No último dia 14, a Câmara de São Bernardo do Campo aprovou por 16 votos favoráveis, 2 contrários e uma abstenção, a utilização do chamado tratamento precoce contra a covid. Isso significa que agora médicos podem receitar medicamentos como azitromicina, ivermectina, zinco e vitaminas para pacientes contagiados pela Covid-19. O texto aprovado na Câmara tenta argumentar sobre a possibilidade do uso do tratamento profilático para ajudar a reduzir a superlotação dos leitos de UTI destinados ao tratamento da doença pandêmica. Porém, uma análise crítica do problema que leve a sério as evidências científicas sobre os medicamentos em questão não contribui para a hipótese principal da proposta. Comentaremos o texto a seguir para justificar nosso repúdio perante tal medida.
A indicação de número 2720/2021 [1] inicia com uma série de considerações factuais sobre o estado grave da pandemia no âmbito federal e municipal, entre elas o colapso do sistema de saúde, a falta de leitos e o avanço lento da vacinação. Após esse levantamento importante, inicia-se um fio argumentativo anticientífico, fantasioso e irresponsável sobre como o tratamento precoce supostamente poderia ajudar nesse cenário.
A primeira consideração do tipo traz a seguinte afirmação: “[…] a exemplo de alguns municípios brasileiros como Chapecó, Búzios, Porto Feliz, Sorocaba, Porto Seguro, entre outros, que obtiveram resultados positivos utilizando tratamentos que se somam a vacinação, tratamento ordinário realizado como meio de prevenção e nos leitos comuns ou de UTI”. Porém, não são citados quais resultados positivos seriam esses, além de não serem citadas as evidências da ineficiência do tratamento precoce nessas cidades, ou ainda pior, os casos onde a adoção do tratamento apresentou resultados negativos. Uma rápida pesquisa na internet apresenta diversos links com essas informações. Tomemos por exemplo a cidade de Chapecó (SC), que apresentou mortalidade superior à média após a adoção do tratamento profilático [2], ou então Armação dos Búzios (RJ), que por conta de uma publicação no twitter do senador Flávio Bolsonaro, sofreu uma onda de notícias falsas que diziam que o município teria zerado as internações de pacientes com Covid-19 devido ao uso do tratamento precoce, quando na verdade, tal tratamento sequer foi adotado [3]. Já a prefeitura de Sorocaba (SP), citada diretamente no texto da Câmara como exemplo positivo, realizou uma postagem na última semana que beira o crime: foi anunciada uma pesquisa falsa que comprovaria a eficácia do tratamento profilático em 99%. Porém, essa pesquisa foi apenas um monitoramento telefônico sem rigor científico algum [4] e a prefeitura já correu atrás tentando apagar as postagens sobre tal evento. Tais supostas “referências positivas” usadas na sessão da Câmara de São Bernardo já dão o tom da proposta: o negacionismo científico vendido como se fosse, na verdade, ciência. Essa foi apenas a primeira consideração da indicação de número 2720/2021.
Seguindo para a consideração subsequente, é enunciado que o tratamento imediato não tem como objetivo substituir as medidas preventivas como a vacinação e o isolamento social. Todavia, sequer leva em consideração o efeito reverso que pode ter na população: uma vez que com o aval da prefeitura há a possibilidade de médicos irresponsáveis receitarem o tratamento precoce, o paciente pode passar a sentir uma falsa segurança que o leve a afrouxar as medidas de isolamento e de cuidado preventivo como o uso de máscaras adequadas. Diversas figuras públicas que advogam pelo uso do “kit covid” defendem que a ivermectina, por exemplo, não somente serve como tratamento da doença, mas também como tratamento preventivo, isso é, que seu uso em pacientes sem nenhuma carga viral o torna imune ao vírus. Não precisa de muito esforço para imaginar o efeito que o respaldo da Prefeitura de São Bernardo do Campo possa ter, considerando o dilúvio de fake news que atinge a população.
Outro ponto, ignorado na indicação, é sobre os efeitos que o uso indevido de medicamentos antibióticos, como a azitromicina, pode trazer. É amplamente conhecido no meio médico que o uso indevido desses tipos de fármacos pode produzir superbactérias, devido a mecanismos de seleção natural das bactérias resistentes a seus efeitos. Esse é um motivo fundamental, além da comprovada ineficácia no tratamento da Covid, para que a OMS não recomende o uso da azitromicina como tratamento profilático [5]. Inclusive, há evidências que o uso indevido do medicamento durante a pandemia da Covid-19 pode estar facilitando o surgimento da supergonorréia, causada por bactérias da gonorréia comum, porém, selecionadas e resistentes a medicamentos [6].
É evidente que o uso indevido desses medicamentos, além de não combater a covid, pode trazer problemas graves para a população em um futuro próximo. Porém, o texto da indicação 2720/2021 ignora tais evidências e ainda pontua que: “[…] segundo diversos médicos as medicações como ivermectina, azitromicina, zinco, vitaminas D e C, têm, por fim, reduzir a carga viral ou aumentar a imunidade, sendo crível que reforçando as proteções do corpo e diminuindo a carga viral”. Faltou dizer que os médicos que defendem tal uso estão desatualizados do desenvolvimento científico nessa questão.
Seguindo na mesma consideração, o texto defende o uso do tratamento precoce “[…] Isso vai de encontro ao Parecer de número 04/2020 do Conselho Federal de Medicina, uma vez que valoriza a relação médico-paciente, que juntos desejem realizar e enfrentar o tratamento, que notadamente “considerando que o princípio que deve obrigatoriamente nortear o tratamento do paciente portador da COVID-19 deve se basear na autonomia do médico e na valorização da relação médico-paciente, sendo esta a mais próxima possível, com o objetivo de oferecer ao doente o melhor tratamento médico disponível no momento”. Porém, esse foi um Parecer dado em abril de 2020, momento onde ainda não se sabia ao certo qual era a eficiência de diversos fármacos utilizados no kit covid. Desde então, diversos estudos foram realizados e seus resultados apontam que não há possibilidade de tratamento profilático contra a Covid e inclusive o próprio Conselho Federal de Medicina no último dia 19 manifestou no Senado Federal seu repúdio ao uso desse tipo de tratamento [7]. Novamente, vale lembrar que a Organização Mundial de Saúde atesta que o tratamento precoce é ineficaz baseado em todas as pesquisas realizadas desde o início da pandemia.
Na sequência, é levantada uma informação no mínimo curiosa : “[…] Com isso, temos um possível resultado de diminuição de mortes e de ocupação de leitos de UTI, sendo realizado tratamento em casa ou em leitos simples, desafogando as UTIs, como demonstrado pela queda de mortalidade de Porto Feliz, que chegou à 0,13% e a ocupação de UTIs de Búzios e Chapecó que foi reduzida”. Já tratamos sobre os casos de Búzios e de Chapecó anteriormente neste texto, e a afirmação utilizada na indicação da Câmara fica difícil de se sustentar ao se analisar as referências que citamos anteriormente [2] [3]. Já Porto Feliz (SP), de fato possui uma letalidade menor do que a do Estado de São Paulo (1,9% para a cidade, enquanto que o estado possui 2,9% – o índice de 0,13% citado no texto não foi encontrado), porém, isso pode ter ocorrido por diversas razões e é totalmente anticientífico atribuir uma relação de causalidade com o uso do tratamento precoce sem a aquisição de dados seguros que possibilitem um estudo aprofundado (o kit de tratamento precoce foi dado apenas a uma parcela mínima da população), enquanto simultaneamente se ignora todos os diversos estudos feitos pela comunidade científica internacional que contrariam tal tese como também os resultados de cidades brasileiras que aplicaram o uso do tratamento precoce porém apresentaram letalidade maior do que a média da doença [8] [9]. Além disso, dados de março indicavam que a taxa de contaminação da cidade de Porto Feliz era quase o dobro da média estadual: 827,9 por cada 100 mil habitantes (a média do estado nesse mesmo período era de 443,3 por 100 mil) [10].
É importante notar como todos esses supostos exemplos positivos citados na indicação carecem de evidências e a atitude de citar essas meias informações em uma audiência pública é no mínimo irresponsável. Espera-se que os representantes eleitos pela população cumpram o dever de ter o devido cuidado com a base de informações que são usadas para justificar alguma decisão política, ainda mais em uma situação crítica como é a pandemia que estamos enfrentando, onde além do vírus, a população está diariamente sendo bombardeada com falsas informações. Vale a pena notar que todos os exemplos citados na indicação foram temas de fake news desmentidas por diversos portais de verificação de informação, em que foram detectados o disparo massivo de mensagens no aplicativo WhatsApp disseminando tais informações falsas [11] [12]. Não é preciso fazer muitos esforços para ter uma ideia de qual grupo político promoveu tais disparos.
Levando tudo isso em consideração, é evidente que os vereadores da Câmara de São Bernardo do Campo, através da indicação número 2720/2021, acabam fazendo coro com a maré de desinformação promovida pelo bolsonarismo e pelas classes que pouco ligam para a vida da população. Pior do que isso, nessa atitude negacionista, ignoram todas as recomendações da comunidade médica e científica, que já descartam há alguns meses qualquer efetividade do falso tratamento precoce [13] [14] [15]. Para piorar, recentemente tem aumentado o número de estudos com evidências de que os medicamentos que compõem o kit-covid, além de ineficazes para tratar a Covid-19, podem também trazer complicações aos pacientes, causando efeitos colaterais como hepatite medicamentosa, problemas renais, infecções bacterianas, diarreia, arritmia cardíaca e gastrite [16-19]. Ao invés de fortalecer as medidas preventivas que são comprovadas, a indicação aposta no que já se foi provado que não funciona.
Os representantes de São Bernardo do Campo deveriam concentrar esforços nas medidas preventivas que são comprovadas cientificamente e estão sendo utilizadas no cenário internacional: aumento do uso correto de máscaras N95 e PFF2 através da distribuição e conscientização da população, esforços para realizar a testagem e vacinação em massa e o fortalecimento do isolamento social através do fornecimento de auxílio financeiro para os cidadãos (veja a proposta de auxílio emergencial para a cidade de São Bernardo do Campo), para que a população são-bernardense não seja forçada a situação desumana de escolher entre morrer de covid na rua ou de fome em casa. Essas medidas que são de fato preventivas contra a Covid-19, e não largar a população a sua própria sorte, brincando com o medo generalizado que nos cerca nesta crise pandêmica e que pode acabar levando pessoas a se medicarem erroneamente, com consequências públicas graves. A indicação número 2720/2021 nada mais faz do que legalizar essa péssima medicação e deve ser revista urgentemente.
*do núcleo da Resistência/PSOL.
Referências:
[3]https://www.sanarmed.com/fake-news-buzios-nao-zerou-casos-de-covid-19-com-tratamento-precoce
[5] https://www.bbc.com/portuguese/geral-54532598
[6] https://gizmodo.uol.com.br/supergonorreia-real-tendencia-piorar/
[8] https://cnts.org.br/noticias/de-10-municipios-que-adotam-kit-covid-9-tiveram-taxa-de-mortalidade-maior-que-a-media-do-estado/
[11] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2021/04/07/verificamos-municipios-zeraram-mortes/
[13] https://www.dw.com/pt-br/oms-recomenda-que-ivermectina-não-seja-usada-contra-covid-19/a-57068036
[16] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56457562
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