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MOVIMENTO

Enfermagem forte, SUS forte: As mudanças no currículo e a ofensiva contra a saúde pública

Núcleo de Enfermagem do Afronte!*
Agência Brasil

Nas últimas semanas foi aquecido entre estudantes e profissionais da enfermagem o debate sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da profissão. O Conselho Nacional de Educação (CNE) enviou à Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), entidade de classe responsável pela educação, cultura e ciência no âmbito da enfermagem. Em 2018 a ABEn propôs o processo de reavaliação das DCN e somente em 2021 essa minuta foi revisada e reenviada à ABEn com modificações e propostas  publicadas pelo CNE. 

As DCN são uma referência  para o fortalecimento das mudanças na formação e requerem discussão de  mudanças paradigmáticas no contexto acadêmico, que visem à formação de profissionais competentes, críticos, reflexivos, políticos e comprometidos com a saúde da população. Para isso, o arcabouço teórico e utilitário deve ser capaz de embasar uma assistência em saúde à população na saúde de forma humanizada, focada na atuação no SUS, alinhando o perfil do discente aos princípios do SUS a partir da discussão do processo de formação em suas múltiplas determinações. 

Observamos no documento de atualização a proposta de alterações com prejuízos graves relacionados à desvinculação entre a formação em Enfermagem e o Sistema Único de Saúde (SUS), o que impacta a categoria no tocante à edificação da enfermagem ser devidamente pautada pelos aspectos sociais que influenciam a saúde e o exercício da profissão ser viabilizado pela execução de políticas socioeconômicas que concretizem as ações previstas pela seguridade social no âmbito da saúde.

Outro elemento problemático trazido pela minuta é a perda de autonomia da categoria, o que prejudica o processo de cuidar a partir da sua própria tradição histórica, baseada em evidências científicas que atribuem ao cuidado a fundamentação científica e o caráter holístico, humanizado e crítico, cada vez mais contraposto ao perfil tecnicista. A autonomia do profissional de enfermagem no seu processo de trabalho é uma importante conquista legal da profissão enquanto categoria, sendo fundamental para a tomada de decisão na condução do cuidado de enfermagem – o que resulta na concretização de um modelo de saúde que considera o indivíduo em todas as suas dimensões e está focado na integralidade da saúde, desde a prevenção e promoção até à reabilitação, desviando da lógica produtivista que fragmenta o indivíduo e torna sua saúde objeto de lucro.

Além disso, a atualização propõe a desvinculação da licenciatura em enfermagem. Essa proposição é muito danosa, pois desconsidera o papel de educadores em saúde, fragiliza a construção crítica de conhecimento, prejudica o desenvolvimento de potencialidades em uma das importantes áreas da enfermagem, que é a docência. A fragilização do ensino de enfermagem no tocante à licenciatura peca, ainda, ao não detalhar princípios e diretrizes educacionais a serem seguidos, deixando nebulosa a abordagem sobre as linhas de cuidado, a educação continuada e permanente e a pesquisa científica – o que é nocivo à elaboração dos projetos político pedagógicos do curso. A alteração nesse aspecto da formação, como está proposta, tem potencial para resultar em ofensivas graves à construção de profissionais de enfermagem, pois afeta o pilar fundamental da ciência da profissão, arriscando sua fundamentação, credibilidade e atuação a partir do rigor científico.

Em alinhamento ao declínio do ensino e formação, a minuta é vaga ao abordar o Ensino à Distância (EaD), deixando aberta a possibilidade de criação de novos cursos em EaD, que desprezam a qualidade do ensino. A enfermagem é um curso essencialmente prático, pois não se aprende o cuidado crítico e humanizado, centrado na pessoa, sem o contato direto com o usuário da saúde e as trocas coletivas em cenários de prática que oferecem a vivência da realidade social no SUS. A pandemia impôs o ensino remoto e pudemos perceber os prejuízos à formação dos profissionais, com a fragilidade no aporte teórico devido às desigualdades no acesso, às lacunas de conhecimento ocasionadas pela passividade do aprendizado e a debilidade na aquisição de competências e habilidades indispensáveis ao exercício profissional. Esses prejuízos serão percebidos em longo prazo e deverão ser mitigados a partir de educação permanente e continuada, bem como é inadmissível que haja brechas nas DCN para a fundação de novos cursos com base essencialmente no EaD.

A minuta de atualização do CNE, infelizmente, coesiona-se com os propósitos cunhados pelo atual governo, sendo absolutamente contrária aos princípios mais caros à categoria de enfermagem enquanto fortalecedora de um cuidado crítico e referenciado no SUS. Como é característico de governos neoliberais, Bolsonaro, liderança de um governo de extrema direita e alinhado ao neofascismo, desde que assumiu a gestão federal enfraquece as políticas sociais desmedidamente e a saúde tem sido um alvo nítido, o que é coerente com a política de morte cunhada pelo bolsonarismo.

Desde a regulamentação da ADAPS – agência de direito privado que enfraquece a atenção primária à saúde – , o aumento dos subsídios aos planos de saúde, o enfraquecimento de programas e políticas de saúde  – como o Programa Nacional de Imunização (PNI), a Política Nacional de Saúde Mental e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) – até o lobby do grande empresariado financiador do governo para a institucionalização do camarote da vacina e contra a pauta do projeto de lei que prevê o piso salarial da enfermagem e o estabelecimento da jornada mínima de trabalho de 30 horas, é possível notar o empenho do governo Bolsonaro e seus fiadores para intensificar o sucateamento e o desmonte do sistema único de saúde e retomar um modelo de saúde inadequado ao atendimento das demandas da população.

A pandemia demonstrou de maneira veemente que o modelo universal de saúde, contido no SUS, é capaz de dar conta do processo saúde doença da população em todas as suas dimensões: da gestão e vigilância, prevenção e promoção da saúde, até a assistência direta às doenças e agravos, de acordo com os princípios da universalidade, integralidade e equidade. A enfermagem é a maior força de trabalho do sistema de saúde, principalmente no sistema público, contribuindo inegavelmente para a concretização do cuidado ao indivíduo, à família e à comunidade com referência social e política, pois é embasada em princípios científicos que se concentram nos aspectos biopsicossociais, culturais e espirituais do indivíduo, alcançando uma abordagem global sobre os determinantes sociais da saúde e seus condicionantes.

Essa proposta de atualização das DCN, aliada às medidas de enfraquecimento da saúde pública, é mais uma expressão da tentativa de retomada e fortalecimento do modelo biomédico da saúde, uma maneira de formar profissionais e ofertar assistência que não supre as carências do perfil epidemiológico e social brasileiro, fragmenta o indivíduo e o cuidado, abre espaço para a privatização e terceirização dos serviços em saúde e subjuga a vida ao lucro do grande empresariado envolvido no seguimento desse ideário de desmonte da saúde e da educação. 

Prezamos por uma enfermagem autônoma, científica, crítica, socialmente referenciada e mobilizadora em defesa do sistema único de saúde e de um modelo de saúde que seja eficaz no fomento à qualidade de vida da população brasileira. Estudantes, docentes e profissionais de enfermagem comporão a linha de frente da defesa de uma educação de qualidade para a categoria, de modo a consolidar seu papel na construção e realização de um SUS cada vez mais forte. 

 

*Cassia Heredia é acadêmica de Enfermagem da UFT; 

*Lígia Maria é enfermeira e docente no DF;

*Pâmela Farias é acadêmica de Enfermagem da Faculdade Cosmopolita-PA; 

*Ricardo Saldanha é acadêmico de Enfermagem da UEPA.