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BRASIL

Nada substitui o professor

Gilberto de Souza, de São Paulo, SP
Divulgação/Governo de SP

O governador de São Paulo Tarcísio de Freitas – como tem sido seu costume a frente da administração do estado – anunciou via imprensa a intenção de usar inteligência Artificial – ChatGPT – para produzir aulas digitais no lugar dos professores da rede estadual1.

A frente de tal projeto encontra-se o secretário de educação, Renato Feder, sócio da Multilaser.

Em primeiro lugar, é necessário discutir o conceito de inteligência artificial; a ideia absurda de que é possível existir uma outra forma de inteligência além da inteligência orgânica do Homem, a existência de algum dispositivo inorgânico tão ou mais inteligente que o próprio cérebro humano.

Vamos iniciar com três histórias bastante ilustrativas.

Miguel Nicolelis, um dos maiores neurocientistas do mundo, em um podcast, contou que em sua residência médica, supervisionado por um professor que admirava muito, atendeu um paciente em uma emergência durante um plantão em pronto socorro, o paciente dizia que estava passando mal; mas todos os exames realizados constataram que tudo corria normalmente, que ele, o paciente, não aparentava qualquer problema clínico.

Porém, quando chegou o seu professor, ele simplesmente olhou para o paciente sem tocá-lo e orientou que fosse imediatamente internado; mesmo com os exames constatando que nada havia de anormal – ele enfartou quarenta minutos depois de ser internado.

Moral da história: se fosse usado um programa de IA para atender o paciente ele seria liberado e teria morrido em casa sem qualquer possibilidade de atendimento médico.

A segunda história tem relação com a aviação; os aviões da família A300 da Airbus, assim como os Boeing 777 e 787, são aviões que podem transportar mais de quatrocentos passageiros e são completamente automatizados; basta inserir no sistema computadorizado do avião os dados do voo que será possível decolar, aterrissar e voar em velocidade de cruzeiro a altíssimas altitudes sem que os membros da cabine mexam em qualquer instrumento.

Mesmo com tanta tecnologia – Inteligência Artificial – é obrigatório que haja permanentemente dois profissionais na cabine de voo; o comandante/piloto e o primeiro oficial/copiloto.

A terceira história é decorrência da segunda.

Em 2009 houve o “milagre do Rio Hudson” – retratado em filme protagonizado por Tom Hanks – onde o piloto e o copiloto de um Airbus, que perdeu os dois motores em um inusitado choque com pássaros, pousaram no Rio Hudson em Nova Iorque salvando a vida das 159 pessoas a bordo.

O detalhe é que todas as decisões tomadas pelo piloto e pelo copiloto não estavam previstas nos manuais de voo ou iam abertamente de encontro – contra – com o que estabelecia esses manuais, além do que todos os sistemas computacionais do avião falharam.

Antes de se tornar herói – Sully, o piloto – tornou-se vilão. Sofreu um processo de investigação rigoroso por parte da agência de controle de acidentes aéreos dos Estados Unidos; justamente por adotar procedimentos não previstos nos manuais de voo, ou mesmo contrários a esses manuais.

Se não fosse a inteligência humana, O “milagre do Rio Hudson” se tornaria mais um desastre aéreo.

A conclusão de tudo isso é que não existe inteligência artificial; o que existe é a inteligência humana. – orgânica – que criou os dispositivos de IA – como ChatGPT.

Um sistema computacional, por mais avançado que seja, jamais será capaz de reproduzir as características da inteligência e do cérebro humanos; a capacidade de inovação, de lidar com o inesperado, a criatividade e, sem querer ser piegas, a emotividade e a afetividade que caracterizam o conhecimento e a inteligência humanos.

As máquinas, ou dispositivos de IA, são grandes bancos de memórias com respostas pré- programadas; portanto incapazes de criar ou inovar; ou ainda de qualquer reação de empatia, que caracterizam a inteligência humana, comandada pelo gerente do sistema nervoso central – nosso cérebro.

Por que o governo do estado de São Paulo insiste em digitalizar o ensino na escola pública paulista; indo na contramão dos principais sistemas de ensino do mundo?

Se é assim; a pergunta que fica é: Por que o governo do estado de São Paulo insiste em digitalizar o ensino na escola pública paulista; indo na contramão dos principais sistemas de ensino do mundo?

Na Suécia, Finlândia, Dinamarca e até na China, os conteúdos digitais e os dispositivos computacionais estão sendo retirados das salas de aula para dar lugar aos livros físicos e às interações entre alunos e professores e entre os alunos entre si; sem a mediação de dispositivos digitais.

A conclusão que se chegou nesses sistemas de ensino – que estão entre os mais eficientes do mundo – é que a digitalização do ensino tem impacto negativo nas aprendizagens dos alunos e no comportamento das crianças e adolescentes na escola e fora dela.

A resposta é que a plataformização e digitalização da escola pública em nosso estado é parte de uma política de privatização da educação e, ao mesmo tempo, de desqualificação dos professores da escola pública e de seu ofício.

Como dito anteriormente; o secretário de educação é sócio do fundo que controla uma grande empresa de produtos tecnológicos e de multimídia, está sendo investigado pelo Ministério Público por conflito de interesse; a empresa possui contratos de mais de duzentos milhões de reais, sem licitação, com a Secretaria de educação – a pasta que ele dirige – além de outros contratos com outras secretarias de estado.

Juntamente com essa empresa, Multilaser ou Multi (nome atual), da qual o secretário é sócio, existem outras empresas de conteúdo digital que veem na educação um grande mercado para seus produtos; contando com um grande aliado comandando a pasta no estado mais rico do país.

Lembremos que Renato Feder, em 2023, chegou a anunciar que São Paulo não iria aderir ao PNLD, utilizando apenas conteúdo digital em sua rede de ensino – foi obrigado a recuar por pressão da APEOESP-sindicato estadual e da imprensa.

À digitalização do ensino deve ser somado o assédio moral sofrido pelos professores em seu trabalho cotidiano nas escolas. Com a gestão sendo obrigada a assistir e avaliar a aula dos docentes, com as escolas sendo obrigadas a cumprir metas de desempenho pré-estabelecidas pela Secretaria de educação – onde os diretores das unidades de ensino que não cumprirem as metas, podendo sofrer punições, inclusive demissão.

Para privatizar a educação em São Paulo o governo precisa derrotar os professores; que são a última linha de defesa da escola pública paulista.

Para privatizar a educação em São Paulo o governo precisa derrotar os professores; que são a última linha de defesa da escola pública paulista.

O governo estadual pretende desqualificar os professores e o seu ofício para impor o ensino digitalizado aos alunos e o uso recorrente de plataformas digitais pelos professores como já vem ocorrendo – professoras e professores são obrigados a acessar cotidianamente várias plataformas por dia para realizar o seu trabalho.

O assédio moral, a precarização do trabalho docente – onde 60% das professoras e professores não têm qualquer tipo de estabilidade, Categoria O – com baixos salários e jornadas estafantes de trabalho; além da produção de conteúdos digitais que violam a Liberdade de Cátedra dos docentes e que desconsideram as reais necessidades de aprendizagem dos alunos de cada escola e mesmo de cada sala de aula fazem parte do show de horrores de privatização da educação e precarização do trabalho dos professores.

Não satisfeito com a reforma do ensino médio em São Paulo; iniciada no estado simbolicamente em 2021 – ano em que os alunos de escola pública se tornaram maioria entre os matriculados na USP (universidade de São Paulo); parece um aviso ou garantia que tal fato não mais se repetirá – o governo Tarcisio/Feder quer aprofundar o dualismo na educação paulista – Uma escola do conhecimento para as elites que podem pagar e uma escola de plataformas digitais, de conteúdo duvidoso aligeirado para a grande massa da população.

Como última linha de defesa os professores devem defender a sua profissão – suas condições de trabalho, salário e estabilidade do emprego, além de sua Liberdade de Cátedra – como parte da defesa da escola pública e do direito de acesso ao conhecimento aos filhos e filhas da classe trabalhadora.

Educação não é mercadoria; o conhecimento não deve ser privilégio de classe.

Gilberto de Souza é professor da rede pública e militante da Resistência na educação