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OPRESSÕES

Vale usar homofobia contra homofóbicos?

Lucas Brito, de Brasília, DF
Reprodução / Folha de S. Paulo

Nesse sábado, 20, logo após uma semana difícil para Bolsonaro, a Folha de S. Paulo, podendo explorar uma série de temas sobre o descaso do governo com a área da cultura, escolheu uma arma perigosa, a homofobia.

A capa apresentou a matéria “Bolsonaro nomeia ex-galã de ‘Malhação’ Mario Frias para comandar pasta da Cultura”. A imagem é uma foto sensual do novo ministro, cujo foco é seu bonito “cofrinho”. Em letras grandes se lê: “O novo homem do presidente” – a foto é essa acima. Nela, Mario Frias está sorridente e mostrando pequena parte de sua bunda erguida. A combinação entre imagem e texto evidencia explícita escolha homofóbica por parte do jornal.O que mais nessa imagem pode ser explicada pela frase “O novo homem do presidente”?

Por que é homofobia isso?

Vi muita gente de esquerda, gente compromissada com o projeto de justiça social, defendendo a capa. Seria uma forma de desmascarar Bolsonaro? Assim como tentaram desqualificar o presidente por sua relação com o Alexandre Frota – um ex-ator bissexual que fez papéis em filmes de pornô gay -, a Folha escolheu o caminho do “deboche” homofóbico para buscar desqualificar o novo ministro da cultura da gestão Bolsonaro. Insinuação de possível relação homoerótica ou uma permissibilidade de Bolsonaro com a homossexualidade ser usada como forma de desqualificação é necessariamente homofobia. Tentar inabilitar o bolsonarismo por sua “hipocrisia” quanto ao tema da orientação sexual só faz reforçar o pretenso caráter anormal da homossexualidade. A única vencedora nessa batalha é a homofobia.

Apesar de não termos registro de que o novo ministro da cultura seja homossexual, a escolha da foto para a capa é uma nítida insinuação homoerótica, portanto homofóbica.

E não é original!

Já foi feito antes. Essa não é uma escolha original para táticas de oposição a governos de fascistas. No período da ascensão do nazi-fascismo na Alemanha, a social-democracia do país – uma das mais tradicionais da história – buscou desqualificar Hitler e seu movimento com base em ofensas homofóbicas.

Lembramos que no início de 1920, o movimento nazista contou com os trabalhos das Sturmabteilung (SA), antecessora da famosa SS (Schutzstaffel), em português “Tropa de Proteção”, um grupo paramilitar do movimento hitlerista cujas ações consistiam em violência política contra quaisquer opositores do nazismo. O seu fundador, Ernst Röhm, era um homossexual assumido e foi conhecido por algum tempo como um tipo de “braço direito de Hitler”.  Röhm foi morto em julho de 1934, por ordens diretas de Hitler. O oficial alemão é descrito como tendo acumulado muitos inimigos, algumas fontes o mostram com aspirações de poder, que teriam competido com o próprio Hitler; outros o mostram com fortes opositores e um risco real de ser identificado com Hitler pelo aspecto da sua orientação sexual. Não sabemos ao certo, mas, com certeza, o fato de ser um homossexual assumido não deve ter passado desapercebido para o processo de sua queda.

Os nazistas Ernst Röhm e Edmund Heines, em 1933. 

A imprensa social-democrata da época, em especial o jornal Münchener Post, publicou matérias contra Röhm, utilizando da homofobia. Em matéria, “revelaram” sua homossexualidade e chegaram a publicar um carta do oficial endereçada a um amigo, na qual falava abertamente sobre sua orientação sexual. Na mesma época, os nazistas “acusavam” publicamente a homossexualidade de ser uma invenção russa, que teria contaminado o “nobre” povo germânico. No afã de desmascarar o movimento nazista, a homofobia foi escolhida como arma pela social-democracia. Um grave erro.

Com essa escolha, a social-democracia alemã abriu mão de sua tradição em defesa dos direitos das pessoas homossexuais (única orientação sexual não heterossexual evidenciada na época). Essa foi a deprimente escolha da mesma organização que antes foi a única em toda Europa a defender Oscar Wilde da acusação homofóbica do Estado inglês; a mesma que, antes disso, fora liderada por Bernstein, quando esse atacou as medidas psiquiátricas que tratavam a homossexualidade como doença. Essa mesma social-democracia que havia sido dirigida por August Bebel, o único parlamentar a discursar no Reichstag contra o parágrafo 175 do código penal Alemão (herdado do código prussiano em 1871), que criminalizava a homossexualidade.

Muitos não sabem, mas pelo menos um século antes dos acontecimentos em Stonewall Inn, em 1969, em Nova Iorque, o movimento homossexual tem um de seus primeiros registros feito durante as lutas contra a criminalização da homossexualidade, ainda em 1869, marcado pela carta aberta do médico húngaro Benkert aos legisladores da Prússia (que veio a dar origem ao estado-nação Alemanha), contra a criminalização da homossexualidade.

Lembramos que o nazismo, marcando suas vítimas com um triângulo rosa, teria matado, em campos de concentração, entre 5 e 15 mil homossexuais. O mesmo parágrafo 175, antes criticado pelo movimento, foi posteriormente utilizado pelo nazi-fascismo para a sua perseguição homofóbica. A esquerda, nessa altura, já tinha perdido suas credenciais de defesa dos homossexuais.

Nem contra os mais homofóbicos?

A homofobia, quando utilizada contra qualquer um – mesmo que seja um inimigo homofóbico , só pode dar a vitória à própria homofobia. A tentativa de desmascarar a extrema direita por sua hipocrisia em aceitar a homossexualidade em seus quadros resulta, apenas, em reforçar a própria homofobia.

Qualquer tentativa de utilizar da homofobia contra pessoas homofóbicas, assim como machistas ou racistas, serve ao reforço dessas próprias opressões, endossando o próprio preconceito. Vejamos! Se disséssemos assim: “vocês, que tanto se dizem contra a corrupção, tem, entre seus quadros, vários corruptos”. O que estaríamos dizendo? No mínimo, que corrupção é errada. Esse tipo de discurso busca denunciar um fator de dissimulação dos nossos acusados. Mas somos melhores que nossos inimigos porque somos diferentes deles, inclusive nas armas que utilizamos.

Por esse motivo, as opressões, mesmo quando utilizadas contra pessoas opressoras, sejam elas mulheres, negros e LGBTI+ (por machismo, racismo e homolesbotransfobia), só faz fortalecer as próprias ideologias opressoras.

Quem tem orgulho repudia

Essa capa, que em nada é explicada ou referenciada no próprio texto da matéria, torna-se ainda pior pelo contexto. Daqui a alguns dias, em 28 de junho, comemoraremos a história de lutas de resistência do orgulho LGBTI+, lembrando os acontecimentos da revolta no bar Stonewall Inn contra mais uma batida policial, em 1969, que inspirou a primeira parada do orgulho LGBTI+ (na época homossexual), em 1970, espalhando-se no mundo todo. Nesse mês, diante do nosso cenário, tal capa só evidencia que o que expressa o bolsonarismo é algo presente no conjunto da sociedade, exacerbado por eles, mas parte de todos nós.

Meu medo é de que, mesmo diante de tamanha solidariedade atual para com o levante de lutas contra o racismo iniciado nos EUA, as forças democrática e, também, a própria esquerda, tratem tal capa como natural, comum. Não. Devemos repudiar! A luta contra o capitalismo é impossível se não estiver associada às lutas contra o conjunto das ideologias opressoras, sejam elas machista, racista ou homolesbotransfóbica.

O capitalista, para além da exploração da força de trabalho pela extração da mais-valia, é um sistema dependente de um regime complexo de dominação e alienação, para o qual as opressões são estruturantes. Esse sistema se orienta pela limitação das potencialidades humanas, incluindo a negação da diversidade da sexualidade e do gênero. O fascismo é expressão de uma das fases desse sistema, erigido com forças das classes médias envolvidas em um fenômeno de massas fascista. Somos melhores e maiores que eles, não nos esqueçamos disso.