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O cataclismo da pandemia: um trauma histórico?

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O Brasil se transformou em março de 2021 no epicentro mundial da pandemia, quando consideramos indicadores como a variação média de contágios e óbitos diários por milhão, as taxas de ocupação de leitos e UTI’s, ou a ocorrência de novas cepas do vírus. Caminhamos para 400.000 mil mortos até o final de abril: um cataclismo sem precedentes na história social do país. A catástrofe sanitária e a tragédia social de empobrecimento vertiginoso desde janeiro constitui um trauma histórico?

Um trauma histórico é uma fratura no tempo político que estabelece um antes e um depois. Na Rússia de 1917, na Alemanha e Hungria de 1918 o trauma foi a derrota dos Impérios na I Guerra Mundial. Na Espanha, França e na Europa Central foi o impacto da depressão depois da crise de 1929. Na França e na Itália em 1944/45 foram as sequelas da ocupação nazista. Não haveria um maio de 1968 sem a derrota na guerra da Argélia, nem a revolução dos cravos em Portugal em 1974 sem a derrota militar nas colônias africanas.

A história ensina que há limites para os sacrifícios sociais impostos às massas populares em qualquer nação. Assim como as pessoas têm limites na experiência da dor, há momentos na história das sociedades contemporâneas em que os músculos e nervos da classe trabalhadora e da juventude atingem um ponto máximo de frustração, esgotamento, exasperação com a ordem política.

Os terríveis sofrimentos materiais e psíquicos são suportados, silenciosamente, por um período que pode ser maior ou menor, em um terrível processo de embrutecimento. Esses limites são variáveis em diferentes sociedades. Mas, embora a dinâmica da evolução da consciência das massas populares no Brasil tenha sido, dramaticamente, lenta, há limites. Quando são atingidos pelo colisão de uma tragédia que opera na mente de milhões como trovões e relâmpagos, despertam uma onda, no início molecular, quase invisível, e depois torrencial de fúria e ira.

Devemos nos perguntar até quando é possível a sociedade brasileira suporte uma hecatombe desta proporção sem uma comoção política avassaladora. Assim foi em 1983/84: sem a experiência da superinflação, desemprego, e a arrogância e estupidez de Figueiredo não teria sido possível a irrupção das Diretas Já com milhões nas ruas querendo derrubar a ditadura. Assim foi em 1991/92: sem a experiência da hiperinflação, desemprego e a soberba e obtusidade de Collor, a centelha da juventude nas ruas não teria contagiado as massas populares e conquistado o impeachment.

É possível que estes limites estejam próximos, ou até já tenham sido atingidos. Já chegamos ao momento do trauma histórico? Se o que aconteceu entre 2015/21 não foi uma derrota histórica da classe trabalhadora e seus aliados, se não sofremos a desmoralização de uma geração, o impacto desta hecatombe irá despertar, em algum momento, uma resposta colossal, gigantesca, imensa, maior do que tudo que vimos nos últimos vinte anos contra o governo de extrema-direita e o neofascista Bolsonaro. Há limites.

Não será simples derrotar Bolsonaro e o perigo que representa um governo de extrema direita liderado por um neofascista que tem apoio de massas na pequena-burguesia. Os capitalistas brasileiros são a classe burguesa mais rica, poderosa, experiente e ardilosa do continente. Nossa classe trabalhadora é um gigante social, mas está longe de ser quem acumulou maior tradição de luta sindical e enfrenta, pela primeira vez desde o fim da ditadura militar, os desafios de uma situação reacionária.

Mas o contexto internacional não é simples para Bolsonaro depois da derrota de Trump, na sequência de uma explosão de fúria popular com o Black Lives Matter. Ela sinaliza a possibilidade de uma derrocada. Uma das características chaves do Brasil são os contrastes. Insere-se no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole regional. À luz da lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível elucidar o amálgama, a fusão, a mescla que associa grandeza e pequeneza, riqueza e pobreza, uma união do obsoleto e do moderno, de formas arcaicas, ou até retrógadas com as mais contemporâneas, em uma totalidade complexa. Mas ainda que atrasada a sociedade brasileira não foi bestializada. Não é verdade que as massas trabalhadoras e a juventude estejam indiferentes à calamidade sanitária. Ante de agir é necessário que o choque das desgraças acelere a experiência prática, e transforme a consciência.

O capitalismo brasileiro entrou em decadência histórica. Mas, considerada, por exemplo, a paridade do poder de compra, um indicador que corrige as oscilações cambiais e, parcialmente, as distorções que resultam das condições de troca desfavoráveis, o Brasil ainda era, em 2020, a oitava maior economia do planeta (com PIB estimado em US$ 3,15 trilhões). Durante os últimos quarenta anos foi uma das dez maiores economias do mercado mundial, segundo projeções do FMI (Fundo Monetário Internacional).

Paradoxalmente, se consideramos o PIB per capita, o valor do PIB dividido pela população, encontramos uma queda contínua. Em 2020, a renda média regrediu ao nível de 2009. No ano passado, o PIB per capita diminuiu 4,8%. Baixas piores do que essa havia ocorrido apenas em 1983 (recessão final da ditadura militar) e 1990 (recessão do Plano Collor). O consumo das famílias teve queda recorde de 5,5% em 2020. O capitalismo periférico brasileiro teve durante meio século, entre 1930/80, uma forte dinâmica de crescimento, mas mergulhou em uma tendência histórica de estagnação com viés regressivo. Esta inflexão coincide com a etapa mais longa de vigência de liberdades democráticas e estabilidade do regime democrático-eleitoral.

A chave para o entendimento da especificidade do capitalismo no Brasil é a extrema desigualdade social. É o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das dez maiores economias do mundo, com vinte cidades com um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Mas é atrasado, dramaticamente, em termos educacionais: aqueles alfabetizados, plenamente, na língua e na matemática são somente 8%, menos de um em cada dez pessoas, e os iletrados funcionais correspondem a 27% da população com 15 anos ou mais, ou seja, quase um em cada três.

O Brasil foi e permanece, sobretudo, uma sociedade muito injusta. A chave de uma interpretação marxista do Brasil é a resposta ao tema da principal peculiaridade nacional: a desigualdade social extrema. Todas as nações capitalistas, no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade está aumentando desde a década de oitenta. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade anacrônica.

Se a chave de interpretação do Brasil deve ser a desigualdade social, a chave da compreensão da desigualdade é a escravidão. Sem compreender o significado histórico da escravidão é impossível decifrar a especificidade do Brasil .

O país será outro, quando as atuais condições extremas impostas pela pandemia sejam superadas. O fracasso de conjunto da classe dominante em reduzir as sequelas impostas às classes populares terá consequências político-sociais. Mais machucadas e amarguradas, mas, também, mais maduras e endurecidas as classes populares estão retirando conclusões. Enquanto não forem derrotadas irão lutar.