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MUNDO

Bolívia: Eleições subnacionais e conjuntura

Joana Benário, Rio de Janeiro, RJ

Os novos elementos da conjuntura boliviana, logo após o retorno do Movimento ao Socialismo (MAS) ao poder, em novembro de 2020, são principalmente dois: as eleições regionais de 07 de março e a detenção de Jeanine Añez, ex-presidenta da Bolívia, instalada na cadeira presidencial pelo golpe de estado em 12 de novembro de 2019, até as eleições de outubro de 2020.

As eleições regionais de 07 de março

Na Bolívia, as eleições subnacionais organizam a escolha de governadores nos nove estados do país, eleições de prefeitos nos 337 municípios e de “deputados departamentais” nos estados. Para entender a importância política dos resultados atuais, é importante lembrar os resultados eleitorais anteriores do Movimento ao Socialismo. No artigo “Eleições subnacionais de Bolívia em perspectiva: afinal, o MAS venceu?” publicado no EOL, pode-se encontrar uma primeira análise dos principais resultados, comparando com dados anteriores.

Lembremos brevemente que desde 2005, as cinco eleições nacionais (2005, 2009, 2014, 2019 e 2020) foram todas ganhas pelo MAS, no primeiro turno, sem alianças com outros partidos, algo inédito em toda a história democrática da Bolívia.

As eleições nacionais de 2019 (com vitória do MAS com 47% dos votos) foram fortemente contestadas pela oposição burguesa que organizou grandes mobilizações, principalmente urbanas, denunciando fraudes, o que deu margem para a anulação das eleições, a renúncia forçada de Evo e o Golpe de Estado de novembro de 2019.

Nas eleições nacionais de outubro de 2020, o MAS voltou a ganhar com 55,11% dos votos, recuperando a maioria absoluta nas duas câmaras do Congresso Nacional. Esta bela vitória se explica por um voto anti-golpe. Em primeiro lugar, por conta da repressão sofrida e pela ineficiência da gestão, corrupção escancarada e racismo da extrema direita durante os últimos 11 meses no poder, também pela crise econômica e sanitária.

As eleições regionais se realizaram pela primeira vez na Bolívia em 2015, após a reforma da Constituição criando o cargo de governadores, dando poder e mais autonomia aos estados regionais. Naquelas, o MAS teve 41,7% dos votos no total  e ganhou o governo de 6 estados, deixando 3 em mãos da oposição burguesa: La Paz (a capital), Santa Cruz e Tarija (região petroleira).

Estas eleições regionais de 2021 são as segundas realizadas na Bolívia, que segue sendo um país altamente centralizado, onde a autonomia outorgada aos estados ainda é relativa em muitos aspectos e não se reveste da mesma importância que em um país como Brasil.

No primeiro turno, em 07 de março, o MAS conseguiu 53% do total dos votos em nível nacional, mas só ganhou o governo de três estados (Cochabamba, Potosí e Oruro), deixando 5 estados para definir em segundo turno, a efetivar-se no domingo, 11 de abril.

Podemos tirar três conclusões principais do atual processo eleitoral subnacional: 1) o Movimento ao Socialismo ganhou as eleições, mas a vitória é relativa, porque não ganha com a magnitude que se esperava, em vista dos bons resultados nacionais de outubro de 2020. 2) a direita liberal de Carlos Mesa (Comunidade Cidadã) não conseguiu resultados interessantes em nenhum estado, ficando apagada do mapa político. Mas a extrema direita pró-fascista se fortalece e ganha no estado de Santa Cruz e sua capital do mesmo nome, cidade mais populosa do país. 3) Ex-aliados do MAS, que saíram do partido durante a última gestão, ganharam em várias cidades do país, em outras legendas criadas para a ocasião.

Vitória relativa do MAS

Uma vez mais, o MAS demonstrou ser o único partido nacional com base territorial organizada. Com 53% da votação total, por que é uma vitória relativa? Existe uma fragmentação natural dos resultados neste tipo de eleições subnacionais, ligadas a características regionais, e o MAS sempre teve votações menores nas eleições regionais e municipais anteriores, mas desta vez, ganhou só em 3 estados. Haverá o segundo turno (11/04) para eleger os governadores em 5 estados (La Paz, Beni, Pando, Chuquisaca e Tarija) e a chance do MAS ganhar não está assegurada, ainda assim é a hipótese mais provável em 2 estados (La Paz e Tarija).  

Quanto aos principais municípios do país, como no passado, o MAS continua sem conseguir dominar o “eixo central” (LaPaz, Cochabamba, Santa Cruz).  Das 10 principais cidades, só conseguiu a prefeitura em duas: Sucre e Cobija. Na capital La Paz, ganha Ivan Arias, ex-ministro de obras públicas do governo de Jeanine Añez, atualmente processado por corrupção. Em Santa Cruz, Jhonny Fernandez, empresário e ex-prefeito. Em Cochabamba, Manfred Reyes Villa, que foi prefeito nos anos 1993-2000 e governador de 2006-2008, depois fugiu para os EUA, acusado de corrupção, e regressou com o governo golpista em 2020.

O autoritarismo de Evo – verdadeiro cacique – e das lideranças nacionais das centrais sindicais, sob a direção do MAS, impuseram vários candidatos escolhidos a dedo, em processo autoritário e burocrático. Vários deles foram considerados péssimos (e corruptos) pelas bases e não foram eleitos. Além disso, os 14 anos de experiência política com o MAS no poder deixaram em certos setores desilusão, cansaço e decepção pelos alcances limitados conseguidos e poucas perspectivas.

O MAS esperava, nesse segundo momento político-eleitoral, desde seu retorno no poder, uma vitória contundente para reforçar sua correlação de forças contra a oposição golpista e consolidar seu domínio completo das principais instâncias de poder e instituições regionais e nacionais.

A direita liberal esvanece e a extrema direita ergue a cabeça em Santa Cruz

A oposição tinha conseguido uma unidade de ação contra o MAS em novembro de 2019 (Carlos Mesa denunciando os resultados, chamando à resistência e Fernando Camacho, dirigindo a paralisação cívica e ações ilegais da polícia e do exército). Mas no processo eleitoral atual, a direita se viu dividida, fragmentada e, sobretudo sem proposta de programa político.  Na maioria dos casos, os opositores do MAS são figuras locais ou regionais e não existe uma oposição unificada nem apresentam sinais de aliança, no momento.

A direita liberal liderada pelo ex-presidente Carlos Mesa, da Comunidade Cidadã, teve resultados pobres e se tornou irrelevante no mapa político nacional. No município de La Paz, a capital, onde obteve 51% dos votos no ano passado, não conseguiu assegurar seu candidato, o ex-reitor da Universidade pública San Andrés, Waldo Albarracin, que se retirou antes das eleições. Na cidade de Sucre, onde tinha ganhado ano passado, seu candidato chegou apenas a 10%, e em Cochabamba, onde tinha 45%, agora foi marginal. Em Santa Cruz, o candidato da Comunidade Cidadã (CC) era uma figura pública muito conhecida e obteve a segunda maior votação, mas perdeu para Jhonny Fernandes, ex-prefeito na década de noventa. Nos governos estaduais, tampouco conseguiu avançar. Seu melhor resultado foi no estado do Beni, onde o seu candidato obteve 15%.

A extrema direita, liderada por Luís Fernando Camacho, protagonista do golpe de 2019, ganhou com ampla maioria no Estado de Santa Cruz, com 65% dos votos. Ele será o próximo governador do estado de Santa Cruz. Nas legislativas de outubro de 2020, a extrema direita conseguiu a nível nacional 14% dos votos, 4 senadores e 16 deputados. Consolida-se uma crescente oposição regional de extrema-direita racista que domina agora todo o estado de Santa Cruz. Vai liderar uma oposição regional a Evo e ao MAS. A semana passada organizou uma mobilização que reuniu 80.000 pessoas em Santa Cruz. É provável que a extrema direita reviva o discurso autonomista e inclusive separatista, e os conflitos que incitava, da mesma forma que fez durante o primeiro governo de Evo (2006-2009). A fratura social-geográfica Andes-Amazônia e os discursos racistas que o acompanham, podem se ampliar outra vez.

Ex-aliados do MAS ganham em cidades importantes

A eleição na cidade de EL Alto, vizinha da capital La Paz, conhecida por suas organizações de base de grande combatividade, foi ganha pela jovem e ex-senadora do MAS, Eva Copa, que liderou o Senado durante os 11 meses após o golpe, mas foi logo descartada por Evo como candidata. Ela obteve quase 70% dos votos e será a próxima prefeita de El Alto. Até agora, atuou como aliada do MAS.

Quanto ao governo do estado de La Paz, o filho do Mallku, histórico dirigente indígena recém-falecido, está competindo contra o candidato do MAS, e pode ser que consiga juntar ao seu redor o conjunto da oposição ao MAS.

Não existe, a nível nacional, uma oposição de esquerda ao Movimento ao Socialismo, de forma organizada. O MAS segue como o único partido “de esquerda” a nível nacional.  Em 1985, quando o MNR, tradicional partido da direita boliviana, retomou o poder, depois da breve experiência de três anos de Frente Popular com a UDP, impôs um plano econômico neoliberal e o fechamento das grandes minas estatais (COMIBOL), demitindo 40.000 mineiros. Desta forma se concretizou uma derrota histórica da classe trabalhadora boliviana, com a ruptura da resistência da vanguarda tradicional do proletariado boliviano, os mineiros. Até hoje, nenhum setor de trabalhadores conseguiu substituí-la. O projeto e construção do Movimento ao Socialismo (MAS) surge no meio dos anos 1990, no setor camponês, inicialmente como uma proposta de “instrumento político” dos explorados e oprimidos do campo e da cidade, com forte tópico anti-imperialista. Ao longo dos anos, e ainda mais com sua chegada ao governo, o projeto inicial desapareceu, ficando apenas um discurso nacional desenvolvimentista.

A detenção da ex-presidenta, Jeanine Añez

Este é o outro grande tema da conjuntura. Na madrugada de 13 de março, na localidade de Trinidad (Beni), foi detida Jeanine Añez, Ex-senadora de um pequeno partido de direita (“Democratas”), que de maneira autoproclamada assumiu a Presidência da Bolívia em novembro de 2019, após o Golpe de Estado que forçou a renúncia de Evo Morales e sua saída do país. Foram detidos também dois de seus ex-ministros (outros dois já saíram do país há meses), acusados de “sedição, terrorismo e conspiração” em ligação direta com o golpe do qual foram os executores. Devem permanecer seis meses em prisão preventiva. Também foi preso o ex-comandante do exército Pastor Mendieta Ferrufino.

Para defender sua ex-parceira, a direita liberal e a extrema direita reavivam suas denúncias com o lema “não foi Golpe, foi Fraude!” desenvolvendo agora o argumento de que o MAS legalizou o golpe em dezembro de 2019, quando o parlamento reconheceu Añez como presidenta. Na sua tentativa por justificar que não foi golpe, Carlos Mesa ratifica que a ação recebeu naquele momento o apoio e participação da OEA, da União Europeia, via representantes do governo da Espanha e da Igreja Católica. Agora, acusa o MAS de “terrorismo de Estado”. Os Comitês Cívicos (organizações de classe média nas principais cidades) de Santa Cruz e Oruro chamam à mobilização e marchas contra a prisão da ex-presidente. Em Santa Cruz, a marcha juntou 80.000 pessoas. Por sua parte, a OEA repudia o tom repressivo e ameaçador do governo do MAS e pede julgamentos justos para os processados.

O Ministério Público anunciou que vai apresentar propostas para a abertura de um Julgamento de Responsabilidades contra a ex-presidente pelos massacres ocorridos nas localidades de Senkata (cidade de El Alto) e Sacaba (na região de Cochabamba), poucos dias após o golpe. Além de outras acusações durante seu mandato, como o empréstimo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que teria causado danos ao Estado em vários milhões de dólares.

Temos críticas sobre a atuação do MAS durante os 11 meses do golpe, quando sua bancada majoritária continuou atuando no Parlamento, mas isso não muda a caracterização de golpe e sobre o papel de Jeanine Añez, que se colocou-se servilmente a serviço da grande burguesia e dos interesses internacionais. É preciso julgar os responsáveis pelo golpe e a repressão desatada em Senkata e Sacaba e a morte de 36 bolivianos durante a crise política. Os responsáveis, entre os quais a Sra. Añez, devem ser condenados e pagar pena na cadeia.

Para concluir, o MAS ganhou as eleições regionais mas não na magnitude que precisava para fechar a crise política que já tem longa data. A sociedade boliviana segue fraturada socialmente, com a extrema direita erguendo fortemente a cabeça na região de Santa Cruz, e com isso, as mobilizações fascistas (poucas no momento) movidas como sempre pelo ódio racista. As tensões sociais podem ocupar o centro do palco novamente. A situação de crise econômica e sanitária bate forte e deverá ser de imediato a principal preocupação do governo do MAS, se quer reforçar os resultados conseguidos, com propostas claras para atender sua base social, as maiorias pobres e desamparadas do país.

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