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Colunas

A crise do governo Bolsonaro e a campanha golpista

Foto: Marcos Corrêa / PR / CP

Bolsonaro ao lado de seu maior aliado institucional civil, o PGR Augusto Aras

Gabriel Casoni

Gabriel Casoni, de São Paulo (SP), é professor de sociologia, mestre em História Econômica pela USP e faz parte da coordenação nacional da Resistência, corrente interna do PSOL.

O fenômeno é o modo de expressão da essência, da “coisa-em-si”. Mas a essência nunca se revela por si só, diretamente, mas somente pela mediação dos fenômenos, da aparência. Os fenômenos expressam a essência sempre de modo distorcido – escondem e revelam ao mesmo tempo a realidade fundamental das coisas. Como afirmou Marx, se a essência e os fenômenos derivados dela coincidissem, não haveria necessidade da ciência.

O método dialético também é útil para a análise da realidade política. A análise marxista deve ir além da aparência das coisas, isto é, dos fenômenos da superfície. Por exemplo, quando avaliamos o governo Bolsonaro nesse momento, devemos perguntar: a campanha golpista (a aparência da coisa) revela e esconde qual realidade de fundo (a essência)?

A realidade concreta é a síntese de múltiplas determinações. É preciso recorrer a elas em suas relações recíprocas.

A determinação internacional é desfavorável a Bolsonaro. A derrota de Trump, o enorme isolamento internacional do governo brasileiro e o giro à esquerda (com desigualdades) na América Latina enfraqueceram o bolsonarismo (neofascismo brasileiro).

A determinação econômica sugere que a recuperação econômica será, na melhor hipótese, mais lenta e limitada do que se previa alguns meses atrás. As projeções de crescimento do PIB estão diminuindo e há muito ruído no mercado financeiro. A inflação está elevada, o desemprego é recorde e a pandemia não foi ainda superada, que diga a variante Delta. O mal estar social não se dissipará rapidamente.

A determinação social evidencia que se formou uma maioria social contra Bolsonaro, que vem se ampliando lenta mas continuamente desde o início do ano. O governo mantém ainda uma base considerável de apoio, de 25 a 30%, mas é minoritária e encontra-se cada vez mais isolada. O aumento do desgaste e da ruptura com o governo ocorre, ainda que desigualmente, em todas as classes sociais, inclusive na burguesia — ainda que essa última não tenha, ao menos por ora, se deslocado para a defesa da derrubada do governo, por considerar que o impeachment pode paralisar a economia do país devido à enorme instabilidade política que geraria.

A determinação política revela o enfraquecimento do governo em vários níveis. Lula dispara nas pesquisas e Bolsonaro encolhe. Se as eleições fossem hoje, o miliciano perderia para qualquer um num eventual segundo turno, inclusive para Dória. A cúpula do Judiciário está unificada contra Bolsonaro — há 7 inquéritos abertos no STF e no TSE contra o presidente e aliados próximos. O governo ainda tem maioria na Câmara, mas essa maioria é garantida pelo consórcio de deputados liderados por Lira. No Senado, o governo não tem maioria. A sustentação parlamentar de Bolsonaro está baseada na aliança com o centrão de Ciro Nogueira e Artur Lira, que recebe cargos e emendas em troca de manter a governabilidade de Bolsonaro. Com as péssimas perspectivas eleitorais do miliciano, até onde vai o centrão com Bolsonaro? No Nordeste, os deputados do bloco de Lira e Ciro já estão afoitos para negociar os palanques eleitorais com Lula…

Bolsonaro tem a seu favor, de forma mais categórica, Augusto Aras na PGR e o apoio dos militares. Aras, apesar do enorme desgaste e da brutal crise interna instalada no MPF, não dá indicativos que abandonará o governo. Os militares, que colonizam milhares de cargos no aparato federal, também devem seguir com o miliciano até o fim — pode ser uma merda, mas é o governo deles, afinal. Esses dois fatores e a aliança temporária com o centrão dificultam a abertura do impeachment. Conta também o fato de que Bolsonaro, apesar de ter a maioria da população contra seu governo, ainda conserva um apoio minoritário expressivo, assim como capacidade de mobilizar (embora não como antes) seus seguidores mais fanáticos.

Mas Bolsonaro vive um dilema, se equilibrando numa linha tênue: se radicaliza demais, sem condições para efetivar o golpe, corre sério risco de cair antes das eleições; por outro lado, se ele não radicaliza, corre o risco de desmobilizar e desmoralizar o núcleo duro de seus apoiadores, chegando muito enfraquecido para 2022. Por isso, ele opta pelo meio termo: estica a corda, mas nunca ao ponto de rompê-la de vez.

Posto todos esses elementos, pode-se concluir que Bolsonaro se enfraqueceu consideravelmente politica e socialmente, dentro e fora do país. Mas ainda conserva elementos de força e resiliência. Ou seja, ainda não foi derrotado. Sobre esse pano de fundo (essência da realidade política), vem à superfície a campanha golpista (aparência da situação), ao estilo fascista, de Bolsonaro. Nenhuma determinação social e política revelante autoriza a avaliação de que há condições de sucesso de um golpe militar no país ou de que caminhamos nesse sentido, ao contrário. Porém, isso não diminui a gravidade das ameaças fascistas de Bolsonaro.

O “x” da questão está em saber o motivo (a razão fundamental) pelo qual o miliciano radicaliza o discurso. A explicação que sustento é a de que Bolsonaro lança a campanha golpista como forma de reagir ao seu contínuo enfraquecimento, como modo de coesionar e mobilizar sua base social mais fiel diante do quadro adverso, com o objetivo de mostrar força e intimidar seus adversários, tentando evitar a abertura do impeachment e buscando se posicionar para a disputa de eleitoral de 2022.

Mas Bolsonaro vive um dilema, se equilibrando numa linha tênue: se radicaliza demais, sem condições para efetivar o golpe, corre sério risco de cair antes das eleições; por outro lado, se ele não radicaliza, corre o risco de desmobilizar e desmoralizar o núcleo duro de seus apoiadores, chegando muito enfraquecido para 2022. Por isso, ele opta pelo meio termo: estica a corda, mas nunca ao ponto de rompê-la de vez. Depois acena para um abrandamento, para em seguida retomar a radicalização.

Em termos de política, o maior erro da esquerda seria o de esperar tranquilamente as eleições de 2022, sem buscar avançar sobre o governo no momento de sua maior fragilidade até aqui. Esse cálculo estritamente eleitoral subestima a capacidade de estrago de uma liderança fascista como Bolsonaro (ele vai tentar tumultuar as eleições e, se tiver condições, “melar” o processo), bem como desconsidera a possibilidade de que ele venha a recuperar forças, em maior ou menor grau, até o pleito eleitoral daqui mais de um ano. Lula e a direção majoritária do PT parecem focados quase que exclusivamente na preparação das alianças (amplas) e do posicionamento eleitoral para 2022. Um grave erro.

A Frente de Esquerda dos partidos e movimentos sociais articulada na Campanha Fora Bolsonaro precisa retomar a ofensiva nas ruas, jogando peso total para a construção de um grande ato nacional em 07 de setembro. Levar mais gente às ruas do que o bolsonarismo nesse dia simbólico, poderá ser a pá de cal na campanha golpista em curso. Além de derrotar o golpismo, a mobilização social é fundamental para barrar os projetos de contrarreformas e privatizações em andamento no Congresso.