Uma homenagem para Francisco Quisbert Salinas, dirigente camponês da Bolívia

Francisco Quisbert Salinas foi um grande dirigente camponês da região do Altiplano Sul da Bolívia. Em 1982, com o retorno da democracia na Bolívia, deu início à construção dos comitês de defesa da quinoa, o cereal nativo da região do altiplano sul, que naquele tempo não tinha nem mercado, nem preço. Foram as primeiras experiências de organização na província de Nor Lipez e na região do Altiplano Sul, após 10 anos de ditadura, até formar a Associação Nacional dos Produtores de Quinua, ANAPQUI, com a qual conseguiu defender os pequenos produtores das grandes empresas.

Em 1985, organizou em Julaca um histórico bloqueio da via férrea internacional, que vai desde a fronteira chilena até o Uyuni, por uma semana e com mais de 1000 pessoas das comunidades. Depois, ganhou, em um congresso, a direção da Federação Regional Única dos Trabalhadores Camponeses do Altiplano Sul, conhecida como FRUTCAS, representando as comunidades das 5 províncias em torno do Grande Salar de Uyuni, tirando-a das mãos do oficialismo para transformá-la em uma central sindical sólida, combativa e independente.

Francisco foi o alicerce desta federação por mais de 20 anos e será lembrado como seu dirigente histórico. Pancho era um grande dirigente, lutador incansável pelo seu povo e em defesa dos recursos naturais da sua região e país. Corajoso durante toda a sua vida. Acreditava no coletivo, sempre. Com muito trabalho e ousadia, construímos uma organização sindical camponesa, forte, batalhadora, democrática e revolucionária, a FRUTCAS, que esteve na cabeça das lutas da região do Altiplano Sul por mais de duas décadas. Diversas vezes enfrentamos os interesses das transnacionais que se apropriam dos recursos naturais em exclusivo benefício próprio. Em defesa do salar, das águas subterrâneas da região, do território comunitário, do lítio, exigindo Soberania e Respeito aos direitos territoriais ancestrais. Com ele empreendemos tantas experiências, como a rádio comunitária, a cooperativa de sal CORACA e tantas lutas, algumas vitoriosas, como em 1992, quando se conseguiu expulsar a transnacional Lithium Corporation do país. Inclusive fizemos vários vídeos sobre o tema para alimentar a memória deste outro lado da história.

Foi um revolucionário socialista que nos deixa hoje em dia, um destes “imprescindíveis” que a vida me deu a sorte de conhecer. Vamos recordar os seus ensinamentos e continuar em frente. Lutou por melhores condições de vida para sua classe, por mudanças políticas e sociais profundas e radicais. Era um militante revolucionário abnegado, muito respeitado nas bases e com grande capacidade de organização. Vários anos, foi militante do Movimento Socialista dos Trabalhadores, partido da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-CI), contribuindo com seu grande sentido de organização e seu feeling por estar sempre em contato com as bases.

No seu livro ′′ Grão de Ouro e Assalto ′′ onde conta parte das suas experiências, escreveu a sua visão da tarefa: ′′ o dirigente é reconhecido de acordo com o seu comportamento, a sua coragem, a sua abordagem, a sua responsabilidade séria, que não se vende nem se corrompe, tem como princípio servir suas bases e não servir deles, mantém sua terra, não abandona sua comunidade, é combativo, sempre está nas mobilizações. Para o dirigente não há descanso. Quando chego na minha casa recebo sempre os companheiros e companheiras que lá vão por qualquer situação, inclusive problemas familiares.”

Ele foi também, um dos ideólogos do Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP, projeto anterior do atual Movimento ao Socialismo- MAS), um movimento político que foi inicialmente pensado como o instrumento de e para a nossa classe, para não servir de escada para ninguém, para que os camponeses sindicalistas deem um passo na frente e assumam um papel político independente da burguesia, procurando a aliança de toda a classe trabalhadora. Este esboço de projeto foi apresentado pela FRUTCAS no Congresso Nacional Campesino (CSUTCB) em Sucre, em 1988. A ideia amadureceu por 7 anos, em meio às diferentes lutas do setor campesino. Depois, quando o projeto político foi aprovado no congresso campesino de 1995, ele foi eleito como um dos 4 que compuseram a primeira diretoria nacional do IPSP. Escreveu e defendeu a primeira carta de princípios do Instrumento Político, antes de ser afastado pela burocracia e elites do movimento. Sempre defendeu a necessidade de voltar ao projeto inicial, dizia: ′′ Vamos lutar para reconstruir o verdadeiro Instrumento Político “.

Francisco não teve a sorte de ir muito para a escola, cursou só o básico mas gostava de escrever, e escrevia com estilo. Durante sua gestão como Secretário de Educação da Confederação dos Camponeses da Bolívia (CSUTCB) lançou o jornal PUTUTU. Em Cochabamba, trabalhou vários anos com a instituição CENDA e se tornou repórter popular para o jornal quechua CONOSUR ÑAWPAQMAN, relatando as lutas das comunidades. Entendia a importância de deixar por escrito, de fazer balanços. Se ó veia durante horas tardias escrevendo na máquina de escrever, logo no computador… fazendo relatos de suas atividades, reuniões, giros às comunidades. Ele impôs essa prática a toda sua equipe. Qualquer reunião da Federação, na hora que fosse, começava sempre pelo ponto “conjuntura′′, no qual discutíamos sobre a situação do país, da região e sobre os fatos internacionais.

Uma história pessoal antes de terminar. Uma de muitas. Era em 1983, durante uma volta de jipe para construir o Comitê da Quinua, estávamos exaustos porque estas voltas duravam vários dias pela distância entre as comunidades. Durante uma reunião noturna na sua comunidade de Calcha K, uma velhinha, que falava quechua, não parava de gargalhar pelo meu nome, que segundo ela, era impossível de entender. De volta para casa, ele pegou um calendário que enfeitava sempre as paredes das casas camponesas, e decidiu que desde então iria me chamar de Candelária. E foi assim que me tornei Candi.

Foi uma honra e uma aprendizagem ao longo da vida trabalhar juntos, lado a lado, durante 25 anos. Aprendi tanto com ele… com o trabalho sindical, o trabalho político e as lutas que enfrentamos. Tudo isso é parte integrante do que eu sou agora. E serei eternamente grata por tê-lo conhecido e podido crescer a seu lado.

Hoje, nos deixa um ser humano de grandes qualidades, bondoso e corajoso, atencioso e sempre preocupado com a sua família e os seus 9 filhos, permanentemente em busca de justiça social. Que seu exemplo continue vivo nas pessoas que inspirou.

Pancho, até o socialismo, camarada!

FRANCISCO, PRESENTE! Hoje e sempre!!

Candi, 06/02/2021.