenha sido contra o chamado ao voto nulo e tenha dado apoio público, no 2º turno, a André Arauz), além de Unidade Popular e outros coletivos ajudou na vitória do banqueiro, do agronegócio e do FMI. 

Há toda uma miríade de explicações para a decisão pelo voto nulo, algumas fantasiosas, como as que encontraram um suposto poder mágico de Rafael Correa (exilado para não ser preso), que teve seu partido usurpado pela justiça em favor de Moreno, que foi condenado à prisão e impedido de se candidatar pela justiça, e que mesmo assim teria manipulado essa mesma justiça, para favorecer o resultado do 1º turno, em que Arauz venceu, (e em acordo com Lasso????)

Chimborazo - Louis Remy Mignot (óleo sobre tela - 1859)Algumas explicações são mais justas e defensáveis, principalmente as que recorreram às experiências reais e negativas com o correísmo nas temáticas ambientais e indígenas. Mas nenhuma justifica o fato de que a vitória de Lasso sobre Andrés Arauz facilitará a tentativa de implementação de um pacote ainda pior do que o que Moreno tentou impor em 2019, com o apoio do próprio Lasso e não conseguiu. Por outro lado, a decisão por um voto crítico em Andrés Arauz não significaria nem a renúncia às críticas resultantes do balanço dos governos de Correa, como bem sintetizou Toussant (1), nem um compromisso em participar do que seria um suposto futuro governo do correismo. 

Yaku Perez e Pachakutik poderiam ter escolhido melhor o campo das próximas e iminentes batalhas. A escolha da travessia entre um terreno arenoso e um campo minado diz muito sobre a lucidez de qualquer peregrino. Yaku, em declaração recente para um canal de telenotícias (2) afirmou: “a derrota do correísmo é parteira de uma nova esquerda”. A experiência histórica indica que, para além da legitimidade e do necessário pluralismo ideológico e político que deve buscar as esquerdas para pleitear as grandes transformações sociais, nenhuma saiu vitoriosa se apoiando nos algozes dos interesses da maioria do povo. Lasso, antes de tomar posse, já sinalizou a que veio: irá convidar o desmoralizado Juan Guaidó para supostamente representar a Venezuela na posse do mandatário. Oxalá o resiliente movimento das bases indígenas equatorianas continue altivo e seja capaz de enfrentar mais uma vez as adversidades que certamente virão. 

*David Cavalcante é cientista político

NOTAS

(1) https://aterraeredonda.com.br/de-rafael-correa-a-guillermo-lasso/

(2) https://twitter.com/NTN24/status/1382338640722980869?s=08