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MUNDO

Orlando Gutiérrez: “Pisotearam o sistema democrático na Bolívia”

Por Joallan Rocha, Maceió (AL)

Entrevista com Orlando Gutiérrez, secretário executivo da Federação Sindical dos Trabalhadores Mineiros da Bolívia, sobre a atual conjuntura política do país.

Estamos há 9 meses do golpe que derrubou o governo Evo Morales. A Bolívia está imersa em uma profunda crise sanitária, econômica, política e social. Os tempos de estabilidade econômica e política ficaram para trás. A velha direita, aliada a setores da extrema direita voltou ao poder. A repressão sanguinária promovida pelo governo ilegítimo de Jeanine Áñez provocou a morte de dezenas de bolivianos. Mesmo resistindo heroicamente, o povo não conseguiu derrotar o golpe.

Cansados do autoritarismo crescente, do aumento do desemprego e da incompetência do governo no enfrentamento da crise sanitária, o povo voltou às ruas do país exigindo a renúncia de Jeanine Áñez e a convocação de novas eleições limpas e democráticas. À frente destas lutas, se encontra um jovem trabalhador mineiro de 35 anos, atualmente secretário executivo da histórica Federação Sindical dos Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB), Orlando Gutiérrez Luna. Há quinze anos, Orlando Gutiérrez trabalha no distrito mineiro de Colquiri, localizado na província Inquisivi no departamento de La Paz. Seu batismo na luta sindical e política se deram entre os anos 2011 e 2012, quando esteve à frente das mobilizações pela nacionalização da mina Colquiri, privatizada durante o governo neoliberal de Gonzalo Sanches de Lozada.

A falta de oportunidades o impediu de seguir estudando. O trabalho na mina tornou-se a única alternativa, como acontece com a maioria dos jovens bolivianos que residem nos centros mineiros. Começou a trabalhar muito jovem como forma de garantir a sobrevivência da sua mãe e dos seus quatro irmãos, “desde muito cedo minha mãe me inculcou sempre a honestidade e a aprender a trabalhar, porque se não trabalha, não vai comer, dizia minha mãe, que também me deu a oportunidade de saber ler e escrever”.

Sua trajetória como dirigente sindical teve início em dezembro de 2010, quando assumiu a diretoria de esportes do sindicato dos mineiros de Colquiri. Em dezembro de 2012, é eleito para o cargo de diretor de Conflitos do sindicato, sendo reeleito em dezembro de 2013. Com o final do seu mandato, retorna ao trabalho no interior da mina. Em dezembro de 2014, disputa novamente a eleição para o sindicato, tornando-se o principal dirigente da entidade (secretário geral). No congresso da FSTMB, realizado em 2015, é escolhido como secretário executivo da mais importante organização dos trabalhadores mineiros da Bolívia.

Atualmente, Orlando Gutiérrez, se encontra na linha de frente das mobilizações contra o governo ilegítimo de Jeanine Áñez. Transcrevemos abaixo alguns trechos da entrevista que ele concedeu ao site Esquerda Online.

EOL: Qual a sua avaliação da atual conjuntura que vive a Bolívia?

Orlando Gutiérrez: O Brasil e o mundo inteiro, agora sabem. Nestes 9 meses do golpe de Estado se transmitiu ao mundo a luta que começamos. Aceitamos o governo de transição, mas não o legitimamos. Lamentavelmente veio a pandemia. Colocaram-nos em quarentena rígida no início. Quando o governo tinha que construir uma estratégia para enfrentar o coronavírus, não fizeram. Praticamente não fizeram absolutamente nada para melhorar ou garantir aos trabalhadores a estabilidade econômica e do emprego, estabilidade produtiva para os irmãos indígenas, originários e camponeses, para as zonas populares, para as pessoas do campo e da cidade.

Este governo se converteu em um governo de fato. Em uma avaliação sincera, no aspecto político, este governo tentou várias vezes destruir o sistema democrático boliviano. Lamentavelmente estes fascistas tomaram pela força o poder, se aproveitando do adormecimento do povo. Porque os 14 anos de gestão de Evo Morales foi uma combinação entre problemas e soluções, às vezes a favor do povo, às vezes contra o povo, mas avançamos. Para mim, em uma avaliação concreta, é de que o governo de fato é um erro dentro da história política boliviana.

EOL: Por que não foi possível derrotar o golpe naquele momento?

Orlando Gutiérrez: É uma somatória dos 14 anos de governo e do processo revolucionário do povo. Porque é um processo revolucionário de um povo, não de uma pessoa ou uma sigla. Obviamente, o único partido de esquerda é o Movimento ao Socialismo (MAS-IPSP)1 que nos representa a nível político. Mas, acredito que a partir de algum momento… os primeiros quatro anos de gestão foram excelentes, com o povo. O segundo mandato foi uma gestão à “meia máquina”. O terceiro mandato nos roubou o “processo de mudança”, nos roubaram a legitimidade do que foi a “Revolução Democrática e Cultural” feita pelo povo. Lamentavelmente se incorporaram ao governo pessoas que ao invés de fazer bem ao povo, de honrar a luta do povo, se voltaram contra o povo. Em poucas palavras, também fomos rodeados de fascistas, e nosso companheiro Evo Morales também esteve rodeado de pessoas que o afastou do povo.

Por isso, chegamos a outubro de 2019, aborrecidos com o governo, mas, ainda assim, o povo votou em Evo Morales, e ele ganhou, mas, votamos mesmo aborrecidos. O que eu estou dizendo, seguramente não vai cair bem para as velhas estruturas políticas enraizadas na Bolívia. Mas, acredito que é necessário dizer, é necessário aceitar e reconhecer os nossos erros para podermos avançar com maior força daqui para frente. Por isso que, em outubro, novembro e dezembro de 2019, praticamente o povo não reagiu, não porque o povo não quisesse reagir, mas, porque não pôde reagir. Lamentavelmente, naquele momento, havia autoridades do governo Evo Morales que diziam quem vai às ruas e quem não vai, porque queria controlá-los.

Mas, eu também suponho que o povo estava cansado, cansado de ser enganado, não digo por nosso companheiro Evo Morales, nosso companheiro será sempre líder, líder para todos nós. Eu, particularmente, sempre disse isso, de maneira pública e aberta. Mas, as pessoas que estavam ao redor de Evo Morales, lamentavelmente, fizeram muito mal ao povo e, por isso, o povo demorou a reagir, de repente nem quis sair às ruas para defender o governo. Por isso, sempre se menciona que se o povo apenas levantasse a voz, como se deu agora, seria diferente. O povo se levantou, se autoconvocou, se organizou, se unificou, mesmo tendo diferenças. Quando se provoca o povo, o povo reage e reage de maneira forte. Foi por esse motivo porque se enganou e excluiu o povo das decisões de poder. Foi um grande erro, porque, afinal, o povo construiu esse processo revolucionário. Ninguém vai excluí-lo. Por isso, dissemos que os “fascistas” que estavam em torno a Evo Morales, lamentavelmente, também foram responsáveis pelo que ocorreu em novembro de 2019.

EOL: Como ocorreu a repressão e perseguição do governo de Jeanine Áñez?

Orlando Gutiérrez: Lamentavelmente o governo de fato está perseguindo os dirigentes, nos tratando como selvagens, como bestas, estúpidos, ignorantes. Eu disse em algum momento, “eles são os selvagens, eles são os terroristas”, porque ano passado eles não tremeram a mão para matar nossos irmãos em Senkata, Sacaba e Yapacani. Não tremeram a mão para emitir decretos onde davam via livre para as Forças Armadas e a polícia nacional, para, praticamente matarem o povo. Fomos duramente reprimidos. Não havia Direitos Humanos. O povo estava muito assustado… muito assustado. Por isso eu digo que conseguimos que o povo levante novamente sua voz, abra os olhos, que escute bem os comandos que estamos dando e, definitivamente, levantaram a mão e disseram, BASTA! Basta desse governo abusivo.

A repressão foi muito forte e abusiva. Tanques e metralhadoras nas ruas. Acredito que o povo já sabe e não vai esquecer. Por isso eu digo que o povo vai levantar-se, não com balas, não com gases. Vocês não sabem, incrivelmente, havia aviões da Força Aérea que estavam sobrevoando as áreas de Senkata naquele momento… helicópteros, é incrível o que fizeram. Por isso eu digo que o povo não vai devolver com balas, não vai devolver com gás… o povo vai devolver com voto, a toda discriminação e abuso que fizeram com a gente.

EOL: Qual a situação dos trabalhadores e da economia do país?

Orlando Gutiérrez: Praticamente a economia está quebrada… desviaram todo o dinheiro dos bolivianos e apontam ao que lhes interessa. Acudiram a empréstimos do Fundo Monetário Internacional e hipotecaram o nosso país, para depois vender as ações das empresas estatais e estratégicas do país a preço de banana. Assim como fizeram Samuel Doria Medina e Gonzalo Sanches de Lozada no passado. Por isso eu dizia, na mina onde trabalho, fizeram assim no passado. Agora querem fazer o mesmo.

A situação dos trabalhadores piorou com o desemprego, demissões massivas. Não temos Ministério do Trabalho, não temos Ministério da Justiça, não temos Ministério de Mineração a favor do povo. Os trabalhadores estão largados a sua própria sorte. Por isso, nós acreditamos que a única solução para isso, é ter um governo democraticamente eleito e poder trabalhar de maneira conjunta pelo povo, trabalhar pela classe operária, trabalhar pelo movimento indígena, trabalhar pelo campo e pela cidade. Reconstruir nossa economia e novamente recompor como Bolívia. Esse é o grande objetivo que temos todos.

EOL: Quais as principais demandas das recentes mobilizações contra o governo de Jeanine Anez?

Orlando Gutiérrez: As principais bandeiras de luta foram o tema desatenção do governo com o tema da Saúde. Praticamente, na crise sanitária não fizeram nada, absolutamente nada. A única coisa que fizeram estas autoridades de fato foi dizer “quantas pessoas foram contagiadas ou morreram”. Os bolivianos estavam sendo convertidos em cifras. Não fizeram nada.

Nos converteram em estatística, nada mais. Eles simplesmente pareciam que esperavam em suas casas, em suas cadeiras, esperando quantos mortos mais existiriam. Essa foi umas das primeiras bandeiras de luta, o tema da saúde. Porque foram corruptos… compraram ventiladores superfaturados, quantas mortes eles não causaram… esses improvisos feitos pelo governo de fato.

A outra bandeira de luta foi o tema da Educação. Vocês sabem que privatizaram a educação na Bolívia durante a pandemia através da educação virtual, que gera muitos custos e concede grandes volumes de dinheiro para as empresas de telecomunicações. Mercantilizaram a educação. Por último, fecharam as escolas e encerraram o ano letivo, retirando das crianças e dos jovens o direito à educação.

A outra bandeira de luta é o aspecto econômico. Não nos deixam trabalhar, não nos dão condições de Saúde. Simplesmente gostam de dizer: “quarentena rígida e enclausuramento”. O povo tem que comer, não pode matar de fome as pessoas. Não pode trancá-los em casa e matá-los de fome. Outra coisa, obviamente, é a prepotência das autoridades do governo, os abusos, as ameaças, os insultos, as discriminações, as provocações.

Tudo isso fez com que os dirigentes nacionais se vissem na obrigação de levantar a voz e dizer-lhes: não temos medo! Estamos sendo perseguidos por isso. Estão judicializando as demandas do povo. Então, eu acredito que as bandeiras de luta são legitimas, as demandas são legitimas e quando são legitimas, são constitucionais. Por tanto o governo não tem por que vangloriar-se de ter feito algo em Bolívia, porque não fez nada. Por que tanta gente tem que sofrer pelo coronavírus?

EOL: O tema das eleições é parte destas reivindicações?

Orlando Gutiérrez: Nós dissemos que foi uma somatória de coisas. As primeiras bandeiras de luta foram as que eu expliquei acima, e dentro disso, soma o atropelo contra a democracia, que o povo boliviano ofereceu suas vidas e está novamente disposto a fazer para defender a democracia que nos custou recuperar em 2003, com tantas vidas perdidas, com tanta luta. Pisotearam o sistema democrático na Bolívia. Quantas vezes? Quatro, cinco vezes suspenderam as eleições e queriam voltar a suspender. Não garantir a realização destas eleições.

Estou convencido de que vamos ganhar estas eleições. Inclusive a última data, 18 de outubro de 2020, simplesmente queriam conduzir as eleições apenas com uma resolução da sala plena do Tribunal Superior Eleitoral. Isso significava que, depois, qualquer pessoa poderia anular as eleições. Era um plano deles que identificamos. Queremos eleições e um governo legitimamente eleito nas urnas.

EOL: Qual a sua avaliação das próximas eleições presidenciais?

Orlando Gutiérrez: Para mim, como instituição e como pessoa, nosso binômio Lucho/Davi2 vai ser sempre, o único que representa o povo. As demais chapas representam a discriminação, o separatismo, o capitalismo e o fascismo. Isso representa as demais candidaturas. Venha de onde venha. O único que eles fizeram foi beneficiar seus próprios bolsos. Beneficiaram somente ricos, para que sejam mais ricos, e, os pobres, mais pobres. Por isso que nós defendemos o único binômio que é do povo, Lucho/Davi e vamos fortalecer. Estou convencido e estou compreendendo a leitura das ruas que vamos ganhar a eleição no primeiro turno.

EOL: Você acredita que a maioria dos trabalhadores apoiarão o binômio Lucho/Arce?

Orlando Gutiérrez: Definitivamente. Obviamente com contradições. Alguns que tem uma posição e formação de extremo radicalismo, nós aceitamos sua posição, seu pensamento, sua decisão. Mas, as grandes massas, as grandes maiorias, pensamos nesse processo revolucionário do povo, e pensamos, que daqui pra frente, e destas próximas eleições, que, obviamente, vamos ganhar. Temos que reconstruir o destino político da Bolívia. Temos que reconstituir… temos que revitalizar as novas caras que vão direcionar a Bolívia. Esse é o objetivo do povo agora. Porque é necessário que os jovens, que deram muito no último período, também tenha essa oportunidade de fazer muito pelo seu povo.

As posições expressas neste artigo representam as opiniões do entrevistado, e não necessariamente as posições do Esquerda Online.

1 O Movimento ao Socialismo é um partido político que surgiu a partir da emergência dos movimentos sociais indígenas e camponeses no início dos anos 90. No encontro de fundação, em 27 de março de 1995, na cidade de Santa Cruz de la Sierra, estiveram presentes indígenas, camponeses, intelectuais, movimentos sociais do campo e da cidade. O MAS construiu-se como alternativa ao neoliberalismo e em oposição à repressão e criminalização dos camponeses produtores da folha de coca.

2 A chapa do MAS será representada por Luiz Arce Catacora (ex-ministro de Economia) e Davi Choqueuanca (ex-ministro de Relações Exteriores), ambos foram ministros do governo Evo Morales.